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Histórias médicas

Há basicamente três tipos de escritos médicos que eu me acostumei a ler, tanto na literatura em geral quanto na internet. Existem milhões de textos nessas categorias, e não poderia ser diferente. Ao lidar com a vida, a morte e todas as manifestações da libido, não seria possível à medicina deixar de produzir escritos sobre a profusão de emoções que permeiam as consultas e tratamentos, desde os encontros em consultório até as cirurgias sofisticadas e complexas que são correntes na atualidade. Poucos lugares são mais privilegiados para entender o drama da vida humana do que aquele onde se encontram os guardiões da doença e do sofrimento, da redenção e da cura. Não à toa, grandes literatos foram médicos, como Moacyr Scliar, Arthur Conan Doyle, Anton Tchekov, Ferdinand Céline, Oliver Sacks, William Somerset Maugham, François Rabelais, John Keats, etc…

O primeiro tipo de texto que eu reconheço é o escrito técnico, não o trabalho científico academicamente estruturado, mas aquele onde o objetivo é expor um caso clínico, uma história que ocorre ao redor de um diagnóstico e um tratamento, mesmo que envolto por reflexões de ordem filosófica ou ideológica. Nestes, o centro é a patologia, a doença, a enfermidade como um ente que se apossa do sujeito, toma conta dele e, por fim, o faz sucumbir – ou se salvar, normalmente pela ação médica. Nestes casos a patologia é a protagonista, como uma sombra maligna que ameaça o sujeito que, desesperado, se joga nos braços da medicina em busca de salvação.

O segundo tipo tem como foco o paciente. Durante anos me acostumei a ler histórias onde médicos escrevem sobre as curiosidades que os pacientes lhes contam. Por vezes o paciente é tratado como ingênuo, desatento, inculto, que trata suas doenças por nomes curiosos e “errados” e traz à consulta fantasias sobre o funcionamento do corpo. Diz coisas “engraçadas”, como “operar-se da pênis” (o apêndice) ou que teve “febre interna”. A descrição dos clientes é muitas vezes jocosa e, por vezes, desrespeitosa. Por certo que existem também as descrições de dramas, visões pessoais, dilemas terríveis, alegrias esfuziantes e as perspectivas dos doentes sobre a própria doença e a morte. Na área do parto e nascimento são muito frequentes as descrições do parto quem têm como foco as lutas do casal por uma gestação digna, os dilemas da gestação, a busca pelo protagonismo, as escolhas pelo parto normal, a decisão pelo local de nascimento, a luta contra o sistema e os resultados colhidos nestes desafios.

O terceiro grupo é sobre o próprio médico. Neste tipo especial de texto, o médico é o centro das histórias e é sobre sua atuação que gira o núcleo dramático da narrativa. Sua atenção, a precisão do diagnóstico, a descoberta da doença rara, a paciência, a argúcia, a persistência, a coragem são valores que frequentemente aparecem nessas descrições. Também é usual o paternalismo típico do discurso médico, a postura bondosa e condescendente e as narrativas heroicas, onde o médico é travestido de super herói, que sacrifica seu tempo, sua saúde e sua família em nome da cura dos seus pacientes.

Neste último grupo, e bem mais raro, se encontram os textos que estimulam posturas críticas em relação à ação da medicina e ao próprio proceder médico. Essas são as narrativas mais importantes e de qualidade superior, pois que pressupõem a coragem de tocar nas próprias feridas, tanto sobre o significado último da arte médica na cultura quanto nas fragilidades do médico, seus medos, suas angústias, suas aspirações, seus desejos e suas fantasias de onipotência. O profissional que tem a coragem de se olhar no espelho e descrever a si mesmo com a dureza necessária já é merecedor de toda admiração. Poucos ousam apontar suas máculas e falhas; aqueles que o fazem, demonstram força e um singular senso de integridade.

Não há dúvida que a medicina é um palco especial para as narrativas da vida. Ela está presente no seu início e no seu fim, com um olhar especial sobre as pontas da nossa curta passagem por este plano, mas também sobre todos os percalços dessa travessia complexa e tortuosa. As reflexões dos médicos se tornam extremamente criativas quando quem as escreve se afasta do ufanismo arrogante do “salvador” ou do “abnegado curador” e se aproxima do sujeito com todas as fragilidades humanas a quem foram oferecidas as ferramentas de um saber milenar para levar adiante seu ofício. O médico sofistica sua escrita quando descreve o choque entre o saber do médico e os dramas e dores do seu paciente como um encontro de almas, pois é dessa matéria única que são feitas as consultas.

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Memórias do Homem de Vidro – 17

O Sorriso da Pecadora

E aí encaminharam a mulher em direção a um grande muro de pedra. Seu corpo seminu e o cabelo raspado contrastavam com a dureza da rocha por detrás. Era jovem e, apesar dos castigos, mantinha ainda uma formosura de traços. Seus olhos eram fundos, como fundas era sua dor e sua angústia. As mãos trêmulas seguravam o resto que sobrara de suas vestes, destapando os pés magros e su­jos. Seu pranto era seco; seu olhar perdia-se por detrás da multidão que ora gri­tava. Parecia procurar na distância infinita algo ou alguém que de antemão sabia que não viria. Seu olhar vítreo vagava por sobre as cabeças, desatento aos deta­lhes. Finalmente, voltou seu rosto para baixo e seus joelhos dobraram-se pela exaustão.

— Vadia! — disse alguém, imerso na confusão de vozes.

— Vagabunda! — gritaram outros, e essas palavras ricochetearam na pedra bruta, golpeando-lhe nas costas. A dor das sílabas ferozes era maior do que as dores que seu corpo esquálido já suportara.

A adúltera esperava o seu final. A espuma de ódio no canto dos lábios dos que ali se perfilavam com pedras nas mãos mostrava-lhe que nada poderia impedi-los. Seu fim estava próximo. A leitura da sentença fora breve, assim como breves foram seus pecados. A mão dura da lei repousaria sobre seu corpo e seu espírito. Assim estava escrito, assim se cumpriria. As mãos carregadas de pedras se ergueram para o alto, à espera do aviso. Um silêncio. A pedra dura, o corpo vergado. A cabeça baixa. O pranto surdo. Ninguém falou, ninguém respirou. O mundo, entre um segundo e outro, parou para assistir. À espera do sinal esperado por todas as raivas; o aviso para que as pedras se lançassem ao ar, cruzassem o espaço e esmagassem o corpo frágil da pobre mulher. Ela mantinha seu olhar parado, sabendo que nenhuma palavra seria sufi­ciente, nenhum gesto ajudaria. Seu destino estava determinado pela incompreen­são e pelo ódio despertado. Ninguém poderia salvá-la. Aguardava com resignação silente o seu momento derradeiro.

Sua cabeça baixa ergueu-se pela última vez. Seu olhar perdido fixou-se em um horizonte que jazia próximo de onde as coisas começam e terminam. O corpo aprumou-se e os lábios moveram-se sutilmente. Naquele momento de espera, na­quele fragmento de instante antes da tempestade de rochas, ela fechou os olhos e…

Sorriu…

Sorriu a dor de perder a vida. Sorriu a dor de morrer por ter amado. Sorriu a dor do prazer. Sorriu a dor da liberdade. Sorriu o adeus aos seus. Sorriu porque lembrou daquele breve momento em que amou de verdade, transgrediu e gozou. Sorriu o riso dos loucos e dos libertários, o riso da graça e da desgraça. Seu sorriso era o sinal. Um sinal da culpa; uma confissão. Sorriu também pelos filhos que não tivera e pelos que sempre quis acalentar. Sorriu pelo leite que não verteu de seus belos seios, e das noites que não dormiria aconchegando seus filhos. Sorriu pelos homens, bons e maus, a quem seu corpo ofereceu repouso e sossego. Sorriu por tantos que auxiliara entregando seu carinho e seu calor. Naquele exato instante, ela se libertou. Olhou para a multidão com as pedras al­çadas ao ar e pôde entender com clareza o significado de sua dor. Não mais pa­deceria por desconhecer o significado e o sentido no seu sofrer. Era seu momento de ascensão. Liberta, já podia desembaraçar-se do fardo de seu corpo cansado.

Mas seu sorriso foi também o sinal que liberou a torrente de ódio. As pedras ras­garam o ar, assobiando uma música feroz. Uma chuva de cascalho e rancor. No ar, o cheiro do sangue misturava-se lentamente com a poeira. A multidão aos poucos se aproximava da mulher, para não desperdiçarem nenhuma rocha lan­çada. A carne dilacerada. O corpo aos poucos se desfazendo. Terra, lágrimas, sangue. Mas o alvo já nem era mais seu corpo. Aqueles que estavam presentes procura­vam aniquilar aquele sorriso, que se mantinha vivo e instigante. Por mais que as pedras procurassem atingi-lo, ele continuava ali, incólume. Saiu do rosto da pobre mulher, volitando por entre a multidão, e fixou-se nas retinas de cada um. As pe­dras já não mais o alcançavam.

Os executores ainda gritavam excitados, vociferavam, levantavam as mãos para o alto. Da pobre pecadora já não se ouvia a respiração. Nenhum movimento se per­cebia em seu corpo. A torrente de pedras e gritos parou depois de alguns minutos. Aproximaram-se do corpo imóvel. Um silêncio machucou os ouvidos, para obser­var se a vida ainda habitava naquele ser. Nada. O rosto disforme, as carnes abertas. O brilho da espada do soldado reluziu no peito. Seus seios à mostra ainda tinham o viço e a cor de outrora. Seu busto nada sofreu, como que poupado por sua beleza. Consumada a execução, seu corpo morto agora era carregado para longe. Os presentes aos poucos iam se afastando. As pessoas, de cabeça baixa, tenta­vam tirar de sua lembrança aquele sorriso, aquele enigma. O que a fez sorrir? Por que alguém arriscaria tudo, até a própria vida por um momento.

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Max deixou o pedaço manuscrito de papel sobre a mesa enquanto nos olhava, aguardando os comentários. Nadine havia avisado que seriam nossos últimos momentos juntos naquele dia, porque a noite já havia colocado seu negro cobertor sobre nossas cabeças. Max insistira em que déssemos nossa opinião sobre o texto que guardara para nos apresentar. Disse-nos que este seria um capítulo do livro que estava a escrever. Precisava da opinião dos amigos.

Nadine olhou-o, ainda repousando a mão sobre o queixo, e lhe disse:

— Querido colega… Entendo a dramaticidade do que você descreveu. Cheguei a sentir na pele a dor de morrer assim. Penso que todos levamos conosco um pouco da memória planetária, que faz com que tenhamos impressas em nossos corpos e mentes as sensações que nossos antepassados vivenciaram. Acho que a história carrega uma metáfora poderosa. Ela trata da possibilidade heroica de transgre­dirmos os nossos limites em nome de algo superior e nobre. No caso da adúltera pecadora, o amor era esse limite. Ela sabia que “amar/pecar” seria entendido como uma agressão ao modelo patriarcal estabelecido, e que mesmo diante da possibilidade de morrer ela preferiu arriscar, em nome de algo que ela entendia como sublime e valioso.

Resolvi também comentar o texto de Max. Sabia que era hora de ir, pois o escuro já dificultava nossa visão dos letreiros da rua em frente. O dia foi de intensas emo­ções de reencontro, e penso que Max deixara a leitura de seu texto para o fim porque queria nossa opinião sobre seu projeto de escrever um livro.

— Acho que podemos inserir sua metáfora em muitas circunstâncias banais e cor­riqueiras de nossa vida. A pecadora pode ser qualquer um de nós defrontando-se com as nossas paixões. O próprio nascimento humano pode ser visto nesse con­texto, se pudermos entendê-lo como um processo de profunda capacidade trans­formativa para uma mulher. E o nascimento humano carrega essa potencialidade, desde que se entenda a possibilidade libertária e empoderadora que ele traz con­sigo. Para uma mulher ser protagonista de seu próprio parto, ela precisa desafiar os limites impostos por uma sociedade que se assenta sobre valores outros, e que não admite que esses sejam subvertidos. A pecadora, em uma visão humanista, é aquela mulher que se decidiu por aceitar e incorporar por inteiro a tarefa de ser mãe, com tudo o que isso possa significar. É apoderar-se de um evento que sem­pre foi seu, mas que a sociedade tecnocrática acabou afastando dela. Esse res­gate é inegavelmente um gerador de conflito, e por isso muitas são vistas como “radicais”, “egoístas” ou outros adjetivos negativos que a sociedade utiliza para quem tenta desobedecer a seus ditames.

Nadine sorriu para mim, e Max terminou sua cerveja.

— “Pecadores”, entretanto, são também os médicos — continuei — que oferecem suporte e atenção a essas mulheres na sua busca por partos mais seguros e em­poderadores. Oferecer seu trabalho, sua profissão e sua face aos ataques de to­dos aqueles que se sentem prejudicados com essa transferência de poder os co­loca igualmente na condição de hereges transgressores. Entregar às mulheres essa força e essa possibilidade de protagonismo é considerado por muitos uma afronta. Muitos não hesitariam e apedrejariam sem nenhuma piedade. Outra me­táfora que me parece criativa é o momento de ascensão. Esse momento está pre­sente em inúmeras tradições religiosas, como a cristã, a budista e outras, e nos fala da possibilidade de alçar um patamar superior de compreensão da vida atra­vés da dor, da provação e do martírio. A pobre pecadora, diante do sofrimento que lhe foi imposto, teve a oportunidade de entender a vida e suas infinitas conexões no momento em que estava se despedindo dela. Essa possibilidade transforma­dora e renovadora está presente em muitos desafios que enfrentamos pela vida, principalmente no nosso contato com a morte. O parto pode ser também enten­dido como um momento de profunda provação, em que os valores humanos são colocados à prova. Nesse complexo rito de passagem, muitas mulheres se “des­cobrem” e ascendem a um estágio superior em suas vidas. Esse talvez seja um dos aspectos mais fascinantes do nascimento humano: seu potencial criativo e transformador.

Max mantivera-se em silêncio. Queria nos mostrar seu ponto, sua preocupação e talvez uma dor. Sabia que uma sociedade tecnocrática como a que vivemos não perdoa as pessoas que oferecem uma visão alternativa ao modelo dominante. “É duro passar a vida remando contra a maré, meu caro”, dizia-me ele. Bem sei disso. A postura contra-hegemônica na área da saúde é vista como algo intimi­dante, e tanto Max quanto eu já havíamos sentido a dureza das pedras lançadas por aqueles que não aceitam desvio dos dogmas fundamentais que sustentam nosso sistema de crenças. Nadine mesmo falava que, apesar de acreditar em muito do que dizíamos, não tinha coragem de assumir uma postura franca em di­reção ao humanismo, exatamente porque não existe um sistema de suporte aos médicos que agem orientados pela medicina baseada em evidências. Ela dizia: “Se você assistir partos normais, corre o risco de ser processado e cair em des­graça. O mesmo não ocorre se você fizer cesarianas, mesmo que tenha resulta­dos muito piores”. Ela temia ser apedrejada, mesmo seguindo normas seguras, superiores e atualizadas.

Impossível não compreender suas razões. Não conseguimos ainda criar um mo­delo que proteja aqueles que buscam o melhor para seus pacientes através de uma abordagem sistemática e científica. Quando problemas inevitáveis ocorrem durante o transcorrer de um parto, somos julgados por nossos pares, que na maio­ria das vezes estão a defender o seu modelo, o seu paradigma, que em geral se assenta exclusivamente na manutenção do poder sobre o nascimento. Sem uma integração entre mídia, entidades médicas, ministério público e judiciário, nunca conseguiremos nos proteger do oportunismo que cerca boa parte dos processos contra obstetras.

Max tinha enorme preocupação com isso, e dizia que apenas um esforço muito grande de toda a sociedade seria capaz de nos livrar do horizonte negro que se aproximava. Nossa taxa de cesarianas ainda era uma das maiores do mundo, as­sim como as taxas de morbi-mortalidade neonatal. A associação entre esses dois medidores de excelência em assistência nunca foi encarada por Max como uma coincidência. O sistema de seguro médico ameaçava entrar no Brasil com sua potencialidade destruidora, a exemplo do que ocorreu com os Estados Unidos, onde a “indústria do erro médico” solapou toda e qualquer possibilidade de modifi­cação das péssimas cifras de atenção materna e neonatal a curto prazo. Apesar de os Estados Unidos terem o maior orçamento de saúde do mundo, não estão entre os 40 países com os menores índices de mortalidade materna. Lá principal­mente, mas também gradualmente no nosso país, médicos trabalham com medo, apavorados e distantes de um envolvimento com seus pacientes. Nada mais afastado do ideal de cumplicidade e auxílio apregoado pela profissão médica.

Max sentia na pele a dor das injustiças. Sabia que trilhar o seu caminho de desa­fios lhe custara um preço demasiado alto. As pedras eram os olhares, as críticas injustas e infundadas, os comentários maldosos na sua ausência, a desconsidera­ção de alguns colegas. Entretanto, percebera também que não havia escolha, porque a estrada pela qual se decidira era de mão única. Diante das pedradas que a estrada da vida lhe ofereceu, seu único recurso era oferecer seu sorriso e sua compreensão.

Olhei meu amigo abraçar-se a Nadine. Era hora de ir. Lá fora a noite nos convi­dava para o repouso. Nadine estava com os olhos úmidos. Abraçava-se a Max como a tentar agarrar um pedaço de seu passado, onde tudo eram esperanças e sonhos. Max sorria e dizia que voltaríamos a visitá-la em breve. Olhei Nadine mais uma vez e tentei descobrir qual dor se escondia por detrás do azul dos seus olhos. Deixei minha curiosidade de lado e abracei minha querida amiga, sentindo seu coração perto do meu.

— Ric — disse ela. — Voltem mais vezes. Temos tanto a conversar, tanto a lem­brar…

Eu também trazia meus olhos mareados, e prometi que voltaríamos a nos ver em breve. Max me aguardava na porta e juntos saímos do hospital. Olhei Nadine mais uma vez e lhe acenei. Ela devolveu o aceno com um sorriso. Max despediu-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro e combina­mos mais uma vez reencontrar Nadine e reviver os velhos e bons tempos. Antes de se afastar, ele ainda me falou:

— Você não falou de sua dor para Nadine. Por quê?

Olhei para meu velho amigo e lancei-lhe um sorriso triste, que brotava das feridas profundas que cada um de nós carrega.

— Não gostaria que a tristeza pela injustiça que passei contaminasse nosso reen­contro. Fiquei tão feliz de ver de novo meus velhos companheiros que não queria que nossa conversa fosse dominada pela indignação ou pela mágoa. Nadine é uma doce amiga, não queria que se entristecesse por minha causa.

Max bateu nas minhas costas e segurou fortemente meu ombro.

— Prometa que vai escrever aquele livro. Você não pode sofrer em silêncio. Mui­tos colegas poderão entender o que aconteceu com você. Sua indignação não pode ser silente, pois dessa forma não conseguiremos modificar o modelo ana­crônico e machista que controla a nossa obstetrícia. Escreva, meu amigo; escreva tudo. Prometa.

Balanço a cabeça afirmativamente, prometendo diminuir o peso da injustiça que carregava, descarregando-o nas páginas escritas. Max despede-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro mais uma vez. A rua à minha frente está mais escura do que de costume. Os faróis e as buzinas me atrapalham quando revivo mentalmente as cenas do dia. Relembro as piadas e as histórias de Max e não consigo evitar uma risada. Senti um pouco de cansaço e certa sonolência, para logo depois lembrar que ainda havia centenas de e-mails para responder em casa. Meu celular toca uma única vez e recebo o aviso de uma mensagem de texto. Aperto as teclas do aparelho e leio no visor de cristal líquido:

“Patu Saleh, Max.”

Claro, companheiro… Patu Saleh!

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Memórias do Homem de Vidro – 16

Asfalto

Tentei fazer a ligação do meu mouse no computador novo, mas percebi que a co­nexão era inadequada. Inútil insistir. Com as mãos na cintura, eu vislumbrava o ventre cibernético do computador aberto à minha frente. Suas entranhas expostas não me traziam esperanças, mas me ofereciam a ilusão ingênua de controlar seu funcionamento. A conclusão era dura e inevitável: meu dispositivo era PS2, e a única porta acessível era uma serial. Eu necessitava de um adaptador, e talvez pudesse encontrá-lo no shopping. Ok, pensei eu, já conformado com o meu passeio compulsório. Aproveito e visito uma livraria. Quem sabe encontro alguma novidade, ou pelo menos leio o meu livro enquanto tomo um café expresso. Tento acordar Bebel para me fazer com­panhia, mas a festa da noite anterior a mantinha agarrada aos braços de Morfeu. Mais tarde agradeci por ela estar presa a este sono de pedra.

A tarde fria já mostrava seus estertores, colorindo de púrpura o céu da cidade. O vento cantava uma fria melodia na fresta aberta da janela do carro, enquanto os faróis dos automóveis lentamente iam se acendendo, produzindo uma dissonância ofuscante de luzes. O rádio é a companhia que me resta, e acompanho o som das músicas com minha voz desafinada. “E é só você que tem a cura do meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Renato Russo fala da saudade daquilo que ainda não vivera, enquanto eu forço a vista para po­der enxergar a mudança nas tonalidades da rua. Penso na força de um ídolo que se foi, e que, ao morrer, tinha a mesma idade que eu. Novo, pensei. Vítima do desregramento que atinge os mais sensíveis, ainda jovem sucumbiu a um turbi­lhão de paixões avassaladoras. Sua poesia ainda encanta os “meninos e meninas” da geração que nem chegou a conhecer.

Meu caminho em direção ao shopping necessariamente passava pelo estádio de futebol. Aos poucos, vislumbro o topo das torres imensas que guardam os holofo­tes, e sua visão me trouxe à memória minha velha tese de que os estádios tentam reproduzir a estrutura dos castelos medievais, em uma intrigante fidelidade à ar­quitetura das cidadelas. O fosso, as torres sentinelas, a ponte levadiça, os guar­das, o povo alucinado e os exércitos digladiantes: tudo isso me aparecia de forma evidente nas partidas de futebol. Ali os clãs se reuniam para as batalhas, que o processo civilizatório sublimou nos jogos esportivos. Entretanto, o calor dos em­bates futebolísticos frequentemente produzia em mim a memória corpórea de um tempo passado nem tão distante, em que os “gols” eram muito mais sangrentos e as vitórias, realmente “arrasadoras”. Felizmente nossa impulsividade testosterô­nica e guerreira já havia encontrado outras formas mais sutis de expressão.

Quase em frente à curva do estádio, a intuição me fez mudar de rumo. Empurrada por uma vontade repentina, minha mão escorregou no volante e decidi não con­tornar o velho campo de futebol pela esquerda, mas manter uma linha reta e se­guir em frente para somente mais adiante virar em direção ao shopping. Poucos minutos depois, eu ainda questionaria as razões pelas quais tomamos decisões fortuitas, mas que posteriormente nos instigam a imaginação por guardarem uma causalidade aparentemente inexplicável. Ao passar o semáforo, percebi uma aglomeração próxima a um “bailão”, que é uma espécie de boate gauchesca muito ao gosto do povo. Uma pequena multidão acotovelava-se em frente a um posto de gasolina. Diminuí a marcha e me aproxi­mei para ver do que se tratava. Havia um popular, não um policial ou agente de trânsito, a pedir que os carros desviassem. Logo percebi que as pessoas se amontoavam em torno de um corpo caído ao chão. A ausência de agentes policiais me alertou para o fato de que o acidente devia ter ocorrido há alguns minutos apenas, e sequer houvera tempo para que alguma autoridade fosse acionada. Os transeuntes se agrupavam em torno da pessoa caída, me impedindo de ver detalhes do que havia acontecido. Abri o vidro do carona e gritei para o senhor que, com um lenço, fazia sinal para os carros que trafegavam:

— Amigo, eu sou médico. Alguém aí precisa de auxílio?

Ele curvou o corpo para frente, e forçou a vista para me enxergar dentro do carro. Ajustou os óculos com a mão que não segurava o lenço, ainda balançante, e res­pondeu incontinenti:

—- O senhor é médico? Sim, acho que precisamos. Houve um atropelamento. — Voltou-se para trás e, dirigindo-se à turba, gritou:

— Afastem-se. Este senhor é médico. Abram espaço!

Manobro meu carro no posto de gasolina em frente. Corro em direção à multidão, mas ainda preciso avisar: “Sou médico, deixem-me chegar perto”. Uma mulher jazia imóvel no asfalto. Minha experiência com atendimentos na rua é estranha. Parece que as coisas sempre acontecem ao meu lado. Já fui socorrista de muitos acidentes de carro e já auxiliei inúmeras pessoas vítimas do trânsito caótico. Parece uma imantação, ou talvez o fato de que aparentemente eu preciso me aproximar dos acidentes. Pareço ter uma vocação para “anjo da guarda”, o que talvez seja uma boa oportunidade de emprego depois que eu partir “desta para uma melhor”.

Desta vez não foi diferente de várias outras. O acidente havia ocorrido alguns mi­nutos atrás apenas. Depois de esbarrar nos indefectíveis curiosos, chego ao lado da pessoa que estava caída. Ajoelho-me ao lado do corpo e sinto a dureza do asfalto contra minhas rótulas. Instintivamente coloco uma mão no pulso e a outra sobre sua testa. Uma mulher, passando dos 50 anos. Vestia roupas simples, mas os sapatos bonitos e reluzen­tes pareciam novos. Sua calça estava rasgada próximo ao joelho, por onde se po­dia observar o amarelo subcutâneo de um profundo corte. Havia uma fratura ex­posta na altura do fêmur distal, e espículas ósseas agrediam as bordas da pele. Minha visão fixou-se na perna da mulher, à procura de sangue, mas não havia nenhum sinal. Como poderia um corte tão profundo, associado a uma fratura, não sangrar?

Pensei no pior. Olhei sua cabeça que, de lado, parecia tentar escutar o negro as­falto. Uma poça de sangue coloria de rubro o chão escuro. Sem movimentá-la, abri bem seus olhos e não percebi nenhuma reação das pupilas, que se encontra­vam imóveis. A dobra de sua orelha estava azulada e fria, mas o resto do seu corpo ainda mantinha o calor. Tinha uma extensa lesão por abrasão nas costas, de um vermelho intenso. Seus olhos, agora semiabertos, pareciam querer olhar um ponto qualquer do outro lado da rua. O som dos automóveis passava por entre as pernas das pessoas, e o círculo ao redor do corpo ia se tornando menor. Por entres os espectros dos curiosos amontoados ao meu redor, eu podia ver os vi­dros dos carros se abrindo para que cabeças fossem impulsionadas para fora, na ânsia de verem do que se tratava. Ao seu lado, uma senhora me falava:

— Ela é mãe da doutora Fulana, que é ginecologista. O genro dela é o doutor Fu­lano. O senhor os conhece?

Os médicos a quem ela se referia eram meus colegas. Sua filha era da mesma especialidade que eu, curiosa coincidência. O genro, outra coincidência, tinha um dos nomes igual ao meu. Não era meu amigo, mas sabe-se lá quantas vezes já havíamos nos cruzado nas galerias dos hospitais. A filha era provavelmente mais jovem do que eu, porque não reconheci seu nome.

— Ela está bem doutor? Estávamos atravessando a rua quando esta motocicleta apareceu de algum lugar. Ela não viu. Como ela está, doutor?

Não havia nenhum movimento respiratório. As pupilas estavam fixas, os olhos imóveis. Parecia ainda procurar algo do outro lado da rua, fixada em um ponto perdido entre a calçada e o horizonte purpúreo. Botei mais uma vez minha mão no seu pescoço na esperança de encontrar pulso carotídeo. Nada. Nem um mínimo sinal de vida. Olho para a amiga, que ao meu lado chora, e vejo nos seus olhos uma súplica. Pede uma esperança, uma chance. É uma bela mulher, passada também dos 50 anos. Está vestida com um casaco de couro mar­rom claro, e um batom vermelho vivo cobre seus lábios.

— Sua amiga morreu. Não há um sinal qualquer de vida. O trauma na cabeça, ou alguma lesão interna, deve ter sido o causador. Eu sinto muito.

Ela abraça-se a mim e chora. Seu soluço é baixo, mas sua dor é algo que sinto na pele. Os curiosos se aproximam mais ainda, e os ônibus diminuem a marcha pró­ximo ao acidente para poder democraticamente saciar a sede das pessoas pelos espetáculos mórbidos. Pessoas me perguntam se ela ainda está viva, e eu digo que devemos esperar a ambulância. O motoqueiro se aproxima e vejo espanto na sua expressão. Parece não acreditar no que vê. Seu olhar procura uma reação na mulher, mas esta não se move. A amiga continua a falar, tentando extravasar sua ansiedade. Diz que não conse­gue ligar para a filha da amiga, mas penso que ela na verdade estava sem cora­gem para isso. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que dar uma notícia como essa. Continuo a olhar a pobre senhora, cujo corpo rapidamente parece esfriar junto com a noite outonal que se aproxima.

— Ela saiu para dançar. Estava atravessando a rua para uma aula de dança de salão. Ela está bem, doutor?

Quem me dirigiu a palavra foi um senhor gordo com uma camisa vermelha, já passado dos 70 anos. Talvez fosse um colega de aula; quem sabe um antigo amigo. Finalmente consigo entender para onde a mulher parecia olhar. Do outro lado da avenida um cartaz jazia, pendurado à parede de cimento cru: “Aulas de Dança de Salão”. Seu olhar continuava fixado no cartaz, como que a negar o que o destino lhe impusera. Apoiei a mão no ombro do senhor de camisa vermelha e disse-lhe em voz baixa:

— Ela faleceu, meu amigo. Não há mais nada a fazer.

Minha voz saiu como um sussurro proposital, para não criar confusão. Ele apenas falou “Meu Deus…”. Pedi que trouxesse do bar que existe em frente uma toalha para cobrir a senhora. Não conseguia aceitar os olhares dos passantes, que teimavam em chegar bem perto como que para ver a morte o mais próximo possível. Curvei-me mais uma vez em sua direção. Coloquei minha mão no seu rosto e fechei-lhe as pálpebras, tentando entender o que se passou. Uma pessoa sai de casa para uma aula de dança. Seus sapatos novos e reluzen­tes me diziam que ela era uma mulher vaidosa, caprichosa. Seu cabelo castanho pintado tentava disfarçar os fios brancos que teimavam em aparecer bem próxi­mos à raiz. Quem sabe estava procurando um namorado, uma companhia, ou apenas diversão e risadas marotas com as antigas amigas. Encontrou a morte ao atravessar a rua.

A fragilidade da vida é o que lhe empresta grandeza e fascínio. O fato de que po­demos nos retirar bruscamente dessa existência é o que nos faz pensar que cada momento é único, porque irreprodutível, e que a cada instante travamos uma luta contra nossa finitude. Com minha mão em sua face, tentei mentalizar sua passagem. Imaginei o cortejo espiritual que ao nosso lado deveria estar se realizando. Certamente ela teve em sua vida amigos, amores, familiares e pessoas que, já tendo passado para o lado de lá, a estariam auxiliando. Provavelmente ao meu lado haveria algum tipo de “Serviço de Recepção e Auxílio”, para ajudar aqueles que estavam regressando prematuramente à casa espiritual. Meu futuro emprego, pensei eu. Passei essa vida inteira recebendo os que vêm do outro lado, por que haveria de ser diferente depois de morrer?

Chegam os agentes de trânsito. Com suas “caixinhas falantes”, mandam informa­ções ao Pronto-Socorro. Apresento-me a um deles e explico que a mulher acabou de falecer. Ele transmite a informação para a central, mas confirma que a ambu­lância deve se apressar. Falo com a mulher da central e digo que a mulher não mais respirava, e que o caso era realmente fatal.

Minutos após, a ambulância chega, fazendo alarde. A mulher no asfalto jaz co­berta com a toalha do bar, e o paramédico apenas confirma minhas informações. Nada mais há para fazer.

Levanto-me e abraço mais uma vez a amiga. Pego um papel e escrevo meu nome, para que ela entregue à filha, minha colega ginecologista. Talvez ela qui­sesse perguntar alguma coisa, ou saber como estava sua mãe quando veio a fale­cer. Afasto-me da multidão e olho para o corpo miúdo que começa a ser carregado para a ambulância. Digo mentalmente adeus, pedindo para que ela possa ser bem recebida no lugar para onde está indo. Entro no meu carro e sigo meu caminho. Ligo o rádio. A lembrança de V. instantaneamente me vem à recordação.

“Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”, grita Belchior.

Ela também saiu de casa para uma aula de dança. Queria bailar no ritmo de uma canção há milênios cantada. Queria passar pelo seu rito, sem ser obstruída por uma sociedade que recrimina a autonomia e a liberdade. V. sabia que o caminho da libertação passa pela coragem e pelo enfrentamento. Morreu ao atravessar sua última avenida, atropelada pela inevitabilidade de uma doença imprevisível e im­possível de prevenir e abatida pela infecção contraída no que deveria ser o “san­tuário da antissepsia”. Logo ela, que tanto tentou evitar uma fatalidade ao procurar na humanização do seu parto a forma mais segura de lidar com o evento.

Dobro finalmente em direção ao meu destino. As imagens se multiplicam na minha mente, e eu continuo a pensar na morte e seus significados. A morte é o tabu-mor da medicina. É a maldita palavra não-dita. “Palavras são energia”, já dizia minha mãe. Nós, médicos, não pronunciamos essa palavra de cinco letras, talvez para afastar de nós a sua aura temida. Faz parte da nossa mi­lenar herança mística, e dos rituais que cercam nossa profissão. Não falamos feto morto, falamos “FM”; não nos reportamos ao câncer, e sim ao “CA”, e mesmo nós, imitando os pacientes, falamos das doenças malignas como “aquela doença”. Nossa ojeriza à morte, e ao fim determinado por ela, só pode ser compreendida se adentrarmos a sutileza dos alicerces que sustentam a medicina. Tentamos desviar da boca a palavra amarga, para que não chegue aos corações e mentes a marca indelével da nossa falibilidade. Morte em medicina significa o fracasso último de nosso intento fantasioso de sobrepujar a natureza e seus ditames.

Morrer é tão da vida quanto nascer, e enquanto não pudermos entender as pontas da existência como um tubo que se fecha, jamais seremos capazes de sobrepujar a dor de partir. Zeza ainda ontem me falava da dor de nascer, e deixar para trás aqueles que tanto nos amam e a quem deixamos órfãos de nossa presença espiritual. Também do lado de lá deve haver saudade, senão por que sorririam ao nos ver regressar aqueles que já se foram? Seria o humano fadado a um eterno acenar de cais? Seria a criatura de Deus um eterno suplicante de amores deixados para trás, na longínqua memória de tempos e paixões já idas? Seria a completude da presença constante um idílio mentiroso, tão falso quanto aquele em que a princesa e seu escolhido “viveram felizes para o sempre”? Será a existência maior marcada, em essência, pela fatalidade da partida, a sombra da despedida e a dor de um olhar a perder-se? “Viver é preparar-se para morrer”, diria Sócrates. Sem o desapego às coisas e às pessoas, nossa passagem se torna um mar de aflição e tormento. Viver é prepa­rar-se para a separação, para a distância.

Maximilian uma vez me disse: “Se quiser trabalhar com a vida, entenda a morte. Morrer é o que confere à vida sua grandeza e significado. Esta se torna mais vali­osa quando mais frágil a reconhecemos.” Max era certeiro, e sabia o que era a dor de perder alguém. O destino é realmente surpreendente. Pergunto a mim mesmo qual o sentido disso tudo. O medo da resposta me fez aumentar o volume do rádio. Haverá uma razão para o sofrimento?

Volto para a realidade asfáltica do meu percurso em direção ao shopping e tento me preocupar com a peça faltante do computador, para assim afastar os pensa­mentos dolorosos que tomaram conta da minha mente. Sigo meu rumo olhando o rosto das pessoas nas calçadas. Escondido no carro, os passantes não percebem minha angústia e minha estupefação diante do patético da existência. Tenho ga­nas de baixar o vidro e gritar: “Hei, você aí parado. Você mesmo, na parada de ônibus, de camisa amarela. Podia ser você. Isso mesmo… podia ser você”. Desligo o rádio, e uma música da infância me vem à memória, tomando o lugar da balada romântica. Era uma música evangélica polifônica, à capella, tão ao gosto do meu pai. “Se a morte vier hoje o buscar, como está com seu Deus?”

E se ela viesse?

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Memórias do Homem de Vidro – 15

Febre

— Nem sou eu que o digo — falou Maximilian com o dedo em riste. — Está nos melhores compêndios atualizados de pediatria. E da pediatria mais alopática e conservadora possível: não existe justificativa para baixar a febre de uma criança durante um episódio de hipertermia, salvo situações bem específicas e raras. Digo que a febre deve ficar alta mesmo, porque ela tem evidentes efeitos terapêuticos.

— Você está sendo mais uma vez exagerado, Max.

Nadine cruzou os braços e fechou o cenho. Não acreditava nas condutas exage­radamente conservacionistas que Max frequentemente utilizava. Para ela, o uso das evidências científicas era correto, mas até um determinado limite.

— Exagerado? Não creio — continuou meu amigo. — Exagero seria não entender as limitações de uma mãe e condená-la por usar drogas em seu filho. Nisso cer­tamente estaremos de acordo. Nossa cultura é muito sedutora no uso de medica­mentos, e não usá-los depende de uma postura muito corajosa e determinada, que só se sustenta com informação e atualização constantes. A febre (mas pode­ríamos falar da diarreia, dos vômitos, da tosse, das dermatites, etc.) é um dos mais fabulosos mecanismos de defesa elaborados pelo nosso organismo. O Ric, aqui presente, deve lembrar quando juntos tivemos uma aula sobre febre, em um curso de medicina social. Quando confrontados com as características essenciais da febre, pensamos: “A febre é tudo o que um antibiótico gostaria de ser”. Ficamos ambos apaixonados pelos mecanismos fisiológicos de adaptação produzidos pelo processo febril, e ao mesmo tempo chocados com o que a biomedicina mercanti­lista nos fez acreditar, apenas para nos vender remédios a rodo. A febre é um dos mais belos exemplos dos equívocos produzidos pela incompreensão dos proces­sos adaptativos de que a espécie humana é capaz. Hahnemann, pai da homeopa­tia, cunhou uma frase que, pela radicalidade e significação, nunca mais saiu da minha cabeça: “A doença é a outra face da saúde”. Eu costumo sempre dizer que “a doença é o estado alterado do bem estar”. Ficamos “doentes”, alterados, para preservar nossa “saúde”, equilíbrio.

Nadine espichou o olho para mim, em uma atitude conhecida. Queria ver minha reação às palavras de Max, cuja euforia e paixão pareciam transbordar em cada palavra que pronunciava. Este, sem se deixar interromper pela nossa troca de olhares, continuou seu discurso, mantendo seu olhar fixado em Nadine.

— A hipertermia é uma máquina fantástica de modificações orgânicas. A febre aumenta a velocidade dos macrófagos, que são as células de defesa da linhagem branca, aumenta a diapedese, ou seja, a capacidade dos glóbulos brancos de romper a parede dos vasos e atacar os microrganismos na intimidade dos tecidos. Além disso, aumenta a capacidade fagocitária dos leucócitos, que é a habilidade de “comer” bactérias e vírus. Aumenta o metabolismo intensamente para cada grau acima de 37, incrementando a capacidade de defesa pela mobilização do organismo. A febre nos “põe para baixo” produzindo fadiga, cansaço e debilidade, o que é um fenômeno adaptativo dos mais sábios, porque nesses momentos o indivíduo necessita de repouso e resguardo. Se a febre não produzisse isso, quem se protegeria? A temperatura corporal elevada também é importante na destruição de bactérias e vírus e, além disso, sinaliza aos outros animais humanos a pre­sença de uma doença infecto-contagiosa, o que nos auxilia a preservar os que ainda estão sãos. Qual grávida não recebe orientações, pelo menos no início da gravidez, de não segurar no colo uma criança febril?

— Muito mais há a falar sobre as maravilhas da febre, mas seria enfadonho, ta­manhas são as suas vantagens para o processo de recuperação da homeostase. Atentem, meus colegas, apenas para esta observação: quanto maior a febre, maior a capacidade de adaptação presente e maior a energia do indivíduo. É por essa razão que principalmente crianças pequenas fazem febres altas, e o uso da expressão “fazem” é proposital, porque somos ativos em relação a ela, porque a sua energia vital é muito forte e poderosa.

A tudo eu ouvia em silêncio. Maximilian dominava a todos com sua emoção e seu conhecimento. Era todo paixão e veemência. Nadine, mesmo quando discordava, pedia para que Max lhe desse a sua opinião, porque ninguém escutava Max sem se contaminar pelo seu entusiasmo. Quando falava, agitava os braços, fazia mími­cas, representava, modificava a voz para se adaptar ao personagem que imitava. Eu sempre fui seu fã número um. Pensava que Max era uma daquelas pessoas absolutamente indispensáveis em qualquer ramo do conhecimento, porque unia em um só indivíduo a paixão, o saber e o conhecimento apurado. Tinha energia para combater um sistema em que não acreditava, mas ao mesmo tempo era pró­digo em apresentar as comprovações científicas do que afirmava. Acreditava no conhecimento como elemento de libertação e tinha a medicina como meio de levar consolo diante das agruras de uma vida breve e sofrida, sem com isso considerar-se um emissário divino infenso aos erros e dúvidas. Resolvi romper meu silêncio e ilustrar a descrição que Max nos oferecia.

— Eu tenho uma história interessante sobre febres, e acredito que você gostará dela, Max. Acho que você, Nadine, deverá ter um pouco de paciência. Sei que não é o modelo com o qual você lida, mas escute com atenção, pois talvez isso possa ajudá-la a compreender melhor a minha forma de pensar o adoecimento. É uma breve história sobre as febres e seus significados ocultos.

*   *   *

Há alguns anos, eu morava ao lado da casa em que vivia um casal de russos: Baba, “mamãe”, e Deda, “papai”. Gostavam de ser chamados pelos seus apelidos familiares em russo, até mesmo pelos vizinhos. Ambos fugiram de Stalin, che­gando ao nosso país com seus filhos pequenos após o término da segunda guerra, em 1949. Perderam muitos parentes vitimados pela fome e pelo frio, re­sultado da própria guerra na Rússia. Durante a fuga, seu segundo filho, de pouco mais de dois anos, pereceu de pneumonia durante uma evasão. Ambos tiveram uma vida sofrida e cheia de percalços, mas encontraram no Brasil um lugar tran­quilo em que puderam criar seus três filhos. Deda era um veterinário de renome em seu país, e acabou se tornando um dos introdutores das técnicas de insemina­ção artificial de gado no Brasil.

Pois no meio de uma madrugada sou chamado por Baba para atender seu “Peter” — Deda. Disse-me que ele estava estranho, parado, com o rosto vermelho e “de­primido”. Ele já estava com mais de 80 anos, mas era um homem forte e vigoroso. Lá chegando encontrei Deda deitado na cama. Apresentava o rosto avermelhado e tinha a respiração alterada. Perguntei-lhe o que havia ocorrido e ele respondeu “Nada. Apenas estou com um pouco de falta de ar e me sentindo fraco”.

— Ten tosse? Vômito? Dor de barriga? — indaguei enquanto avaliava seu pulso

A essas perguntas me respondeu negativamente. Baba, por trás dele, fez um mu­xoxo. Olhou-me firmemente, preocupando-se em que o marido não percebesse seus sinais para mim. Fazia “não” com as mãos e apontava para o marido, fe­chando o punho contra o peito, como se estivesse a bombear algo. Entendi que ela estava me dizendo que a emergência do quadro em seu esposo tinha origens emocionais. Verifiquei a temperatura: 40 ºC. Febre alta, que em homeopatia consideramos os episódios febris acima de 39,5 ºC. Como pode um homem de 80 anos produzir tamanha temperatura? Lembrei-me das aulas do curso de homeopatia: “Fique calmo. Este homem está mobilizado”. Ele estava usando toda sua capacidade curativa para buscar a nor­malização do organismo. Era importante respeitar a forma específica como um indivíduo escolhe seu caminho.Pedi que sentasse para que eu escutasse seu coração e pulmões. O coração es­tava acelerado, mas isso era obra da febre. Nada mais de importante ou significa­tivo na ausculta cardíaca. Os pulmões: consolidação em base de pulmão esquerdo. Crepitações finas. Diag­nóstico: pneumonia em base pulmonar esquerda. Temperatura, ausculta pulmonar positiva. Nada mais havia a diagnosticar. Uma pneumonia clássica.

— O que tenho, Ricardino? — perguntou Deda com o seu indefectível sotaque russo.

E agora? Digo o que ele tem de supetão? Peço que vá a um hospital para exa­mes, submetendo-o às rotinas escravizantes e coisificantes das emergências hos­pitalares? Se eu lhe disser o diagnóstico, não vou assustá-lo mais ainda? Por ou­tro lado, posso omitir a verdade?

— Deda — perguntei eu. — Tenho mais algumas perguntas a lhe fazer. São im­portantes para que eu possa entender o que o levou a desenvolver esse quadro febril. Por que o senhor ficou assim? O que aconteceu?

Ele pareceu momentaneamente desconcertado. Não sabia o que dizer. Fez um cara de desentendido, mas foi interrompido por Baba.

— Deda, meu amor. Fale para o Ricardo. Conte do álbum de fotografias.

Seu rosto então se modificou. Ele agora estava sério, taciturno, e as sobrancelhas curvaram-se para baixo. Não era mais possível dissimular os conteúdos afetivos escondidos por detrás do sintoma.

— Fale Deda — insistiu Baba. — Conte ao doutor porque você ficou assim.

Ele começou então a explicar o porquê do seu estado.

— Eu estava limpando a biblioteca, Ricardino. Estava retirando a poeira de antigos livros de veterinária quando encontrei um velho álbum de fotografias da família. Ali estavam as fotos antigas dos meus tios, pais, irmãos e sobrinhos.

Começou a chorar. Posso imaginar o que a visualização de familiares que ficaram perdidos em um passado tão remoto, separados por guerras e oceanos, poderia produzir em um velho sobrevivente de tantas atrocidades.

— Continue Deda — disse eu.

— Pois, enquanto eu folheava as páginas do álbum, olhei para o relógio da biblio­teca que mostrava ser hoje o dia 30. Pois foi exatamente em um dia 30 que o meu genro morreu em um estúpido acidente de automóvel. Ricardino, todas as pes­soas do álbum estavam mortas, até o meu genro, que morreu ainda muito jovem.

Agora estava chorando copiosamente, abraçado pela sua companheira de lutas, alegrias e tristezas.

— E qual foi seu sentimento, Deda? O que você pensou vendo as pessoas que um dia amou naquele álbum, todas já tendo passado para a outra vida? O que sentiu?

Ele parou um pouco para pensar, mas depois me olhou no fundo dos olhos e disse:

— Medo, Ricardino. Muito medo. Muito medo, medo, medo.

Abraçou-se a Baba e continuou a chorar como criança. Esta me lançou um gesto de interrupção, dizendo que ele estava no seu limite. Deda era um homem senti­mental, marcado pelas dores, traumatizado pelas tragédias. Olhou as imagens de morte e saudade estampadas no velho álbum e reconheceu que sua hora um dia chegaria. Pensou na própria morte e no fato de, talvez, deixar Baba sozinha, que por décadas o amparou e auxiliou. Temeu a morte porque percebeu que, por mais que a houvesse enganado nas fugas, no frio, na fome e no próprio pelotão de fu­zilamento que um dia enfrentara, fatalmente ela ainda seria a vencedora. Dela não há escapatória, e as fotos antigas e amareladas de familiares que já se foram es­tavam a lhe mostrar a infalibilidade de seus desígnios. Era a peça que faltava ao interrogatório: a causalidade. A causa emocional pro­funda estava escondida. Poderíamos ter encerrado o encontro médico nas triviali­dades do diagnóstico somático, mas preferimos, tal qual escafandristas, perscrutar as profundezas escuras das motivações inconscientes. Nada mais complexo, po­rém nada mais revelador. O medo de atingir tais profundidades é que nos faz ad­mitir uma medicina tão superficial como a que lidamos na contemporaneidade. A questão é que, de forma espelhar, adentrar a intimidade de um paciente nos faz enfrentar nossas próprias falibilidades e limitações. Quem quer bancar o mergu­lhador de inconsciências em um mundo de rasas e ilusórias aparências?

Nossa medicina faz tal qual a história do homem que perdeu sua chave. Procu­rando insistentemente por ela, acaba esbarrando em um amigo, que se oferece para ajudá-lo. Passada mais uma hora de procura inútil, o desesperançado amigo lhe pergunta: “Tem certeza de que perdeu a chave aqui, embaixo do poste de luz?”. O dono da chave então responde: “Não, eu não perdi minha chave aqui! Perdi lá embaixo na rua, mas lá está tão escuro que resolvi procurar cá em cima, onde está mais claro”.

Fazemos com os sintomas emocionais e psicológicos dos nossos pacientes o mesmo que o protagonista da historieta faz com o breu que esconde sua chave. Fugimos da escuridão das incertezas e das dores profundamente escondidas, porque elas nos amedrontam e afugentam. Preferimos a claridade ilusória de exames laboratoriais e sinais clínicos manifestos aos sentidos. Mesmo sabendo da importância dessas características somáticas na elucidação dos mistérios di­agnósticos, é certo que elas representam apenas a ponta do iceberg que constitui o sofrimento construído pelos pacientes. A humildade de encarar um universo re­côndito dentro de cada ser que sofre é a principal ferramenta para se encontrar uma forma mais completa e abrangente de auxílio. Somente munindo-se da cora­gem fundamental para encarar a escuridão dos nossos sentimentos é que pode­remos, também, ajudar a quem nos solicita assistência e conforto.

Estava feito o diagnóstico, e o tema essencial do quadro era o medo. Crise de medo, febre alta, pele quente e seca, consolidação pulmonar em base esquerda, sede, aparecimento abrupto da sintomatologia. Um remédio brotava, dentre muitos que eram sugeridos: Aconitum napellus. Falei com Baba e perguntei se devia lhe dizer exatamente o que tinha. Ela res­pondeu que, se fosse possível, seria preferível omitir a expressão “pneumonia”, para não deixá-lo ainda mais atemorizado. Concordei com a ideia, mas expliquei que lhe diria exatamente o que tinha, procurando não amedrontá-lo mais ainda com essa palavra.

— Deda — disse eu de forma pausada. — Há uma infecção na base do seu pul­mão esquerdo. Você está com febre alta, mas não há justificativa para diminuí-la. Ela está cumprindo uma função importante no seu sistema de adaptação e defesa. Prefiro que ela se mantenha como está, ok? Estou lhe receitando um medica­mento homeopático que o senhor vai tomar de duas em duas horas. A febre ainda vai continuar mais um pouco, mas quero que o senhor comece agora a medica­ção, por isso eu lhe deixo os glóbulos que trouxe na minha botica. Combinado?

Ele concordou. Mexeu com a cabeça afirmativamente sem dizer palavra alguma. Ainda estava afetado pelas emoções. Baba passava a mão em sua alva cabeça, e lhe dizia palavras carinhosas em russo. Levantei-me e, quando estava para sair, ele ainda me disse:

Ricardino, eu vou ficar bom dessa pneumonia, não é?

Tive que rir. Não adiantaram os meus truques. O velho veterinário não ia se deixar enganar dessa forma. Era idoso, mas estava longe de ser bobo.

— Não, Deda — disse eu sem conter o sorriso. — Não é dessa vez que vão levá-lo.

Voltei à sua casa naquela mesma manhã. Encontrei Deda ainda abatido, mas sentado na mesa da cozinha e tomando café. Escutei seu pulmão e parecia estar a mesma coisa, mas o ânimo havia voltado parcialmente e a febre não havia mais se manifestado.

— Como está? — perguntei.

— Muito melhor — disse ele sorrindo.

No outro dia, o pulmão estava limpo, pouco mais de 24 horas depois. Nem um sinal de secreção ou ruídos estranhos. A febre acabara, porque já havia cumprido seu destino, pensei eu. Mesmo estando ainda fraco, estava lúcido, ativo, alegre e sem sintomas preocupantes. Ok, Deda, pensei eu. Você a enganou mais uma vez. Baba me lançou um sorriso de gratidão e Deda me deu um abraço à moda russa, com bastante força e fortes batidas nas costas.

*   *   *

Nadine manteve-se séria durante a minha breve história, mas percebi que, mesmo com algumas discordâncias, ela acreditava na possibilidade de que o psiquismo dos pacientes tivesse influência decisiva no aparecimento de sintomatologia, mesmo que complexa e de difícil interpretação. Nadine aos poucos começava a lidar com a questão da “psicossomática”, termo que Max deplorava — porque divi­dia “psique” e “soma”, que para ele eram indissociáveis — mas que para mim so­ava como o reconhecimento da mútua influência entre os aspectos psicológicos e fisiológicos manifestos pela energia vital em um determinado indivíduo.

Max acompanhou a história de longe, até porque já a conhecia, mas me lançou um sorriso assim que ela terminou.

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Extrema unção

Entre as atividades dos estudantes de Medicina estava fazer a constatação de morte quando algum velhinho partia para o mundo espiritual no meio da madrugada. É claro que a maioria dessas atividades seriam vistas com outros olhos hoje em dia, mas esta é uma história do início dos anos 80, com várias décadas a nos separar.

Em uma oportunidade fui chamado no meio da madrugada para fazer a constatação de óbito de uma senhora de quase 100 anos que estava no hospital só para fazer esta passagem. Acordei assustado com o telefone do quarto e saí caminhando ainda com os olhos fechados. Não havia tempo para dormir, e no dia seguinte ainda teria que pegar um ônibus intermunicipal para chegar à minha cidade e voltar às aulas. Caminhei a passos trôpegos até o andar de cima, onde ficava a enfermaria de clínica médica. Atravessei o corredor às escuras e me deparei com três enfermeiras postadas à porta do único quarto com as luzes acesas. Elas apontaram para dentro do aposento e eu adentrei nele com uma certa solenidade, mas ainda incomodado pela iluminação do ambiente.

Reinava o silêncio. Entrei no recinto e pude ver as 5 ou 6 camas ocupadas com senhoras muito velhas que dormiam em sono profundo. Na minha frente, na primeira cama à esquerda, uma senhora tinhas os olhos fundos e a boca aberta. O rosto pálido denunciava emagrecimento pronunciado e a degenerescência do corpo. Ainda no umbral da consciência, tentando me desvencilhar do sono mórbido, segurei sua mão e resolvi cumprir o ritual que me acostumei a realizar nestas situações. A morte é uma passagem, penso eu. Mais do que o abandono da carne, o espírito que dela se desprende passa por um rito, um fenômeno energético a conduzir o desligamento do invólucro material. Tinha eu, na época, a ideia de que este momento deveria ser ritualizado para que pudesse ser marcado, não apenas para o benefício da alma que partia, mas também para as almas que ficam, nós mesmos. Para entender a vida, sempre repetia Max, é necessário buscar compreender a morte.

Segurei sua mão e disse algumas poucas palavras, que se perdem na brisa gelada das memórias distantes, mas que certamente seriam algo como “Espero que neste momento em que sua alma se separa do corpo estejam contigo os amores que cultivou por sua passagem terrena, e que seja recebida como uma filha que volta ao convívio dos seus. Espero que, do lado de lá, a recepção seja calorosa e afetiva, para que os que aqui ficam não se sintam tão tristes ao saberem do reencontro feliz com as pessoas amadas que te esperam”.

É possível que fossem estas as palavras que eu diria, mas a verdade é que não pude dize-las como desejava. Segurei a mão da pálida paciente e, mal terminando de dizer a primeira frase, a “defunta” abriu os olhos e gritou, um grito estridente, que me deixou em pânico absoluto. Ainda com os olhos arregalados ela me olha fixamente e pergunta:

– Doutor, o que o senhor faz aqui? O que houve comigo? Alguém me ajude!!

Sem entender nada olho para a porta e encontro três enfermeiras dobrando-se em gargalhadas silenciosas. Seguravam as panças tentando se conter e uma delas, acocorada ao solo, ria e se contorcia sem parar. Uma outra, mais caridosa, apontou o dedo para outra cama, onde a verdadeira falecida se encontrava deitada, já fria pela morte que havia ocorrido alguns minutos antes da minha chegada.

Sem saber o que dizer, e tentando tranquilizar a paciente, eu apenas continuei falando como se estivesse ali para uma “ronda de bem aventuranças” na madrugada. Permaneci segurando sua mão e disse que minha presença ali era apenas para me assegurar que as “mocinhas” estavam bem e dormiam tranquilas. Sua boca repleta de vazios sorriu para mim, fechou os olhos e voltou a dormir, enquanto eu me dirigia à verdadeira paciente para constatar o óbito.

Enfermeiras sacanas. Elas me pagam, nesta ou em outra vida…

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Filhos

São os filhos que nos deixam velhos; os netos apenas passam a régua e fecham a tampa do esquife. Isso é uma verdade insofismável, o destino inescapável que a geração que nos segue oferece como maldição. Não fosse o fato do meu filho estar completando hoje 42 anos eu mesmo poderia passar por esta idade, bastando para isso uma brilhantina no cabelo, uma roupa prafrentex, um raibã, uns pisantes ajeitados e ninguém repararia que tenho um pouco mais. Porém, como dissimular uma idade assim quando meu próprio filho já ultrapassou a barreira dos “enta”? Como explicar às pequenas que tenho a mesma idade do meu filho? Não colaria; eles nos denunciam, apontam seus dedos miúdos contra nós e desvelam o que tanto tentamos esconder.

Os filhos nos condenam à velhice. Eles nos lembram o tempo que passou. Eles nos apontam a linha do horizonte que se aproxima a cada dia, como um meteoro que se acerca da terra a cada giro diário, nos avisando do fim inexorável. É o ciclo que se refaz. Mas aparte de tantas denúncias, eles nos lembram do que nos tornamos e como isso ocorreu. Cada vez que dizem e fazem algo, não passa um dia em que não lembre “isso eu também já fiz”, ou “também já vi o mundo com esses olhos“. Vejo a mim mesmo nos passos dos meus filhos em cada fase da vida. Penso que todas as suas besteiras eu também as fiz, e suas alegrias também foram minhas, apenas umas poucas décadas antes. Entretanto, eles também são o farol a nos guiar na escuridão da senectude, lembrando o quanto de esperança ainda sobrevive.

Minha avó, Mammy, não permitiu que nenhum de seus netos a chamasse de vovó. Determinou que os netos a chamassem como seus filhos o faziam, a palavra inglesa para “mamãe”. Essa era sua forma de evitar a palavra que denunciaria sua idade. Na última conversa lúcida que tive com meu pai, no hospital onde veio a falecer, ele já estava bastante confuso. Ainda assim, me apresentei a ele dizendo meu nome “Ricardo, seu filho”. Ele voltou o rosto para mim, olhou fundo em meus olhos procurando o foco e, com um sorriso maroto, disse: “Ricardo? Como tu estás velho!!”, e riu gostoso, para depois mergulhar de novo em seu mundo que aos poucos se apagava. Para mim a mensagem ficou clara: ao se despedir da vida decidiu guardar as imagens reconfortantes dos filhos ainda pequenos e jovens, presentes nos seus momentos mais felizes. Quando confrontado com a realidade, preferiu sorrir e acreditar se tratar de uma ilusão. Escolheu a imagem idealizada, aquela que levaria para o outro plano.

Não há dúvida de que farei o mesmo. Mesmo nos 42 anos que hoje meu filho e minha nora Nani completam, eles continuarão sendo os meninos e meninas da João Bonumá, felizes e despreocupados jogando bola na rua, e na minha derradeira cama, quando se acercarem para a despedida deste velho, também sorrirei dizendo: “Como vocês estão velhos!!”, mostrando que também eu levarei para o além suas faces infantis e felizes, oferecendo a eles a esperança e a alegria que lhes deixo como herança.

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Senectude – ou Crepúsculo

Chega um tempo em que a fragilidade dos corpos nos obriga a abrir mão de um dos bens mais preciosos: a autonomia, valor que tanto exaltamos quando tratamos dos direitos humanos mais elementares. Todavia, em algum momento da existência precisaremos deixar a autonomia em nome da manutenção da própria vida. Esse é um tema que percorre a vida de quase todos, e eu mesmo passei isso com meus avós paternos e minha mãe. Em um determinado momento nossos familiares – em especial os avós e depois os pais – perdem sua independência e sua autonomia em função da fraqueza, de alguma doença, da idade avançada ou das perdas cognitivas. A forma de reagir a esta situação é variável, mas ela estará inscrita nos detalhes de toda a vida pregressa de quem envelhece, e por isso é muitas vezes possível prever como cada um lidará com este evento.

Muitos, como meu avô, lutaram contra a inexorabilidade da sua dependência; resistiu o quanto pode, mas foi literalmente carregado à força para fora de casa. Outros, como minhas avós, minha mãe e minha sogra, aceitaram de forma mais tranquila, como se esta passagem fosse uma parte natural da vida – alguém cuidaria delas como elas cuidaram de tantos durante suas vidas.

Talvez aqui seja possível estabelecer uma diferença essencial entre a vivência da senescência para os homens e para as mulheres, mesmo sabendo que esta vivência será sempre única e pessoal. Para os homens a perda da autonomia é muitas vezes vista como um golpe mortal em seu amor próprio. Retire-o de seu domínio e ele se tornará vulnerável, fraco e impotente. Por seu turno, muitas mulheres (todas da minha família) se comportam de forma dócil e aceitam o fato de que, em algum momento, é chegada a hora de serem cuidadas e amparadas, da mesma forma como o destino determinou que cuidassem de tantos filhos e netos. Já meu pai sempre disse que não aceitaria os cuidados de ninguém. Deixou isso claro quando ficou viúvo aos 90 anos e não aceitou se mudar para a casa de qualquer um dos filhos. Quando, por fim, adoeceu, morreu muito rápido, sem se submeter à “tortura” de viver sob os cuidados de alguém. Antes dele meu avô, por sua vez, xingou, sapateou e nunca perdoou meu pai por tê-lo retirado de sua casa, mesmo quando sequer conseguia se mover. Nunca aceitou “viver de favores”.

Para o homem sua casa é seu mundo, e de minha parte, já reconheço de que material sou feito. Portanto, não tenho dúvida alguma de que também vou resistir até onde tiver força. Viver sob o cuidado alheio é humilhante para quem sempre valorizou a liberdade e a autodeterminação.

Algum momento, entretanto, haverá em que alguém chegará ao meu ouvido e dirá: “Pai, não dá mais. Chega. Não vamos aceitar ver você sofrendo por este orgulho insano. Você terá que sair de onde está e ficar sob os nossos cuidados”. Nesse momento eu saberei que não tenho como me defender e, mesmo resistindo, serei obrigado a aceitar. Diante desse destino inescapável, eu já me preparo para perdoar meus filhos e netos pela palavras duras que sei que vou ouvir; é melhor fazer isso enquanto ainda existe lucidez suficiente. Aceitar o declínio da vida é preparar-se lentamente para a morte. Antes mesmo, quando percebemos nossa sutil e crescente desimportância na tessitura da vida, já é o momento de compreender que estas são as suas sábias regras, e que cabe tão somente aceitar o quinhão que a nós é determinado.

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Apenas imagine…

Faça um simples exercício de imaginação e pense como reagiríamos se a China comunista tivesse esmagado uma rebelião no Tibete e, através de um bombardeio incessante sobre regiões densamente habitadas e houvesse matado mais de 15 mil civis, entre estes 8700 crianças tibetanas – até agora. Diante de tamanha matança, como seriam as manchetes nos principais meios de comunicação do ocidente? Como seriam tratados os chineses e suas autoridades? Que país europeu estaria apoiando a China e sua carnificina com slogans “I Stand with China”?

Por que a diferença no tratamento destes dois episódios desumanos e brutais? O que está por trás desse horror que não sejam os interesses capitalistas, o racismo e a perversidade mais explícita? Qual a diferença entre os campos de concentração nazi e o campo de concentração de Gaza? Por que aceitamos as desculpas cretinas dos apoiadores de Israel, aceitando haver razão para matar 1000 crianças para atingir um único combatente do Hamas? A resposta é óbvia: Israel é uma ponta de lança do imperialismo cravada no Oriente Médio, às custas da liberdade e da autonomia da Palestina. Além disso, Israel, através do AIPAC, financia a maioria dos políticos americanos, em especial do partido Democrata. Fica fácil entender porque tanto amor devotado a esta colônia europeia branca entre os países árabes.

Acrescento a estes questionamentos, perguntas direcionadas à imprensa: por que insistimos em chamar o Hamas de terrorista, e não chamamos de terroristas os brancos e europeus que roubaram suas terras, os humilharam e torturaram a ponto de não restar nenhuma alternativa além da reação violenta e feroz? Qual a razão para acreditarmos como aceitáveis as milhares de violências cotidianas cometidas contra a população palestina, mas nos escandalizamos quando aqueles que sofrem os abusos durante décadas finalmente reagem às agressões? Por qual motivo aceitamos o Apartheid declarado e explícito que impede o acesso dos palestinos à plena cidadania? “Dos rios dizemos violentos, mas não chamamos violentas as margens que os oprimem”. (Bertold Brecht)

Não é possível calar-se diante do apoio necessário à Palestina. É necessário que as denúncias se mantenham; é preciso expressar cotidianamente nossa inconformidade. Precisamos deixar claro o lado da história em que nos colocamos, apresentando a todos, e a todo momento, a realidade desumana do sionismo. Não permita que normalizem o racismo, a exclusão e o preconceito contra a coletividade Palestina. Peço para cada um que olhe para a foto desse texto e se imagine correndo com um filho nos braços, recém retirado dos escombros de sua casa, covardemente destruída pelas bombas sionistas. Difícil? Se esta identificação é complicada, então imagine que é uma criança loira e de olhos azuis atacada por nazistas no gueto de Varsóvia; talvez com esta pequena alteração na cor da pele fique mais fácil criar esta identificação. Miko Peled, ativista israelense pela palestina, filho de um general israelense que atuou na Guerra dos 6 dias, afirma que é “impossível vencer os palestinos”. Em uma postagem recente, deixa claro que a guerra contra Gaza é a guerra contra a paz. A imaginária vitória de Israel nessa guerra genocida significaria a vitória do racismo, da exclusão, da brutalidade e do abuso. Por isso somos todos Palestina Livre.

Palestine will be free!!! 

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Canção da Morte

Eu francamente não imaginava ver de novo a retórica claramente racista do sionismo ganhar tantos adeptos, ainda mais usando as mesmas justificativas adotadas por Adolf e sua turma há um século. Em verdade essa é uma demonstração clara de ingenuidade: essas ideias jamais desapareceram do nosso repertório de perversidades; apenas ficaram adormecidas, hibernando, silenciosamente esperando que as crises inevitáveis do capitalismo pudessem desenterrá-las. Redivivas pelo pânico, agora podem ser novamente utilizadas como a desculpa oportuna para os abusos e as crueldades. No atual ataque de Israel contra o povo palestino contabilizamos mais de 12 mil mortos até agora (final de novembro 2023), dentre eles 5000 crianças, e metade da cidade destruída. Apesar disso, em uma recente pesquisa, mais de 90% dos israelenses acreditam que a força utilizada contra Gaza é pouca ou adequada, um resultado semelhante ao apoio recebido pelo IDF depois do último grande massacre em Gaza em 2014, quando 95% dos judeus israelenses apoiaram os ataques. No bombardeio atual, menos de 2% dos judeus israelenses acreditam que houve exagero. Essa é uma sociedade monstruosa.

“Ahhh, mas os ataques, os bebês, as mulheres abusadas, os terroristas do 7 de outubro…” Amigo, há 75 anos todo santo dia é 7 de outubro na Palestina. Não há um dia sequer que não tenha ocorrido uma grave violação de direitos humanos nos territórios ocupados, seja na Cisjordânia, Jerusalém oriental ou na Faixa de Gaza. A diferença é que a crueldade inominável que se repete por lá é de verdade e não mentiras plantadas pela imprensa corporativa burguesa para escamotear os crimes hediondos da etnocracia colonialista e racista de Israel. É tempo de parar com o terror racista de Israel.

Antes de julgarem as ações dos combatentes palestinos, liderados pelo Hamas, coloquem-se na posição deles, subjugados por invasores europeus racistas e criminosos, condenados a uma cidadania de segunda classe, confinados no maior campo de concentração a céu aberto do mundo ou aprisionados sem o devido processo legal em penitenciárias israelense, sem crime ou mesmo acusação, bastando apenas o interesse e o desejo das autoridades. Se a sua mãe, irmãos, amigos, inclusive crianças estivessem presos em masmorras israelenses, sofrendo todo tipo de abusos nas mãos de fascistas, vocês não apoiariam uma ação extrema como a que aconteceu em 7 de outubro? Não fariam isso por seus filhos? Para quem reclama das ações violentas dos Hamas contra os chacais racistas de Israel, fica a lembrança de que durante 1 ano e 8 meses em 2018 houve protestos pacíficos nas bordas de Gaza chamados ” A Grande Marcha de Retorno“. Tudo o que os admiradores de Gandhi sempre desejaram, não? Pois o resultado foi de 223 palestinos mortos por protestar pacificamente e mais de 10 mil feridos. Ou seja: Israel só entende a linguagem da violência, pois os racistas de lá apenas acreditam na força bruta.

Se implorar não basta, se apelar para a justiça é insuficiente, quem pode julgar aqueles que, em desespero, escolhem a violência como forma de libertação? Como se sentiriam aqueles cujos filhos e família tivessem negadas as mais básicas necessidades humanas, como beber água? Mas nada disso impressiona os habitantes de Israel, educados desde a mais tenra idade a odiar os “árabes”. Nem mesmo as crianças em Israel escapam dessa educação para o ódio; em Israel elas são ensinadas desde a mais tenra idade a odiar e destruir. Numa recente campanha publicitária característica de “white washing” de Israel, elas cantam canções onde exaltam o exército de Israel e apoiam a destruição de Gaza. Ou seja: para mudar a imagem deteriorada de Israel agora estão apelando para as emoções mais primitivas e para a imagem de crianças cantando canções de morte. Não haveria como Israel não se tornar a grande pátria do fascismo e do racismo.

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Voltar pra casa…

Subitamente “Manhã de Carnaval” é interrompida com dois (talvez três) estampidos secos, que cortaram a harmonia do nosso canto, cruzando o vazio escuro da noite, interrompendo nossos glissandos e deixando o silêncio como rastro. Por alguns segundos o acompanhamento ficou sem a melodia a lhe guiar.

– Um escapamento de moto, disse Claiton, que acabara de afirmar a “beleza da manhã” nas palavras de Luiz Bonfá.

Mantivemos o silêncio por mais alguns instantes, para ver se haveria mais surpresas, mas por ora a noite não tinha mais nada a nos declarar. Mudamos de assunto, cantamos “Canto em qualquer canto”, sorvemos o último gole de cerveja e raspamos o prato de bolo que Lúcio nos trouxe. O ensaio do “DaBocaPraFora” se encerrava, e combinamos nos encontrar em dois dias para cantar no Instituto de Artes.

Depois das despedidas na casa de Luciane coube a mim, mais uma vez, a agradável tarefa de levar Gica e Elba para suas casas. Entramos no carro e imediatamente selecionamos a trilha sonora de nossa curta trajetória. “Almondegas” seria o prato da noite, em preparativos para o show de reencontro do grupo que ocorreria em duas semanas.

Foram necessários apenas 50 metros em nosso caminho para que as coisas, por fim, fizessem sentido. Uma viatura da polícia bloqueava nossa passagem. Alguns metros adiante um corpo jazia no asfalto duro da noite quente.

– Eram tiros, dissemos, quase ao mesmo tempo, como se a ficha caísse em uníssono.

– Vou ter que dar a volta, disse, enquanto a crueza da cena era digerida por todos e o carro desviava da tragédia.

Depois de alguns momentos Gica nos disse, com uma voz pesada e séria:

– Alguém não vai voltar para casa esta noite.

Ficamos em silêncio por alguns momentos. Ela continuou,

– Sabe, não importa o que houve, se era uma boa pessoa ou se era um criminoso. Não sabemos se a vítima era jovem ou idosa. Por pior que fosse, esta pessoa tinha família, irmãos, pais talvez. Foi pequeno, criança, brincou na chuva como todos nós; teve sonhos e alegrias. Mas hoje não vai voltar para casa.

Mantivemos nosso silêncio de reverência. No carro havia um pai, duas mães e três avós. Todos nós temos ideia do que seja o vazio de um filho que não volta, de uma espera angustiante e o som metálico e tenebroso de um telefonema trazendo a pior das notícias. Todos entendemos a tristeza de perder, pois por certo já amamos o suficiente para entender o quanto pode doer a falta de alguém.

Seguimos nosso caminho de volta para casa, para os nossos amores, escutando nossa música, lembrando dos filhos e netos e com nossa mente conectada a alguém que, esta noite, não vai voltar para casa.

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