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Supremacismo

Toda vez que alguém vem me dizer que o identitarismo é algo bom, que alguém precisa “proteger mulheres, gays, negros, trans, etc”, que ele nasceu para dar voz às populações oprimidas e historicamente perseguidas e que seu objetivo é a equidade e a justiça social eu lembro que esta é a exata definição dada pelos supremacistas sionistas, ao explicar porque a violência destrutiva desproporcional no ataque aos palestinos é justa. Também os sionistas aparentemente tinham um objetivo nobre; após séculos de perseguições, expurgos e pogroms, era justo que desejassem um lugar seguro para si. O problema é que, para esta tarefa, era necessário roubar a terra onde há séculos vivia outra população, e aqueles que se opusessem a este plano. Por esta razão, ainda hoje matam de forma genocidária seus inimigos e depois exigem que seus crimes sejam vistos de forma condescendente por nós. Afinal, “depois de tudo que nos aconteceu”.

O sionismo que massacra crianças na Palestina surge exatamente desse pensamento exclusivista e supremacista. Essa perspectiva é o embrião de inúmeras tragédias como o nazismo, a KKK (Ku Kux Klan) e o sionismo, que nada mais são que o resultado direto de uma visão de mundo onde um grupo – ou uma identidade – exige ter mais direitos do que os outros grupos, seja porque são o “povo escolhido”, por ser este seu “destino manifesto” ou pelo seu sofrimento no passado. Assim floresce entre estes grupos a ideia de que as leis e regras que são aplicadas aos outros não são aplicadas a eles, por serem diferentes, especiais ou superiores, de acordo com sua própria análise. Entretanto, uma das mais importantes conquistas civilizatórias da humanidade foi a compreensão de sermos todos iguais. Assim, a lei e os juízes devem tratar a todos igualmente, independentemente da sua raçagêneroidentidade de gêneroorientação sexualnacionalidadecor da peleetniareligiãodeficiência ou outras características, sem qualquer tipo de privilégio, discriminação ou preconceito. A ideia de grupos ou identidades especiais – inferiores ou superiores – é ilegal e incompatível com os princípios de liberdade e de equidade.

A luta contra os preconceitos só pode ocorrer no lento processo de maturação das sociedades. Uma sociedade igualitária não vai se tornar hegemônica pedindo “mais amor”, criando “diversidade de aparências” ou judicializando preconceitos, mas exterminando a origem dessas distinções. Estas, como bem o sabemos, estão centradas nas iniquidades econômicas brutais construídas pelo processo civilizatório e consolidadas pela sociedade de classes. O combate aos preconceitos todos – raça, gênero, identidade e orientação sexual – é uma necessidade urgente, mas estas chagas planetárias somente serão desmontadas quando nossa sociedade tiver equilíbrio econômico, por meio da distribuição justa das riquezas produzidas. Enquanto tivermos sociedades divididas em classes, onde o trabalho vale menos do que a concentração de capital, nada será modificado. Para mudar esta realidade precisamos menos “amor” e mais luta de classes.

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Ainda reclamamos aqui

Tenho visto nas redes sociais que os argumentos que criticam o filme “Ainda estou aqui” são equivocados em sua maioria, apesar de estarem corretos em um certo sentido. Isso ocorre em especial entre o pessoal da esquerda, que faz críticas injustas ao filme, muitas vezes usando chavões identitários. O que o Chavoso da USP (ativista de esquerda) argumenta em sua crítica, que assumiu certa notoriedade no YouTube, é que o filme não contemplou as camadas pobres da população, e só mostrou as dores de brancos e pequenos burgueses da sociedade de classe média carioca. Segundo ele, o que a família de Rubens Paiva sofreu nos anos 70 é o que os pobres sofrem, ainda hoje e cotidianamente, nas mãos da polícia. Os abusos denunciados no filme tomam relevância pela classe social dos protagonistas e pela cor de sua pele, enquanto os pretos e pobres continuam a receber o mesmo tipo de violência, mas sem a glamorização oferecida pelo filme.

Ora, não há como negar que a crítica é justa… mas não ao filme!!! A crítica poderia ser feita com propriedade à cinematografia nacional que não faz mais filmes para denunciar a barbárie aplicada sobre pretos e pobres que sofreram nas mãos da ditadura (e hoje nas mãos da polícia), mas não para um sujeito que pretende contar o sofrimento da sua mãe e sua família por conta do golpe militar que ocorreu no Brasil. Não cabe a um cineasta – ou um compositor, pintor, escritor – cobrir todos os aspectos possíveis de um drama qualquer. “Ora, o Rubens Paiva era carioca, e os gaúchos como eu, que sofreram nas mãos da ditadura, não serão representados? Ahhh, e ele era homem, e as mulheres presas e torturadas pela ditadura? E os gays, e os negros?

Poderia ficar horas citando todos os setores da sociedade e todas as camadas não contemplados pelo filme, mas sei o quanto isso é desonestidade intelectual. Um filme deve ser cobrado pelo que faz e diz e não pelo que não mostra – a menos que o filme sirva para esconder algo, ou ocultar a verdade por meio de uma perspectiva falsa. Digo isso porque nenhum filme ou obra artística tem a capacidade de dar conta de todas as perspectivas da realidade. Portanto, é possível que a crítica do Chavoso (entre outros) seja adequada sobre a produção do cinema nacional, pela importância do resgate da memória nacional do segmento mais pobre e sem voz do país, mas injusta ao criticar o filme por não mostrar tudo o que desejava ver.

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Maria

Não há dúvida que a rejeição a Maria do Rosário é porque ela defende direitos humanos. Todos os defeitos que possam porventura ser mencionados sobre sua atuação parlamentar sucumbem diante deste fato: as pessoas não aceitam quem defenda simples direitos básicos das pessoas comuns, como não ser torturado, não ser perseguido por suas ideias, ter tratamento digno na prisão, não ser preso sem uma clara justificativa, direito à ampla defesa, etc. Todavia, para o cidadão médio, contaminado pela propaganda odiosa da direita fascista, isso nada mais é do que “defender bandido”. Mas, e porque mesmo os bandidos não poderiam ser defendidos?

Ao Estado não cabe combater criminosos, mas o crime. A justiça não deve combater o malfeitor, mas suas ações ilegais, pois a ninguém é lícito julgar as razões pelas quais alguém comete delitos; ao judiciário cabe analisar os fatos, não os sujeitos. Esse é um fundamento basilar do direito. Não se pode usar da justiça para atacar indivíduos, a não ser que tenham cometidos atos ilegais e criminosos.

Por mais que os punitivistas tenham dificuldade em aceitar, todo bandido compartilha conosco algo fundamental: a condição humana. Em verdade, quando analisados de perto, os “bandidos” são incomodamente semelhantes a nós, com a diferença que tiveram obstáculos em suas vidas que nós nunca tivemos. Julgar a criminalidade sob um prisma moralista é a marca registrada do fascismo, mas somos parecidos demais para que se possa usar classificações como “bandidos” e “cidadãos de bem”. A experiência recente mostrou que alguns dos crimes mais horrendos realizados no Brasil no período Temer/Bolsonaro vieram daqueles a quem se outorgava o título de “cidadãos de bem”.

Assim, aqueles que defendem os direitos humanos inerentes à esta condição, não estão defendendo ou estimulando o crime, mas resguardando as camadas pobres e desassistidas da sociedade da vingança brutal daqueles que, para defender o modelo concentrador de renda e a propriedade privada, agem de forma vingativa e cruel contra todos que que rebelam e entram na senda do crime. Maria do Rosário escolheu a tarefa mais difícil e mais ingrata. Defender estes direitos essenciais em um país no qual um antigo presidente se jactava em dizer “minha especialidade é matar”, é tarefa para poucos. Precisa coragem e integridade para se manter firme em seus princípios quando o entorno lhe empurra na direção do fascismo mais abjeto e desumano.

Tenho muitas discordâncias com Maria do Rosário em outros pontos. Sendo comunista, é fácil entender o quanto a democracia liberal e o identitarismo estão corroendo as esquerdas no mundo inteiro. Não acredito que essa esquerda possa oferecer um grande diferencial em longo prazo ao abandonar a luta anticapitalista e apostar na divisão planejada da classe operária em identidades digladiantes. Por isso, no primeiro turno, voto em Cesar Augusto Ferreira, candidato do PCO à prefeitura de Porto Alegre. Entretanto, bem sei que as pessoas rejeitam em Maria do Rosário exatamente aquilo que ela tem de mais virtuoso: a luta pela dignidade humana, de qualquer cidadão, inobstante os erros que tenha cometido. No segundo turno, voto com ela.

Por isso, espero que ela vença os candidatos do atraso e seja uma ótima prefeita.

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Provas

A ideia de que um sujeito pode ser cancelado e incinerado publicamente por uma acusação sem provas deveria deixar a sociedade em alerta, em especial mulheres e negros. Para aqueles que celebram este tipo de cancelamento entendam que isso tem um preço muito alto. A não ser que apareçam provas contundentes, o uso de um rito sumário para a condenação de alguém deixará qualquer um desconfortável para interagir com muitos representantes desse governo.

Eu só pensei que a pessoa que fez as graves acusações contra um colega ministro é a mesma que há poucas semanas declarou que considera a expressão astronômica “buraco negro” um termo racista (ou raciste). Será que ela também interpreta abuso sexual com esse “freestyle“? Como saber? Haverá outros interesses por trás da fritura do ministro identitário? É possível condenar publicamente alguém sem que provas sejam oferecidas? Por que essa disputa veio a público, e não foi tratada a portas fechadas? Quem ganha com a saída do ministro?

Não tenho respostas, mas essa crise me parece bem estranha…

Todavia, este caso descortina uma situação ainda mais grave. A crença absurda de que acusações de cunho sexual são sempre verdadeiras – produzindo condenações e cancelamentos antes que o sujeito possa se defender – cria uma forma simples e fácil de destruir inimigos pessoais e/ou políticos, sejam eles culpados ou não. Existem milhares de exemplos de denúncias infundadas, falsas e até fraudulentas sobre abusos, misturadas com milhões de outras verdadeiras – mas que, pelo abuso das falsas acusações, passam a ser vistas com desconfiança.

A ideia justa de que devemos dar voz às vítimas não pode ser interpretada como um passe livre, como se a condição de vítima retirasse a necessidade de apresentar provas. “Basta falar e todos acreditarão”. Esse monstrengo jurídico, fruto de uma perspectiva sexista e supremacista, cria um ambiente de insegurança jurídica, péssimo para as relações humanas. Levar em consideração as acusações da vítima não significa transformá-las automaticamente em verdades.

Eu sei que é difícil e que as vezes é até impossível, mas não há justiça sem provas. Já dizia o famoso economista W. Edwards Deming quando afirmou: “Em Deus eu acredito; todos os outros favor trazer evidências” (“In God I believe; all the others please bring data”). Se aplicamos essa máxima aos experimentos científicos e àqueles da área da economia, porque deveria esta exigência ser negligenciada diante de acusações graves?

Aguardem as provas…

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Arte e tempo

Meu pai costumava dizer “As virtudes são do sujeito e sua genialidade será eterna; já os defeitos são de seu tempo e lá devem ficar”. Com isso procurava relativizar as falhas e defeitos encontrados nas biografias de gênios da literatura, música, artes plásticas e até da ciência. “É injusto, continuava ele, analisar o sujeito fora do seu tempo, alijado de seu contexto, sem a pressão do seu campo simbólico, no tempo e no espaço. Sem levar em conta seu tempo nosso julgamento sucumbe ao anacronismo”.

Esta semana surgiram acusações ao pintor Paul Gauguin pela prática de relações sexuais com menores de idade no Taiti, onde passou seus últimos anos de vida. A discussão gira em torno dos quadros pelos quais Gauguin é mais conhecido, produzidos em seus últimos anos de vida, quando retratou meninas taitianas que serviram não apenas como modelos, mas parceiras em suas aventuras eróticas. Por esta parte obscura de sua vida mereceria ser, na linguagem contemporânea, ser cancelado.

Eu digo que se formos cancelar o pecador – e não o pecado – não sobrará uma obra sequer da vasta produção humana que não sofra cancelamento, seja ela em tela, página ou melodia. Nada restará de pé para que nossa civilização possa degustar sem culpa. Quem ai, dotado de genialidade criativa, estaria isento de ser seduzido pelos próprios monstros internos? Quem, diante da fama, fortuna e o poder que delas deriva, não seria chamado a se lambuzar nos sabores mundanos? Quem pode julgar o sujeito – não o delito – que, podendo errar, errou?

Por essa razão, eu me oponho de forma veemente a todo tipo de julgamento moral de artistas e pensadores. Nada é mais danoso à cultura contemporânea do que a patrulha moralista, em especial a identitária. Nada é mais embutrecedor do que apagar o passado por julgamentos morais do presente. A tentativa de remediar estas falhas, colocando embrulhos de celofane nos malfeitos é ainda pior; a solução encontrada por alguns de mudar as obras, fazendo “correções” para amenizar “erros” é absurda e mutilatória. “Corrigir” Heidegger, Monteiro Lobato, Picasso ou Wagner é destruir a história que circunda seus trabalhos, o que lhes veste de significados e relevâncias.

Deixem os termos racistas, antissemitas, misóginos e homofóbicos intactos e discutam esses fatos abertamente, como uma janela aberta no tempo para enxergar nossos valores mutantes no passado, assim como os erros de lá que desejamos combater aqui. Apagar da história as obras de gênios controversos é um crime de lesa-arte. Ao fim e ao cabo acabamos percebendo que a avaliação moral do artista serve sempre a interesses políticos, e libertar-se desse tipo de constrição é sempre um ato de justiça à própria arte, que será livre ou não será arte.

A partir de uma conversa com Oscar

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Madonna

Esse comentário nada tem a ver com música, coreografia, showbiz, festas ou qualidades musicais, muito menos sobre a adesão de Madonna à Cabala. Este texto não trata de budismo, judaísmo, cristianismo ou qualquer religião ou culto. O texto, entretanto, trata do sionismo, que é uma vertente racista do fascismo, uma expressão de excepcionalismo e supremacismo nacionalista. Madonna, aliás, jamais se converteu ao judaísmo, mas é uma admiradora da Cabala, corrente mística da religião judaica, e adotou o nome hebraico Ester; em Israel, a cantora é chamada de “Rainha Ester”. Ela poderia até ser espírita, e nada haveria a mudar neste conteúdo, porque nossa preocupação deve ser com a vinculação dessas figuras públicas com o colonialismo e o imperialismo. Minha intenção é deixar claro que não é admissível colocar a Madonna como ícone progressista apenas porque ela sofre ataque dos bolsonaristas homofóbicos; esse erro identitário não pode mais ser tolerado.

Nos tempos atuais é muito comum personalidades da música defendendo a pauta dos excluídos e a favor de minorias (gays, negros, indígenas, trans, mulheres, etc.) ao mesmo tempo em que apoiam o imperialismo e regimes fascistas como Israel. Não acredito que Madonna seja pessoalmente uma fascista (nem Barbra Streisand, Gal Gadot, Natalie Portman, The Rock, Seinfeld, etc) mas ela falhou no teste fundamental para ser considerada de esquerda: o apoio ao horror racista e supremacista de Israel. Por outro lado é preciso denunciar este tipo de cooptação, porque parece que a esquerda não compreendeu ainda a armadilha.

Primeiramente, vou deixar bem claro que sou a favor de distanciar o artista de sua arte, e por isso me permito curtir Monteiro Lobato, Michael Jackson, Pablo Neruda e Nana Caymi, todos devidamente cancelados pela tendência atual de buscar, no passado de figuras proeminentes da cultura, falhas morais ou agressões às identidades que ora defendemos. De minha parte, não acho que os erros – mesmo graves – de intelectuais e artistas podem necessariamente destruir sua obra. Portanto, não há absurdo algum em curtir Like a Virgin, dançar com sua música e se reunir em Copacabana para celebrar sua arte. Todavia, isso é bem diferente de tratar Madonna como um ícone para uma nova sociedade. Madonna nunca foi de esquerda, e nem seria justo cobrar isso dela. Afinal, ela deixou claro que é A material girl living in a material world. Seria tolo cobrar dela algo mais elaborado no que diz respeito aos direitos humanos. Ela é uma artista talentosa e de sucesso, que ganha milhões com sua arte; nenhum erro nisso.

Alguns poucos estão falando do equívoco brutal que é colocar Madonna ao lado da esquerda. Breno Altman deixou claro que Madonna é uma sionista que defende não apenas Israel e o sionismo, mas até mesmo o indefensável primeiro ministro Netanyahu – absurdo que também se manifestou entre os senadores americanos que escreveram uma nota em sua defesa. Ela tem plena adesão ao discurso racista que dá suporte enfático ao colonialismo branco e europeu de Israel e mostra desprezo pelo povo palestino. Que haja gente de esquerda comemorando essa personalidade, apenas pela sua vinculação aos grupos identitários, diz muito da infiltração fascista dentro da própria esquerda. Colocar Madonna dentro da nossa trincheira para atacar os homofóbicos e pervertidos bolsonaristas tem um nome bem conhecido, usado em homenagem à uma história muito antiga de uma guerra entre gregos e troianos.

Madonna é uma representante dos valores imperialistas do partido democrata e uma sionista da linha de frente; é uma representante do sectarismo identitário criador de divisionismo na classe trabalhadora e dissemina o “pinkwashing” tão conhecido de nós, o mesmo que tenta apresentar Israel como um paraíso para os gays. Tudo mentira, como sabemos; Israel tem uma violenta polícia de costumes e possui na sua população uma homofobia raiz tão intensa quanto o racismo e a xenofobia entranhados em sua cultura.

Portanto, muita calma nessa hora. Madonna, pelos seus valores, posturas e ideias, está muito mais próxima do bolsonarismo do que de qualquer grupo de esquerda. O apoio ao colonialismo racista e ao apartheid de Israel é a régua moral dos nossos tempos. Não há como ser um sionista apoiando o massacre de crianças em Gaza e ao mesmo tempo colocar-se ao lado da esquerda. Podemos aceitar que Madonna é reaça, uma agente do imperialismo disseminando suporte ao colonialismo, mas você não precisa ter vergonha de dançar sua música.

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Os Homens e o Cuidado

A primeira grande briga que tive contra o identitarismo na pauta da humanização do nascimento foi quando afirmei que os homens também poderiam atuar como doulas, desde que a gestante assim o quisesse e aceitasse. Por causa dessa simples afirmação, movida por um desejo de equilíbrio entre os gêneros, fui atacado e cancelado sem dó, acusado de “machismo”. Justificavam este cancelamento afirmando que os “homens estavam invadindo um espaço feminino”. Respondi explicando que nos últimos 50 anos tudo o que vi na sociedade foram mulheres invadindo “espaços masculinos” em todas as áreas da atividade humana, desde médicas até juízas de futebol, passando por pilotos de avião e presidentes da República – o que deveria ser saudado por todos. Não seria justo que os homens também pudessem se aventurar na seara do cuidado? A luta contra o essencialismo não deveria ser uma via de duas mãos – ou uma faca de dois “legumes”?

De nada adiantou minha resposta; fui xingado, ofendido e cancelado. “Como ousa?“, diziam algumas mais furiosas. Pois se há algo que me constitui é a ousadia. Não tenho problema algum em regar inimizades em nome da defesa de ideias honestas e sinceras – mesmo correndo o risco de estar errado. Não levo estas coisas para o terreno pessoal, mas já passados quase 20 anos ainda acho que minha proposta continua correta. A tese contrária à minha era de que “as mulheres foram desconsideradas por milênios, impedidas de fazer tarefas reservadas aos homens. Não seria justo que as poucas coisas reservadas a elas – como o cuidado – fossem agora divididas com quem já controlava quase tudo”.

Respeitosamente discordei. Acredito na lei biológica que diz ser o hibridismo uma característica que fortalece as espécies. Da mesma forma, sociedades com diversidade de gênero nas tarefas comuns aprendem com a diferença de perspectivas que homens e mulheres podem oferecer. A paralaxe que se produz aumenta nossa capacidade de entendimento dos fenômenos e auxilia na resolução de dilemas. Uma mulher que atua em áreas outrora dominadas por homens oferece mais qualidade a este trabalho e ao mesmo tempo aprende com esta nova função. Homens que atuam no cuidado – de doentes, crianças, velhos, gestantes – também cooperam com uma maior diversidade de compreensão do trabalho enquanto se nutrem com o aprendizado que recebem em seu labor.

Quando estive na China havia uma propaganda na TV sobre novas iniciativas de saúde governo. Uma delas era a incorporação de obstetras do gênero masculino na atenção pública ao parto. Na propaganda um marido avançava para atacar um médico quando ele se aproximava para examinar sua mulher. Uma enfermeira intervém e explica que ele é um obstetra, e que não teria nada a temer. Para aquela cultura, a ideia de um homem examinando as partes íntimas de uma mulher era tão estranha quanto o era para o ocidente no final do século XIX. Hoje parece estranho e bizarro um “doulo”, mas talvez sejam barreiras que o tempo vai desfazer. Como saber?

Eu sou testemunha direta desse processo. Vivo ao lado de 5 netos que são constantemente cuidados pelos seus pais homens. As tarefas de cuidado na Comuna são divididas de forma muito equânime, excetuando-se a amamentação. Posso constatar a qualidade de amor paterno que os meus netos recebem e o quanto isso é fundamental na formação ética que recebem. Para um velho, como eu, que foi criado em uma divisão sacrossanta de tarefas domésticas esta foi uma grande revelação. Ver a pequena revolução do cuidado foi um grande presente que a vida me deu. Por outro lado, existem resistências muito fortes, como esta da qual fui vítima. A psicanalista Vera Iaconelli, em um recente artigo, fala da dificuldade de garantir aos homens esta posição:

“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.(…) Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”

Para que a sociedade esteja legitimamente no caminho da equidade é fundamental reconhecer esta angústia feminina – e por vezes um rechaço explícito – em relação ao cuidado feito pelos homens com a mesma seriedade que entendemos a relutância destes em assumir a posição de cuidadores, onde será necessário muito mais do que habilidades técnicas e força física – que por milênios foram exaltadas como superiores – mas o desenvolvimento de novas aptidões como paciência, delicadeza, afeto, docilidade, compreensão dos limites, carinho e amor incondicional.

Sim, homens podem ser doulas; mais ainda: podem exercer as funções de cuidado com seus filhos, netos e avós; com os doentes, os acamados, os bebês e todo aquele que necessite da “fraternidade instrumentalizada”. Por mais que a ciência tenha adentrado no âmago das células ela jamais foi capaz de afirmar que o gene do amor se situa apenas no cromossomo X.

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Contra o sionismo

O jornalista Breno Altman tem feito um périplo pelo Brasil – e até pelo exterior – para a divulgação do seu livro “Contra o Sionismo”, e está obtendo um enorme sucesso. Um grupo crescente de pessoas começa a se interessar nas questões da Palestina, porque ela concentra de forma muito didática as grandes questões dos últimos 100 anos: colonialismo e imperialismo. Ele tem se tornado a mais importante voz da esquerda na luta contra os massacres do governo fascista de Israel na Faixa de Gaza, em especial pela sua condição de judeu antissionista. Pois, para surpresa apenas daqueles menos avisados, Breno teve sua presença contestada na Universidade Federal de Santa Catarina pela pró-reitoria de “Ações Afirmativas e Equidade” desta universidade, que recomendou a retirada do apoio à sua palestra por seu conteúdo “antissemita”.

Todos sabemos do interesse de grupos ligados à Israel em fomentar a confusão oportunista e mentirosa entre antissemitismo (que deploramos) e antissionismo (que é o tema da palestra e foco da nossa luta). Por que então o repúdio desse setor da Universidade ao evento? Quem está por trás da condenação a esta conferência? Quem se opõe ao debate que vai se seguir e a quem interessa censurar as vozes que denunciam o holocausto palestino? Ora, a pró-reitora responsável por este repúdio à luta anticolonial chama-se Leslie Sedrez Chaves, uma mulher negra, feminista, acadêmica e reconhecida pela sua luta antirracista. Todavia, cabe perguntar: se ela tem todos esses predicados, por que se posiciona na contramão da luta antirracista na Palestina? Por que se coloca a favor de Israel e da opressão do povo Palestino? Por que vira as costas ao clamor de milhões que, no mundo inteiro, condenam o fascismo, o Apartheid, a violência desmedida e a morte de crianças e mulheres, que já ultrapassam os 30 mil? Para entender esta dinâmica é necessário aclarar vários pontos:

  1. O identitarismo é uma força conservadora, individualista e à direita no espectro politico. É uma corrente de pensamento surgida dos think tanks do partido democrata americano para obstaculizar as perspectivas revolucionárias e a luta de classes. Não possui uma visão abrangente da sociedade e seu foco é a visão fragmentada desta, entendendo as identidades como recorte estanques sobre os quais é possível agir sem agir em toda a complexidade social,
  2. Ser mulher, negra, feminista e antirracista não garante uma postura progressista e em defesa das lutas de classe e em favor dos outros povos que sofrem opressão e são vítimas das forças imperialistas. A negativa em apoiar a Palestina em sua luta anti-imperialista é um exemplo claro dessa visão tubular da sociedade, ignorando a dinâmica econômica que a controla, muito mais do que os gêneros, cores de pele ou orientações sexuais.
  3. O lobby sionista, que age através de ONGs imperialistas (StandWithUs e aqui no Brasil a CONIB), tem uma enorme pervasividade, atingindo todos os setores da sociedade. Estas instituições se ocupam em atacar a oposição crescente das sociedades do mundo inteiro aos desmandos e crimes contra a humanidade perpetrados por Israel com a conivência e apoio dos Estados Unidos. Esta adesão aos pressupostos identitários e a favor do sionismo corrói a consciência de classe que lentamente estamos construindo. O mesmo processo que ocorre na luta antirracista ocorre também na luta feminista, no movimento LGBT e até na humanização do nascimento. 

Esta Pró-Reitoria não tem capacidade de veto, muito menos de impedir a palestra do camarada, porém sua postura reacionária deve aumentar ainda mais o interesse pela conferência de Breno Altman, marcada para o dia 3 de abril 2024 no auditório central da Universidade. Cabe a todos nós darmos a resposta a esta tentativa de calar as vozes que lutam contra a chacina contra o povo palestino.

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Arquivado em Causa Operária, Palestina

Caem as Máscaras

Os apologistas da “liberdade de expressão” agora se apressam a criar formas de proibir as manifestações artísticas que criticam os sistemas de poder, como as polícias militares, que massacram a população pobre e preta do Brasil. Ou seja: liberdade para atacar as instituições burguesas quando perdem eleições, mas censura quando são criticados os aparatos de repressão ao povo trabalhador, do campo e da cidade.

Todo aquele que apoia a liberdade apenas quando quer falar, mas a ataca quando tem que escutar, é um hipócrita; nada além de um autoritário vestindo uma fantasia liberal. Como é comum entre a direita conservadora, enxergam-se como os detentores da moral cristã, e por isso acreditam ter o poder de censurar e calar quem os critica.

Apesar do identitarismo da Vai-Vai, que insiste numa visão ultrapassada dos conflitos sociais, a mensagem contra a polícia militar foi importante e marcante. O mesmo com o Salgueiro no Rio, ao criticar o descaso dos militares com os Ianomâmis. Calar a voz do povo quando enfrenta com as armas da arte popular a violência policial é uma ação criminosa, mas expõe o quanto estas instituições têm medo da revolta do povo trabalhador.

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Arquivado em Violência

Diversidade

Há 40 anos passados eu trabalhava como interno (estudante de medicina) em um pronto socorro privado da capital. Em uma oportunidade, enquanto conversava com a recepcionista em meio a um plantão monótono de fim de semana, vi um casal se aproximar da recepção trazendo uma criança ao colo.

– Meu filho está com febre. Preciso uma consulta. Vocês atendem pelo INPS?

O INPS é o antigo SUS. O casal e seu filho estavam vestidos de forma muito simples, algo pouco usual para um serviço privado em um bairro nobre da cidade. A secretária olhou para mim e sorriu com o canto da boca, como que a dizer “mais um daqueles”.

– Não atendemos pelo INPS, somente de forma particular. A consulta custa 5 mil cruzeiros.

O casal se olhou e sequer explicou que não teriam dinheiro. Resignados, limitaram-se a perguntar onde haveria um hospital público. A secretária apontou a direção e eles saíram com o filho febril nos braços.

– Todo sábado aparece um “cabeção” com esse tipo de pergunta, disse a secretária.

Cabeção, na gíria médica da época, representava o “sujeito pobre”. Alguns outros médicos tratavam esse personagem por “jacaré”, talvez por reclamarem muito, serem “boca grande”. Eu sempre recordo desse fragmento de história porque ele me ensinou algumas coisas relevantes, e a mais importante delas é a ilusão de pertencimento. Eu conhecia aquela secretária; ela era mãe de duas crianças e solteira. Ganhava um salário muito baixo e morava na periferia da cidade. Apesar disso, olhava com ares de superioridade para as pessoas do seu mesmo estrato social que apareciam inadvertidamente no ambulatório. Porém, por estar numa posição de relativo poder, e rodeada de profissionais da medicina, se considerava superior aos “cabeções” que, por ingenuidade ou desinformação, vinham procurar um serviço vedado à sua classe social. O fato de ser oriunda das classes populares não produzia a empatia que se poderia esperar; em verdade, muitas vezes esta condição produz o inverso: a identificação com o opressor.

Esta história se conecta com outras percepções que desenvolvi na minha vida. Uma delas é o meu repúdio às soluções cosméticas que jamais atingem a fonte dos problemas. Colocar uma pessoa das classes trabalhadoras em uma posição de relativo poder não significa garantir um atendimento mais empático, e a história está repleta de exemplos do quanto estas ações são apenas dissimulações para manter inalterada a estrutura social. Para alguns ainda é difícil entender porque a esquerda radical repudia o identitarismo, mas o veto ao cessar fogo em Gaza sendo dado, pela segunda vez, por um negro (representando um país majoritariamente branco) é mais um excelente exemplo. Diante da potência avassaladora do imperialismo, a cor da pele, a origem, os dramas compartilhados e as raízes são impiedosamente pulverizados. O sujeito, seja qual for sua identidade, será objeto de manipulação pelas forças reais que comandam a nação. A ideia de que negros, gays, trans, mulheres e quaisquer outros que se julguem oprimidos fariam a diferença pela sua representatividade é ingênua – no mínimo – mas é usada para dar a ideia de que sua escolha sinaliza as tão sonhadas equidade e diversidade na sociedade. Puro diversionismo macabro; na verdade os cordéis continuam sendo manejados pela elite exploradora; mudamos apenas a cor e a vestimenta dos marionetes. Nada muda, nada se transforma, mas oferecemos a suprema encenação para que os poderes sigam intocados.

Repito o que digo há décadas: se a representatividade tivesse valor neste nível, a entrada das mulheres na atenção ao parto – como ocorreu de forma marcante nas últimas décadas – teria um efeito revolucionário na assistência ao nascimento. Afinal, mulheres atendendo mulheres e criando entre elas uma sintonia fluida e natural, faria brotar a empatia redentora entre as cuidadoras e suas pacientes. A migração feminina para a obstetrícia deveria produzir uma marcada transformação no cuidado, diminuindo, até quase a extinção, qualquer resquício de violência obstétrica institucional. Essa era, para quem se lembra dos debates dos anos 90, a esperança compartilhada por muitos profissionais da nascente corrente da humanização do nascimento. Nada disso ocorreu. O que se viu na entrada do novo milênio foi que essa esperança era falsa, e a mudança simples no gênero dos atendentes não produziu nenhuma alteração perceptível nos níveis de abuso e violência no parto.

As taxas de violência e abusos praticadas por profissionais na atenção ao parto, sejam eles homens ou mulheres, são praticamente idênticas. O peso da medicina e a pressão corporativa são muito mais fortes que a identidade. O jaleco branco, a caneta “Parker” e o estetoscópio pendurado no pescoço são mais relevantes do que sua história, sua origem social ou sua identidade. Também por isso havia negros na polícia racista da África do Sul, árabes no exército sionista e pobres e negros nas forças de repressão brasileiras nos inúmeros massacres perpetrados contra a população negra e pobre das periferias brasileiras; a farda pesa mais do que a cor da pele.

Que isso nos sirva de lição na luta contra os preconceitos e a exclusão: a luta precisa ser compartilhada, sem diversionismo. A grande revolução será em torno da luta de classes, não das cores, dos gêneros e dos jeitos de ser. Não existe emancipação de mulheres, negros, gays, etc. que não passe pela revolução contra o capitalismo, atingindo a sociedade de classes e eliminando as barreiras sociais.

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Arquivado em Causa Operária, Pensamentos