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Sonhos

Nas últimas décadas, em especial depois da derrocada do bloco soviético e a dominância unilateral imperialista, intensificou-se um tipo de narrativa que valoriza o empenho pessoal do sujeito que, para alcançar o sucesso, precisa basicamente de um combustível de ânimo pessoal, desejo, garra e determinação. “O céu é o limite” bradam os entusiastas da promessa capitalista de transformar cidadãos comuns em megaempresários, usando para isso apenas a chama de dedicação e o empenho para subir indefinidamente. Os sonhos de construção de uma sociedade mais justa, que eram nossos devaneios coletivos na virada dos anos 60-70 do século passado, foram aniquilados pela realidade da queda do muro e por uma ideologia de crescimento através de projetos individuais de riqueza e poder. Não havia mais espaço para projetos coletivos: o mundo havia se tornado um gigantesco “cada um por si”.

Com isso proliferaram histórias de pessoas que, partindo de quase nada e munidos apenas de sonhos, alcançaram fortuna e poder. Entramos na era do “empreendedorismo”, dos coaches, dos gurus, dos influencers de mercado, onde ter seu próprio negócio e investir na bolsa é sinônimo de uma vida aventureira e cheia de ação. Por outro lado, ter um trabalho formal, ser um médico, lojista, radialista, advogado, ter carteira assinada e – pior ainda – ser funcionário público é sinal de fracasso. No nosso imaginário coletivo surgiram exemplos maravilhosos de brasileiros que foram trabalhar na construção civil nos Estados Unidos e depois se tornaram empreiteiros de sucesso, mas estrategicamente nos escondem que esse resultado não passa de 0.001% dos patrícios que se aventuram nas terras gringas, sendo a maioria empregados que se permitem explorar, sem qualquer seguro de saúde e sem previdência. O capitalismo é um bilhete de loteria, ou um dízimo doado ao pastor: apenas àqueles munidos de fé será possível alcançar a graça.

No meio destes “empreendedores” aparecem aqueles que, sem qualquer habilidade especial, ou impedidos de usarem as que têm por falta de lugar ou condições de exercer seu ofício, se jogam à venda de comida na rua, de porta em porta, na praia ou nas esquinas das grandes cidades. Também a eles se oferece a ideia de que, com persistência e obstinação, um dia chegarão ao sucesso. O sujeito que vende bolo de pote na saída da faculdade para os estudantes esfomeados que saem das aulas é visto como um empreendedor moderno atrás do seu sonho dourado de ascensão social.

Não é difícil perceber que não existe nenhum “sonho” em vender estas guloseimas. Não haveria nem se – ao invés de bolo de pote – fossem “sonhos” de padaria. O que há nessas pessoas é apenas necessidade, muitas vezes desespero, produzidos por uma sociedade onde seu trabalho não é valorizado ou é mal utilizado. Entretanto, esta sociedade agora os trata como sonhadores, gente movida por um projeto dourado de futuro, o qual, através do trabalho árduo e persistente, um dia poderá ser alcançado. Não é justo romantizar a pobreza e a escassez.; não há beleza, nobreza ou um futuro brilhante para um homem velho vendendo bolinhos na rua. O que o move é apenas o rugir do aluguel atrasado e o trovão das contas a pagar; é isso que o faz acordar todas as manhãs para vender seus produtos.

Sim, comprem os bolos de pote, ajudem o próximo, distribuam riqueza, valorizem o trabalho alheio e reconheçam o esforço destes nobres sujeitos que vendem sua força de trabalho para dar o devido sustento às suas famílias, mas não caiam na fantasia neoliberal de chamar estes sujeitos de “empreendedores” e seu negócio um “sonho”. Não sejam dessas pessoas que acreditam na fábula de que a escravidão do neofeudalismo capitalista é uma “oportunidade”, e a exploração a que são submetidos é, em verdade, uma “chance de crescer”. Glamurizar a pobreza e o sacrifício não é a missão de quem projeta um futuro de paz social. Não temos mais o direito de cair nesse engano.

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Bibi

Creio que as críticas à Netanyahu como primeiro ministro de Israel seguem há décadas o mesmo roteiro repetitivo, para posteriormente serem disseminadas através do sionismo de esquerda que se espalhou pelo mundo. A ideia de construir uma disputa fulanizada onde, de um lado está um líder corrupto e assassino e do outro uma organização terrorista, sempre é usada para nos impedir de ver a realidade do colonialismo na Palestina e seu sistema de opressão. No caso de Benjamin Netanyahu ele é sempre a desculpa perfeita para os sionistas diante da barbárie cotidiana contra a população de Gaza e da Cisjordânia, mas está na hora de olharmos este personagem de uma maneira mais realista para entender as verdadeiras origens de sua ascensão ao poder.

Em primeiro lugar, é possível que Netanyahu seja o mais moderado entre os chacais fascistas que o acompanham no Knesset. Basta escutar e ler as declarações de alguns ministros e membros do Likud para ver o nível de barbárie racista e genocida que são capazes de expressar. Portanto, dizer que o problema de Israel é o seu líder inconsequente e a extrema direita que tomou conta do país há muitos anos, e afirmar que a queda de Netanyahu seria mandatória, é no mínimo uma proposta ingênua. Imaginar que um outro primeiro ministro teria uma atitude mais humana, condescendente e que objetivasse a paz com a Palestina não encontra respaldo algum na história recente. Nunca houve um representante de Israel que aceitasse a paz com os palestinos, seja através da constituição de uma nação plurinacional seja através da combalida proposta dos “dois Estados”. Os acordos de Camp David (1978) e Oslo (1993) demonstram de forma inequívoca que nunca houve real interesse em Israel para negociar. Assim sendo, a simples retirada de Netanyahu do poder não deveria nos oferecer qualquer esperança de mudança. Talvez até o pior viesse a acontecer: seu substituto poderia apoiar a “solução final”, que está na boca de muitos israelenses desde há muitos anos.

O que é preciso entender sobre o Estado Sionista de Israel é de que essa “rogue nation” está assentada sobre a criação de um “Estado Judeu“. Ou seja, foram muito mais adiante do que até a própria África do Sul se aventurou a fazer, criando um país artificial para uma única etnia. Seria como se o Brasil criasse um país cristão onde todas as outras religiões não teriam acesso à plena cidadania; ou se nosso país se tornasse a nação para apenas uma cor de pele, a qual teria direito exclusivo à moradia ou a postos no governo. Todavia, ao contrário do que a farsa da esquerda sionista tenta nos convencer, esta não é uma proposta do governo de extrema direita que governa o país, mas um projeto de Estado, um modelo excludente e racista que vai se manter inobstante o governo que estiver à frente dos cidadãos israelenses. O sionismo que apregoa a exclusão dos habitantes da Palestina e que nega a própria existência do povo palestino, é a espinha dorsal da sociedade de Israel, e nenhum governante chegaria ao topo da escala de poder sem respeitar suas premissas. Como dizem muitas autoridades israelenses, para o cidadão Palestino só restariam 3 opções: 1- emigrar, 2- submeter-se aos israelenses como serviçais e 3- morrer.

Gritar “Fora Netanyahu” é um ato diversionista, incapaz de produzir qualquer solução em médio prazo. Esta não passa de uma tentativa desesperada de maquiar a estrutura apodrecida de Israel, ao conectar os dramas atuais à contingência política, como se o governo de Netanyahu fosse diferente dos demais. Na perspectiva dos palestinos todos os governos sionistas são idênticos. É preciso entender, de uma vez por todas, que esse primeiro ministro é tão somente a consequência de uma estrutura colonial e opressora sobre a região, e não sua causa. Afastá-lo do poder sem entender as forças que o conduziram para lá apenas retira o tirano da ocasião, sem estabelecer um novo paradigma. Tanto quanto Bolsonaro, Trump ou Milei, estes sujeitos são construções sociais que obedecem à demanda de um sociedade que os comanda, e é esse povo que precisa ser transformado – ou vencido.

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Pesos e Medidas

Para quem acha que os ataques do Hamas foram horríveis, deixo claro que numa guerra nada é bonito. Só é menos feio do que bombardear um edifício de apartamentos enquanto crianças dormem em seus quartos. Responda: a revolução americana que em 1776 encerrou o colonialismo britânico foi realizada com flores, abraços, despedidas e convenções de paz? Os insurgentes americanos não cometeram atrocidades durante a revolta? Seria imaginável que a Revolução Francesa ocorresse sem derrubar a Bastilha e sem as prisões (e morte) de membros da Realeza? As revoluções anticoloniais de Angola, Moçambique e Argélia – que encerraram as dominações cruéis e brutais do imperialismo europeu em África – poderiam ocorrer sem violência? Com diálogo? Com debates? Com acertos e cumprimentos? Ou alguém acha que Zumbi deveria ter sido gentil e “civilizado” com os colonos portugueses que escravizavam e brutalizavam seu povo? Por que esse tipo de civilidade só se cobra quando os oprimidos se insurgem?

A libertação da Coreia do jugo japonês e posteriormente do controle imperialista americano seria possível sem uma guerra sangrenta? Que povo opressor até hoje na história desistiu de seu domínio sem terror? A libertação do Vietnã da dominação da França e dos Estados Unidos seria viável sem utilizar o terror e a guerra sangrenta? Que tipo de libertação de um povo ocorreu sem guerra? Se a guerra é evitável, por que Israel massacra o povo Palestino desde o Nakba? Por que atacam agora ao invés de negociar a paz?

Estes que se horrorizam com as mortes de israelenses quantas vezes se manifestaram contra o terrorismo de Estado de Israel nos últimos 70 anos, que destrói famílias inteiras em nome do colonialismo sionista? Será mesmo que só agora souberam dos massacres, das torturas, das humilhações e do confinamento em Gaza? Por que só agora, quando os oprimidos finalmente reagem, puderam enxergar a brutalidade e a violência “injustificáveis”? Se o ataque do Hamas permitiu que a realidade do horror Palestino viesse à tona, então ao menos algo de bom brotou de tamanha tristeza. Por que dois pesos e duas medidas? Por que desumanizamos mais uma vez os palestinos, condenando-os a sofrer em silêncio, imóveis, sem sequer o direito de reagir ao seu próprio extermínio?

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Opressão de classe

A questão de classe se sobrepõe à questão racial. Negros foram escravizados há 500 anos, trazidos de África, para serem trabalhadores forçados nas propriedades brasileiras, mas na história da Grécia e de Roma outros povos brancos foram trazidos para as metrópoles do mundo antigo como escravizados. Até na própria África negra havia escravos negros de senhores igualmente negros. Outros exemplos são os asiáticos no leste americano e os irlandeses pelos ingleses, tratados com o desprezo reservado às classes inferiores. A opressão dos mais fortes usa a cor da pele como desculpa para oprimir e explorar os mais fragilizados. No caso do Brasil – semelhante à dos Estados Unidos – a luta contra o racismo não pode assumir o caráter identitário, privilegiando apenas uma identidade, acreditando que o sofrimentos dos negros é único e uniforme.

Em verdade, esse sofrimento só será exterminado quando os negros tiverem acesso aos recursos econômicos para a sobrevivência digna nessa sociedade, um movimento que não vai acontecer apenas através da ascensão de alguns poucos negros às classes superiores, mas com a supressão das classes sociais. Sem classes dominantes e enormes contingentes de dominados, o racismo não terá como se expressar. Por essa razão, lutar contra o racismo sem entender que ele é uma consequência da sociedade capitalista de classes apenas gera conflito dentro da classe operária. É por essa específica razão que a direita americana oferece um apoio tão consistente para organizações identitárias que objetivam a divisão da classe trabalhadora, usando a luta antirracista, feminista e pró LGBT para minar a luta contra o capitalismo.

Não há dúvida de que ninguém vê senhoras negras dirigindo uma Ferrari aqui no Brasil, mas nos Estados Unidos existem centenas, talvez milhares de mulheres negras ricas que usam esse tipo de ostentação. Podemos então dizer que por lá o racismo foi derrotado? Eu diria que é exatamente o oposto: lá o racismo é muito pior. Esse é o grave problema do identitarismo, porque a existência de personagens negros com muito dinheiro não eliminou o racismo, o sofrimento do povo negro, e muito menos a exclusão da população negra da riqueza nacional, mas dá a eles uma ilusão de que o liberalismo é capaz de lhe oferecer as condições de ascensão social. Essa mentira percorre o imaginário há séculos.

Sobre os trabalhos domésticos, os serviços perigosos e danosos reservados aos negros, isso não é condição inerente da pele negra…. mas da pobreza!!!! O fato de haver muitos negros pobres no Brasil nos oferece a ilusão de que a cor da pela é a questão primordial, pois negritude e pobreza se confundem num país que se liberou da escravidão há 150 anos. Entretanto, o que conduz essas pessoas a condições de trabalho indignas é sua classe social, e não a quantidade de melanina que carregam.

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Somos nós

O perdão nada mais é do que a capacidade de produzir empatia, e esta só ocorre quando existe identificação. Por isso vemos tantos textos que perdoam a mãe que causou a morte do filho ao esquecê-lo e quase nenhum sobre o pai que perdeu a cabeça e bateu na mulher. Não é o crime, somos nós.

Do livro de Jeff Barrett, “Under my skin”, na voz do personagem Jack Menendez, ed. Parnaso, pág 135

Jeffrey Edmond Barrett é um escritor canadense, nascido em Regina no estado de Saskatchewan no Canadá em 1946. Foi amigo pessoal de Jack Kerouak e fez parte da geração de escritores de contestação surgida em meados do século passado. Homossexual assumido e panfletário, socialista e defensor dos direitos LGBT, foi preso na manifestação de 28 de junho de 1969 em Nova York, que se tornou conhecida como “Stonewall Uprising”. Ficou dois anos encarcerado, condenado por “chutar o rosto de um policial”, acusação nunca contestada e que carregou com orgulho por toda a vida. Tem uma larga produção literária na poesia, crônicas e contos. Escreveu “Under my Skin” – sua única obra de ficção – como um libelo contra a repressão sexual. Morreu de Aids em 1987.

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Falsos consensos

Infelizmente o padrão na atualidade não é a confrontação de ideias, o contraditório e o respeito pelas visões discordantes mas o cancelamento, a perseguição pelas posturas, os abaixo-assinados com pedidos de demissão, a difamação, as pressões pela punição severa e a destruição sumária da reputação.

Pouco ou nada importa que o alvo da ira de agora seja alguém que durante décadas esteve ao lado da “nossa causa”; basta uma única posição discordante e você é jogado na lata de lixo, descartado, aniquilado e humilhado publicamente.

Esse sistema de terror faz com que, diante de casos públicos conhecidos e muito publicizados, aqueles que tem uma visão diferente da massa enfurecida se calem, com medo dos ataques e das violências virtuais. Reina um silêncio constrangedor nas redes, criando a falsa impressão de unanimidade. Tornou-se comum que, nos agora raros encontros pessoais, algumas pessoas sussurrem entre si: “eu não vejo dessa forma e não concordo, mas não posso falar sobre isso publicamente pois serei executado se disser o que penso”.

A tirania do senso comum faz vítimas todos os dias nas redes sociais. Quem escreve sabe que uma mínima palavra descontextualizada pode acender o estopim de uma reação violenta e cruel.

Minha opinião? No futuro próximo vai acontecer um fenômeno de reação a isso. A intolerância de alguns grupos será vista como realmente é: um sistema cruel de silenciamento, cujo objetivo é forjar consensos na marra e através da violência virtual. Por fim, as pessoas vão se voltar contra estes ativistas que se escondem por trás das belas causas para melhor espalhar opressão e despotismo.

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Justiceiros

Em verdade, em tempos de crise, esses monstros conseguem se soltar. Quando dois ou mais monstros se unem nessa liberdade anti civilizatória coisas muito ruins podem ocorrer. As guerras mundiais, a invasão de Coreia e China pelo Japão, o massacre dos Armênios, a conquista das Américas, o genocídio palestino e a inquisição entre outros foram momentos de catarse coletiva, onde um número imenso de monstros adormecidos acordaram e colocaram em marcha um projeto de violência, opressão, domínio e destruição.

Não precisa morrer todo mundo, mas os holocaustos e as hecatombes que nos atingem ciclicamente dão uma demonstração bem clara do que existe por dentro de nós de monstruoso e devastador. Uma das regras mais básicas para entender o humano é não se deixar levar por sorrisos e delicadezas superficiais. Hoje em dia, não creia nos posts indignados com a maldade e a injustiça; dentro de todo o justiceiro mora um algoz adormecido.

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Opressões

Por mais estranho que pareça, diante da imagem idealizada que deles fazemos, os médicos têm o DIREITO de se negar a fazer algo que implica em dano ao seu paciente, por razões éticas. Não há como um paciente fazer este nível de imposição a um profissional que tem o dever profissional de não causar dano. Como já dito, o protagonismo feminino não pode transformar os profissionais em escravos do desejo materno.

Pacientes oprimem médicos também. As taxas de mortalidade de médicos recentemente divulgadas mostram que a condição de médico é uma doença insidiosa que leva à morte prematura. Médicos tem uma vida muito mais curta do que os pacientes que eles atendem. Médicas tem taxas de tumores maiores do que a população em geral, com uma expectativa de vida de 57 anos nessa pesquisa.

A opressão dos pacientes sobre os médicos se expressa de uma forma mais sutil e subliminar, mas não menos danosa e dolorosa. A execração pública e os ataques à honra são os mais comuns. As fofocas, a maledicência e a destruição de reputações por erros presumidos ou simplesmente por não se adaptarem à imagem construída se tornaram banais no universo das redes sociais. Basta a palavra de uma paciente insatisfeita e a credibilidade do profissional se despedaça.

Dr Fulano não é humanizado coisa nenhuma, ele operou uma amiga minha“, ou “Ele não passa de um mercenário” ou então “Cobra uma fortuna porque só pensa em dinheiro“, são as acusações mais corriqueiras. Isso destrói a paixão de qualquer pessoa normal. Muitos dizem “Quer saber? Passei 20h de TP ao lado dessa paciente, e outros tantos dias angustiado com o caso dela sempre na minha cabeça para agora ser acusado de ter feito uma cesariana quando joguei a toalha diante de tantos problemas que surgiram. Eu podia ter feito como todos: contado uma mentira, feito a cesariana há 1 semana, e ninguém me acusaria. Só tolos se imolam publicamente em nome dos seus ideais. Ou kamikazes“.

Sim, os médicos também se sentem oprimidos, em especial os que enfrentam o sistema e sentem na pele o ostracismo e a violência de seus pares.

Criar modelos estanques e simplórios de “oprimidos e opressores” é um excelente método para esconder a verdade. Esta é sempre muito mais complexa e contraditória do que as novelas mexicanas onde o Bem e o Mal se confrontam estereotipados e sem matizes. No mundo real o oprimido também desvela o gozo com sua condição – o vitimismo – e dele tira vantagens, enquanto o opressor sofre na carne o peso de sua posição, pela culpa e pela responsabilidade que lhe recai.

O mundo é menos simples do que parece a realidade é mais complexa e paradoxal do que desejamos.

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Toques

Toque

O toque vaginal de rotina durante as consultas de pré-natal cabe na definição de ritual que Robbie Davis-Floyd nos ofereceu. “Repetitivo, padronizado e simbólico, carregado de valor cultural“. Mas, com este viés da ritualística aplicada na atenção à saúde, qual o sentido inconsciente (é bom deixar claro) existente na rotina do toque que se realiza como parte da consulta?

Na minha opinião trata-se da submissão do outro ao seu saber. “Eu sei de algo sobre seu corpo que nem você mesma sabe“.

Um sujeito assim autorizado sente-se empoderado com a força que lhe é instituída a partir de um conhecimento superior, e isso aumenta sua distância com relação ao sujeito-paciente. É pela potência inconsciente dessas ações que elas permanecem vivas e fortes, mesmo com as evidências apontando para a direção oposta.

O exame de toque pode ser útil em várias circunstâncias, no pré-natal e no trabalho de parto. O que é preciso dizer é que realizá-lo de forma protocolar ou rotineira é um erro e não tem embasamento científico, caindo na definição de ritual. Além disso este é um ritual desagradável e possivelmente doloroso e constrangedor. Para ser realizado de forma adequada precisa ser explicado, e realizado apenas com consentimento explícito.

Somos movidos por um fluxo poderoso de emoções, onde nossa razão é muitas vezes um frágil barquinho de papel tentando navegar contra a corrente.

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Sobre os Poderes

Pessoas poderosas (imagine aqui qualquer uma, dos políticos aos artistas) sofrem pela terrível pressão do poder. Eu não sei exatamente como é isso – sou um mísero parteiro da província – mas posso ter uma ideia do que seja este peso pelas experiências reveladoras pelas quais passei. Uma delas foi importante, e a ela sou muito grato.

Quando eu servi como militar nos primórdios da década de 90, fiquei de início – como qualquer calouro – muito intrigado e impactado com o modelo hierárquico rígido existente na unidade médica em que eu trabalhava como obstetra. É importante destacar que as hierarquias são absolutamente necessárias em um modelo que prepara homens para o combate. Não fosse assim, existiria um exemplo de “exército democrático” na história da civilização, mas isso obviamente nunca ocorreu. A rigidez desses níveis de poder e responsabilidade são fundamentais para certas ações que ocorrem nos cenários de guerra. Entretanto, para mim era estranho, e até constrangedor, que um sargento que tinha idade para ser meu pai precisasse me chamar de “senhor” (por eu ser um oficial médico) e eu fosse obrigado a chama-lo de “tu”, mesmo sendo ele muito mais experiente e maduro do que eu. Apesar de entender a lógica por trás dessa determinação, o costume de mais de 30 anos com a vida fora da caserna produzia em mim esse “choque de valores”. Quando por fim me acostumei com esse modelo (muito à contragosto e de maneira forçada) eu prometi a mim mesmo que, exatamente por ser um oficial temporário, jamais usaria esse tipo de prerrogativa – a patente militar – como um argumento válido em uma disputa qualquer.

Entretanto, certo dia, lá estava eu discutindo com um sargento sobre as famigeradas “escalas vermelhas”, que eram as escalas de oficiais em fins de semana e feriados. Lá pelas tantas da conversa eu percebi que meu nome havia sido colocado em uma data muito inadequada. Não havia como estar de plantão, pois me faltava o “dom da ubiquidade”. Imediatamente expliquei ao sargento responsável que nesse dia específico eu estaria fazendo um curso (provavelmente minhas aulas de pós-graduação em homeopatia) e que eu poderia fazer este plantão em outra data, bastando para isso que trocassem meu nome pelo de um colega. O sargento me interrompeu dizendo que a escala já havia sido enviada para o “boletim” e que nada mais havia a fazer.

Virei uma fera. Expliquei que não poderia deixar de ir à aula por causa de uma burocracia e disse que chamasse o soldado de volta trazendo a escala e que, depois disso, trocasse a data que iria para o boletim. Ele respondeu que não faria isso, pois isso seria burlar uma regra existente sobre as escalas de plantão. Nesse momento, irritado pela negativa peremptória da “praça”, eu disparei: “Ah, você vai fazer isso sim, …sargento“. A última palavra estava frisada propositadamente, destacada para mostrar que eu estava dando uma ordem baseada na minha hierarquia, e não na minha razão ou na correção do meu pedido. Era violência, pura arrogância. O poder explicitado; a determinação inquestionável.

Imediatamente eu me lembrei do compromisso que havia assumido alguns poucos anos antes. Meu olhar inexpressivo fixou-se na parede em frente e o filme da minha “promessa” passou diante dos meus olhos, tal qual o filme que Pedro assistiu depois de negar o Mestre por três vezes. Petrifiquei-me em silêncio e, envergonhado, nada falei. Vi o sargento buscar a folha de escalas e trocar as datas na minha frente. Nada disse, nada comentei. Silenciei diante da minha escandalosa prepotência.

Um pouco de mim eu conheci naquele dia, e a partir de então pude entender a pressão que existe pela prática do poder. Eu falhei vergonhosamente no meu teste, e tive plena certeza desse fato. Eu por muito tempo cultivara a ingênua ilusão de que, mesmo tendo a possibilidade de dar ordens inadequadas em função de uma posição artificialmente construída pela corporação, eu jamais usaria tal prerrogativa em benefício próprio. Engano. Falhei como falham muitos os que subestimam a força coercitiva de uma posição de destaque. Errei como tantos os que acusam os corruptos, os assassinos e os ladrões, como se estivessem infensos à sedução de usar o poder – todo ou em parte – que lhe foi concedido ou conquistado. Errei ao supor que minhas frágeis convicções poderiam suportar o peso das necessidades egoísticas emergentes.

Publius Terentius Afer (Terêncio) já dizia: “Eu sou um homem, e nada do que é humano me é estranho”, e com isso nos ensinava que a iniquidade, a falha, o egoísmo, a vaidade e o medo, que tão facilmente percebemos nos outros, habita igualmente em nós. Apenas depois dos testes que a vida nos oferece é que podemos acreditar em nossos valores. Sem a prova da realidade, ficamos apenas com as palavras vazias e as boas intenções. Mas A Virtude espera mais do que belas citações; elas nos chamam à pratica dessas posturas.

Nossos amigos que abusam do poder provavelmente acreditam estar fazendo o melhor que podem diante do peso que carregam. Mesmo parecendo lícito combater e criticar o suborno, a corrupção, a mentira e a falsidade, também é verdadeiro que tais ações, quando analisadas subjetivamente, não podem ser alcançadas pelo nosso juízo pessoal. Para criticá-las talvez seja mesmo necessário caminhar os tais mil quilômetros usando os mocassins de quem as praticou.

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