Se a esquerda não ultrapassar a fase “o amor vencerá o ódio” seremos presas fáceis daqueles que fazem do ódio seu maior talento.
Não creio que precisamos fazer um governo centrado no amor, na compreensão, no afeto ou na alegria; estas são visões ingênuas da política, como se o seu exercício fosse uma prática sem contradições, sem choques, sem recuos, e como se “o amor cobrisse a multidão de ódio“; tal crença é demasiado cristã para ser verdadeira. Pelo contrário, precisamos de luta e enfrentamento, sem negligenciar a energia que emana da indignação.
Não se vence o fascismo oferecendo flores.
O discurso “paz e amor” nos fez perder espaço – e eleições – para a potência e a virilidade do bolsonarismo. Escutem os bolsonaristas!!! Sua retórica é de guerra e violência, e não se derrota essa energia com pacifismo. Precisamos deixar de fazer “resistência”, precisamos “largar as mãos”, precisamos deixar de lado a tentação onipresente de gozar na posição de vítimas e partir para a briga, sair “no soco”, na luta, no confronto, na batalha, no enfrentamento nas ruas.
Nosso discurso pacifista nos fez perder terreno, que levaremos muito tempo para recuperar. Adotamos erradamente uma postura passiva e frágil, cheia de lágrimas, sofrimentos, martírios e vitimismo.
Chega disso. A esquerda precisa atacar, sair à frente e parar de se defender. Precisamos mudar esse discurso frouxo, fragmentado, identitário e unificar nossas lutas.
Há poucos anos, na minha juventude durante a ditadura, todos falávamos em derrotar os inimigos, expulsar os militares, acabar com a censura e fortalecer as causas do povo; não pensávamos em chorar, reclamar e “resistir”. Hoje estamos contaminados com esse ideário neoliberal, essa opção pelo “amor”, as ideias cristãs, a não-agressão, o oferecimento da outra face e (a mais perniciosa de todas) a balela da “conciliação de classes”, porque ficamos intoxicados pela ilusão da sua possibilidade.
Não se combate fascismo com flores. A classe operária precisa largar a semiótica da paz. Não queremos a paz dos cemitérios e nem o silêncio dos mártires!! Precisamos jogar fora estas flores!!!”
Eu as vezes leio artigos escritos por jornalistas, escritores, acadêmicos e simples escrevinhadores como eu e me surpreendo com a qualidade da escrita, seja pelo estilo, pela organização das ideias, pela capacidade de síntese, pela clareza, pela profundidade, pela relevância e pela erudição. Sou possuído pela sensação bastante comum de “puxa, gostaria de escrever assim!“.
Eu não aprendi a escrever direito, mas depois de passar 25 anos escrevendo num ritmo diário eu cheguei à conclusão que a única forma consistente de aprender esse ofício e essa arte é… escrever sempre, verter a vida em letras, condensar as ideias em tinta, massacrar o papel com os sulcos do pensamentos.
Como em muitas outras áreas, o exercício da escrita se faz na experiência diária da transmutação das ideias embaralhadas, na revivescência de lembranças enoveladas e nas propostas misturadas para a linearidade do texto, permitindo ao leitor que capte o fio do seu pensar e o utilize como assim o desejar.
Se pudesse dar a mim mesmo um conselho diria para ter escrito minhas histórias desde a adolescência, porque isso teria sido muito mais útil do que se pode imaginar.
Por muitos anos fui atormentado por esta contradição: o movimento de humanização do nascimento se adapta – e é mais bem acolhido – entre conservadores. Durante décadas eu vi parteiras americanas conectadas com grupos cristãos de caráter extremamente conservador e achava bizarro que assim o fosse. Em minha cabeça comunista eu pensava: como pode ser possível que um ideário que me parece libertador e conectado aos direitos humanos mais básicos pudesse ter ressonância com mulheres à direita no espectro político?
A resposta que pude elaborar – ainda que parcial e incompleta – se encontra no fato de que a humanização do nascimento sempre colocou uma enorme importância na maternidade e na amamentação, funções especificamente femininas que os movimentos feministas sempre trataram com reserva – para não dizer, contrariedade. Para estes grupos a emancipação da mulher passa pela liberdade econômica, a competitividade em campos outrora dominados pelos homens e o poder social conquistado na arena das disputas profissionais. Mulheres queriam o dinheiro e o poder para comprar sua “alforria”, sua independência, para serem donas do seu destino. Por certo, não há como criticar seu desejo legítimo. Todavia, parto, nascimento, puerpério e amamentação jogam as mulheres no universo de sua biologia, nos compromissos ancestrais com a espécie, no corpo, na sobrevivência, na “dívida” que as mulheres tem com sua raça. Impossível não entender o quanto esse mergulho na essência feminina mais bruta e primitiva significa um anteparo às suas legítimas aspirações de autonomia.
Desta forma, qualquer movimento que tente debater, esclarecer, problematizar e questionar a suprema invasão tecnológica do nascimento contemporâneo “desnaturado”, ou seja, retirado da natureza e da integralidade destes processos, estará funcionando como um anteparo à utopia libertária da mulher, pois estará enxergando seu corpo através de um prisma mais ligado à sua natureza e sua essência. Levei anos tentando entender e lidar da melhor maneira possível com estas contradições, mas creio que a compreensão histórica dessas lutas é sempre uma ferramenta fundamental para o seu entendimento.
Claro que é possível separá-las, e assim o fazemos cotidianamente, basta ver a forma distinta como nós analisamos as falhas e defeitos de nossos ídolos. Nossa indignação é seletiva; não é justa, isenta ou desprovida de paixões.
Criamos uma enorme celeuma com o caso Pelé-Sandra, e o simples fato de ter sido tão explorado deveria nos ensinar algo. Por outro lado, também há mulheres e homens que realizaram grandes obras em favor da humanidade cujas vidas privadas foram repletas de problemas éticos extremamente graves. Nossa capacidade de exaltar alguns defeitos e esquecer outros nos mostra que, para o nosso juízo, mais importante que o delito é o sujeito que o comete, e isso expõe o quanto estes problemas alheios se relacionam com as nossas questões pessoais. Ao mesmo tempo que vejo justiceiros atacando o Rei do Futebol nunca vi ninguém atacando a memória de Simone de Beauvoir – ícone feminista – por suas ligações com a pedofilia e outras práticas condenáveis (como seduzir suas alunas). Também nunca vi alguém cancelando Marie Curie – grande mulher cientista – pelo caso amoroso que teve, já viúva, com seu auxiliar de laboratório, homem mais jovem e casado, fato que levou à dissolução do seu casamento. Apesar de ser muito maltratada pela sociedade parisiense em sua época, este fato hoje em dia é quase desconhecido, eclipsado pelos seus dois prêmios Nobel em duas áreas distintas. Também não vejo ataques sistemáticos a Rachel de Queiroz por ter sido uma árdua defensora da ditadura militar que massacrou o Brasil por duas décadas. Leiam sobre o genial poeta Pablo Neruda e vejam como foi sua terrível relação com a parentalidade.
Poderia passar horas citando outros personagens cujos erros receberam um claro perdão, comparando esse tratamento com as fogueiras montadas para outros, cujos crimes foram iguais ou até de menor importância e consequência. Assim, parece claro que oferecemos o benefício do esquecimento aos erros de alguns, enquanto tentamos nos lembrar diariamente dos defeitos de outros.
E vejam: tenho convicção de que os erros dessas personagens são do seu tempo, falhas humanas, e isso não diminui a importância e o valor de suas obras para a sociologia, a ciência e a literatura, produções essenciais para toda a humanidade.
E porque fazemos essa análise enviesada, com pesos e medidas diferentes para delitos semelhantes?
Agimos assim porque alguns “defeitos” observados nos outros não são suportáveis, e alguns são mesmo inconfessáveis. Por exemplo: ser um Deus negro em um país que nunca cortou plenamente os laços com o racismo. Também o crime de ser homem numa sociedade pós moderna que condena a masculinidade, tratando-a como “tóxica”, e que julga com estrema severidade um ídolo por não amar sua filha da forma como nós exigimos que esse amor se estabeleça.
Sabemos que o capitalismo e sua estrutura de classes precisa de um exército de homens que se submetam docilmente a um sistema injusto e abusivo. Por esta razão, causa desconforto vermos um homem negro ser a figura mais emblemática do povo brasileiro. Isso fere nossas aspirações de “nação branca” e escancara nossa origem mestiça.
Pelé cometeu erros humanos, mas que tocam na ferida exposta de muitas pessoas em sua relação com a figura paterna. Por isso, pela projeção que fazem da relação de Pelé com esta filha, colocam Pelé como o “paradigma do pai ausente”, nem que para isso precisem comprar uma história maniqueísta, cheia de furos e lapsos, demonizando o jogador e colocando sua filha e genro num pedestal. Toda narrativa assim construida tem como objetivo moldar a história para criar vilões e mocinhos, sem contradições, sem nuances, sem complexidades, apenas o confronto entre o “bem” e o “mal”, a vítima e o algoz.
Aceitar a falibilidade humana – o que inclui a história dos nossos heróis – é importante para humanizar tais personagens. Além disso, fazer linchamento morais de alguns e passar pano para outros apenas demonstra que sob as capas de erros e virtudes que todos nós carregamos existem essências que nos incomodam e agridem, enquanto outras nos causam empatia e compaixão. Não são os erros, mas quem os comete. Alguns sujeitos podem errar; outros não tem o direito às falhas humanas. Nosso julgamento – condescendente ou inexorável – diz muito mais de nós do que dos pecadores sobre quem jogamos as pedras.
Quantos monstros morreram sem ter sua monstruosidade descoberta? Quantos degenerados são ainda hoje reverenciados apenas porque suas maldades foram eficientemente escondidas? Quantos perversos são estátuas, nomes de rua e retratos nas paredes dos parlamentos, apenas porque seus seguidores não permitiram que suas perversões e crueldades fossem expostas publicamente?
Quantos de nós já se espantaram ao conhecer a verdadeira essência cruel de alguém que outrora achávamos perfeito e impoluto? E quantos tiveram a oportunidade de olhar a alma do criminoso embrutecido e colher dali, dentre tantas tragédias e dores, sensibilidade e virtude?
Ainda assim, quantos heróis anônimos mudaram o curso da humanidade inteira sem que jamais tivessem seus nomes conhecidos? Quantas mulheres e homens comuns morreram sem terem recebido o reconhecimento pelo seu valor enquanto monstros da pior espécie são tratados por nós, mesmo na atualidade, como heróis e até santos?
A notoriedade nos faz destacar da multidão, e por essa posição muitos de nós pagam qualquer quantia. Entretanto, a idolatria a estes personagens é sempre arriscada; nunca sabemos o que há por detrás da máscara pública que esconde a essência do verdadeiro sujeito.
Na foto um policial multa uma banhista em uma praia da Itália em 1957.
Há algum tempo li nas redes sociais os ataques a um músico, um garoto de 20 anos, negro e de periferia, que ganhava a vida compondo músicas de funk. Depois que ficou famoso, e passou a ter notoriedade e dinheiro, descobriram em seu twitter várias manifestações questionáveis.
Eram piadas inocentes, apesar de serem claramente homofóbicas e misóginas, cheias de deboche e humor adolescente. Por causa disso, ele passou a ser duramente atacado pelos identitários e suas patrulhas morais de cancelamento. Continuei a leitura e li que as manifestações eram antigas, feitas ao redor de 6 anos antes da data do cancelamento.
Ou seja, ele escreveu os posts (brincadeiras de mau gosto) quando não tinha mais que 14 anos de idade, o que explicava o tipo de humor infantil utilizado. Fiquei lembrando das coisas tolas e até desrespeitosas (para os padrões atuais) que eu dizia na infância e as piadas que eu contava aos 14 anos de idade e me dei conta do quão violentas e brutais são essas patrulhas.
Imediatamente me veio à mente as patrulhas de costumes do Irã e as polícias que multavam mulheres pela ousadia dos seus biquínis em meados dos anos 50 do século passado. Qual das ofensas é mais perigosa: a nudez do corpo ou aquela da alma?
Punir um garoto recém entrando na vida adulta por piadas bobas que contou durante a puberdade é a suprema injustiça. Mais ainda… quantas dessas pessoas de dedos apontados também não foram preconceituosos nessa fase da vida?
Quando é que vamos superar este tipo de controle moralista, reacionário e religioso sobre o comportamento? Não existe nada de progressista nesse retrocesso das relações, e muito menos humanista e de esquerda.
Quando eu tinha uns 10 anos de idade, e estava de férias com a minha família em uma cabana no interior do Rio Grande do Sul próximo à barragem do Salto, começamos a conversar logo após o jantar. Era o que tínhamos a fazer antes dos smartphones e quando as TVs simplesmente “não pegavam” em várias partes do estado. A conversa acabou se centrando no tema dos “sacrifícios”, ou seja, o quanto poderíamos sacrificar algumas coisas em nome de outros valores.
A questão prática era: se você quer ter aulas de violão não pode fazer judô, pois não há como pagar todas essas coisas. Meu pai tinha quatro filhos, não haveria dinheiro para financiar isso para todos. Ele era da “teoria do pirulito”: se você tem 4 filhos e 3 pirulitos ninguém ganha, porque não há como desfavorecer um diante dos outros. Todos são iguais e ninguém poderia ficar em desvantagem. Portanto, haveria que se sacrificar algo para que todos pudessem ter um benefício.
Um pouco contrariado eu perguntei ao meu pai:
– Ok, e você? Que sacrifícios faria pelos seus filhos? Seria capaz de, por e exemplo, arrancar um dedo da mão para nos salvar?
Meu pai riu da minha pergunta e respondeu:
– Um dedo? Ora, eu daria a minha própria vida pelos meus filhos. Eu morreria por eles.
Lembro bem dessa conversa, e penso que a resposta que eu dei para ele é engraçada até hoje.
– Rá, morrer pelos filhos é fácil. Quero ver ter coragem de arrancar um dedo!!
Para mim a morte era algo distante, um acontecimento meramente abstrato. Mas arrancar um dedo – multiplicando a dor de verdade que eu já havia experimentado – isso sim era sofrimento prá valer,
No meu pensamento se contorcem no mínimo 5 assuntos sobre os quais gostaria de escrever. Gritam, choram, clamam por liberdade. Agora mesmo, na minha cabeça, se agitam sem descanso e a cada volta se multiplicam, mostram suas outras faces, se transmutam. Incansáveis buscam serem ouvidos e transcritos, antes que a amnésia inexorável os transforme em poeira de reminiscências. Apesar do barulho ensurdecedor que fazem eles são todos…
…. um punhado de temas proibidos. Prometi para mim mesmo que não falaria publicamente sobre esses assuntos sem a intermediação de uma xícara de café e conversaria tão somente com sujeitos cujos ouvidos sejam fortes o suficiente para suportar verdades inconvenientes e perspectivas impopulares.
Tenho umas 20 histórias que não podem ser contadas, crônicas proibidas, novelas inteiras interditadas, contos censurados, pois envolvem pessoas ainda vivas, que poderiam ficar profundamente magoadas e invadidas. Respeitosamente guardarei todas essas histórias para o túmulo, e passarei horas deliciosas contando-as para os vermes enquanto eles alegremente consomem minha carne
Há muitos anos me perguntavam durante conferências ou palestras “O que você faria para convencer médicos a adotarem o modelo de humanização do nascimento”? A minha resposta, com o tempo, passou a ser esta, que mistura uma descrença que só vem com a maturidade:
– Nada, nenhum esforço eu faria nesse sentido.
Depois eu explicava que a humanização do nascimento só acontece a partir do sofrimento dos cuidadores, da neurose que alguns poucos desenvolvem diante do choque entre seu ideal de trabalho e sua atitude cotidiana.
“Somente quando a prática obstétrica despregada das evidências, insensível, grosseira e violenta lhe produzir angústia e mal-estar, será possível a você mudar para uma prática mais inclusiva, mais integral e mais segura. Desta forma, se for necessário lhe convencer é porque você ainda não a entendeu. Não aceite que minhas palavras colonizem o seu pensar. Estarei aqui para dizê-las, mas espero o tempo em que elas se tornem absolutamente redundantes.“