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Divisionismos

Filho nunca vai ser o atraso pra quem gosta de trabalhar… mulheres guerreiras tem meu respeito.”

A legenda dessa foto na internet, escrita por um homem, foi: “Filho nunca vai ser o atraso pra quem gosta de trabalhar… mulheres guerreiras tem meu respeito”.

A resposta de uma internauta indignada foi: “Sempre tem um macho que…”

A manifestação desse sujeito é obviamente idiota, e realmente está romantizando o trabalho escravo e desumano ao qual as mulheres se submetem. Não há nada de romântico ou nobre em trazer um filho pequeno para seu trabalho por absoluta falta de suporte, seja de creches ou de licenças especiais para a maternagem. Não há dúvida que esta mulher merece todo o nosso respeito, mas não apenas isso; ela merece justiça e valorização do seu trabalho. Não é sobre o respeito que devemos debater…

Entretanto, me incomoda muito quando alguém diz que isso foi dito por um “macho”, como se a motivação para escrever esta tolice foi pelo fato de pertencer ao gênero masculino. Aliás, por acaso causaria surpresa se essa frase fosse escrita por uma mulher? Por certo que não… E por que usar a palavra “macho”? Seria “macho” uma “acusação”, um humano com uma maneira equivocada e violenta de ser no mundo? Pois na minha perspectiva essa legenda não foi escrita porque seu autor é homem, mas porque foi a expressão de alguém que se deixa seduzir pela ideia da “meritocracia subserviente”, e foi escrita pelos mesmos que aplaudem quando meninos de 10 ou 12 anos saem para trabalhar na rua para sustentar suas famílias. Chamam a estes personagens de “trabalhadores”, “heróis”, “bravos guerreiros”, e deixam de enxergar o quanto de exploração e abuso criminoso existe nestas atitudes.

Acreditam mesmo que são os homens os inimigos, aqueles que estão na origem da iniquidade? Seriam eles a causa primeira desse problema? Quando vamos entender que no momento em que essa foto foi tirada havia um homem morrendo ao cair de um andaime, sendo baleado pela polícia, morrendo no trânsito, sofrendo um acidente de trabalho, mergulhando a 100 metros de profundidade para consertar um cano ou subindo a 200 metros de altura para ajustar um cabo de alta tensão? Alguns mergulham no esgoto, outros carregam o seu lixo nas ruas, sem falar nas guerras onde 99% dos mortos são homens ou nos suicídios em que 80% são cometidos por homens jovens. Esse tipo de ideia – de que o sofrimento das mulheres é causado pelos homens – é tolo, sem base, sem sentido e divisionista. Da mesma forma o sofrimento desses homens não pode recair sobre as mulheres, tão vitimadas quanto eles por um modelo cruel.

Esse desequilíbrio, essa dor, essa injustiça são causados por um sistema injusto que atinge a todos e se chama capitalismo, um modelo social perverso que divide as sociedades em classes, onde quem determina é o capital e não o sexo, o talento, a competência, a orientação sexual ou a capacidade. Culpar os homens – como se o fato de ser homem fosse crime – é indecente e errado, tão equivocado quanto ver um miserável negro apontando o dedo para o seu vizinho branco – e tão f*dido quanto ele – chamando-o de “opressor”. Esse tipo de acusação faz os ricos, os rentistas e a elite financeira darem gargalhadas. “Enquanto eles se acusam entre si não percebem que ferramos a todos”.

O identitarismo é um movimento de direita, importado dos imperialistas do partido democrata americano, cujo grande objetivo é dividir as sociedades em grupos de identidade, fazendo-os cegos à realidade das classes. Apostar nessa perspectiva de mundo é aceitar a dominação e a divisão e permitir que a subserviência ao imperialismo e ao capital sejam determinantes imutáveis.

A imagem mostra uma vitima das sociedade de classes, e não dos homens. Os homens são igualmente vítimas desse modelo e ficar debatendo quem é “mais vítima” é inútil quando temos uma tarefa muito mais nobre e importante pela frente: o fim do capitalismo e de toda a ideia de castas na sociedade.

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Preconceito

É curiosa a nossa percepção de preconceito, e sobre essa questão já me debrucei diversas vezes. A definição de “pré-conceito” seria o conceito prévio, aquilo que trazemos como verdade antes do fato ser julgado, sentimento de hostilidade baseado em uma generalização após uma experiência pessoal (ou mais de uma) ou imposta pelo meio; uma espécie de intolerância por fatos já acontecidos. Aqui é importante diferenciar “preconceito” de “discriminação”. O preconceito é um sentimento, enquanto a discriminação é uma ação de desmerecimento de pessoas ou grupos baseada em preconceitos.

Pois eu afirmo que, na realidade, ninguém é contra os preconceitos. Todo mundo os tem e os usa todos os dias. “Vamos por este caminho para não termos que cruzar pelo bairro perigoso”. Quem nunca disse isso? Quem se aproxima sem cuidado de um cachorro desconhecido? Ora, pode ser mansinho, mas experiências anteriores nos dizem que ele pode morder. Temos preconceito com cães e com a “barra pesada”. O genial Oscar Wilde já nos dizia “A vantagem de brincar com fogo é aprender a não se queimar”.

Esta semana um sujeito nos Estados Unidos expulsou uma passageira que teve uma atitude racista no seu Uber. Teria dito: “ainda bem que você é branco, fala inglês”. O jovem ficou furioso e exigiu que ela se retirasse. Foi aplaudido por todos, inclusive por mim, que acho essas atitudes odiosas e injustificadas.

A gente não sabe se essa moça já teve experiências ruins com imigrantes de pele escura – uma, duas ou mais. Não importa: seu preconceito contra negros e imigrantes é intolerável. É consenso que as experiências prévias dela não podem justificar um julgamento sobre toda uma identidade (raça, origem, identidade e orientação sexual, gênero, etc.). Guardem essa última frase.

Agora pergunto: se ela tivesse dito “Ainda bem que você é mulher”, produzindo um claro e evidente preconceito de gênero contra os homens, acaso seria maltratada e expulsa? Seria admoestada por produzir uma generalização apressada, um sentimento de hostilidade contra um grupo, intolerância com a identidade dos motoristas homens?

Não, não seria. Vi mulheres expressando isso de forma clara e até orgulhosa. Ter preconceito contra homens NÃO É um problema, não é socialmente repreensível e não causaria nenhuma comoção caso seja expressado publicamente. Todo mundo já testemunhou isso sendo feito dezenas de vezes. Assim, fica claro que não é o preconceito que deploramos, mas apenas quando o uso de generalizações negativas recai sobre grupos socialmente desfavorecidos. O preconceito em nossa cultura é LIBERADO, o que não pode ser tolerado socialmente é seu uso para estigmatizar segmentos ou identidades que já são atacados ou desmerecidos.

Falar mal de homens, brancos, cis, heterossexuais etc, é absolutamente permitido e até estimulado. Não há problema algum tratarmos brancos como um bloco uniforme chamando-os de “branquesia”, tratar os homens por “mascus” ou “macharedo” ou desmerecer a heterossexualidade. Não há problema algum em enxergar todos os homens como versões de Fred Flintstone ou Homer Simpson. Não existe nenhuma revolta pelas generalizações sobre estes grupos; pelo contrário, são até elogiadas.

Não esqueçam que racismo é preconceito de raça e o que a passageira do Uber fez foi preconceito. Não há distinção. Também não há como deduzir que ela NÃO teve mais experiências negativas porque estava rindo. O comportamento diante dessa interação é errático e não segue padrões. Talvez quisesse apenas que ele se associasse a ela no preconceito. Mas veja…. boa parte das mulheres manterão sua perspectiva de que não há problema ter preconceito de gênero com os homens porque eles são realmente maus, abusadores e violentos, mesmo que 99.99999% das interações das mulheres com os homens seja absolutamente pacífica. Minha tese, que eu gostaria que fosse debatida, é sobre o fato de que não temos problema algum – enquanto cultura – em assumir posturas preconceituosas. O problema é contra quem é o preconceito é exercido, e não o julgamento pregresso que temos de pessoas, grupos ou identidades.

E vejam, eu não reclamo dessas características da cultura sobre a forma como os grupos são tratados, e entendo o preconceito contra os grupos vistos como poderosos – brancos, homens, heterossexuais, cis gênero, etc, mas apenas acredito ser errado criar sobre estas identidades uma falha moral, como se pertencer a elas fosse errado ou indecente, o que permitiria que fossem tratados de forma generalizada como inferiores, maléficos, degenerados ou violentos. Da mesma maneira, acredito ser absurdo imaginar que a condição de oprimido garanta uma vantagem moral sobre grupos opressores. Acho também que qualquer preconceito contra identidades é deplorável, e não apenas aqueles socialmente estimulados.

E… não é necessário concordar comigo; segundo meu ídolo Oscar Wilde, “Quando as pessoas concordam comigo, tenho sempre a impressão de que devo estar enganado.”

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Abusos sexistas

Na mesma semana que uma música de Chico Buarque é cancelada por ser pretensamente “machista” uma lojista e “influencer” de São José dos Campos-SP coloca um cartaz proibindo a entrada de homens na frente da sua loja no shopping – porque sua presença seria incômoda para as mulheres. As desculpas para estes atentados à livre expressão e à livre circulação, ao meu ver, são absurdos e indecentes.

Não são apenas os fanáticos religiosos e os anticomunistas as ameaças à democracia, até porque estes nunca ousaram cancelar músicos e proibir a entrada de um gênero em um espaço de uso público. Os identitários e sua perspectiva autoritária, sectária são um risco ainda maior porque suas propostas são travestidas de “boas intenções” e “proteção às minorias”.

Imaginem um bolsonarista impedindo gays, trans ou negros de entrar em seu estabelecimento. Pensem no escândalo que seria. E se fossem judeus? Entretanto, vetar expressões artísticas e proibir circulação de homens dentro de lojas não causa nenhum furor – ou infinitamente menos do que deveria. Quantos abusos mais serão necessários até percebermos que a lei é para proteger a todos, e não apenas os grupos que desejamos beneficiar?

Não há defesa para discriminação e sexismo. O cartaz é discriminatório, inconstitucional e francamente ilegal. Posso entender o que a levou a fazer isso, mas nada justifica esse tipo de discriminação de gênero.

Imaginem se fosse o contrário: “Proibido Mulheres” em um bar, no estádio de futebol, ou na Casa do Estudante – um caso famoso aqui em Porto Alegre nos anos 80. Pior: imagine que um grupo de transexuais tivessem, por mais de uma vez, entrado no estabelecimento fazendo zoeira, bagunça, falando alto ou apenas sendo inconvenientes. Em função destes contratempos a dona, cheia de justificativas, coloca um cartaz à vista de todos: “Proibido entrada de transexuais”.

IMAGINEM O (JUSTO) ESCÂNDALO!!!

Vejam… a situação é grave porque a dona do estabelecimento não se refere aos comportamentos inadequados na loja, tipo espiar, ficar olhando as modelos, censurar namoradas, etc. Não… ela acusa o gênero masculino, todos os homens, sem distinção. Se alguém faz isso com negros, gays, indígenas ou mulheres isso tem um nome: preconceito, e inclusive tal conduta está tipificada no código penal. Por que poderia ser justo impedir que o gênero masculino fosse proibido de entrar em uma loja quando uma ínfima minoria causou problemas?

O argumento do “código de vestimenta” – ou seja, impedir que alguém sem camisa entre na loja – não cabe. Você pode pedir para que um sujeito sem camisa saia da loja, mas não pode aceitar um sujeito ser expulso por ser gay ou negro. E também não poderia expulsar um sujeito (ou impedir sua entrada em áreas publicas) por ser homem.

Se a gente quer banir os preconceitos precisa ser contra todos, sem exceção, e não apenas os preconceitos que nos atingem. Discriminar os homens pelo mau comportamento de alguns poucos não pode ser tolerado.

Sexismo e racismo são iguais em sua expressão danosa e destrutiva.

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Sobre o humor

É curioso ver o quanto o humor é atacado nos tempos atuais, em especial porque em tempos de identitarismos e de cancelamentos os próprios humoristas tiveram que refrear sua propensão a fazer piadas sobre tudo e todos. A grande queixa é que o humor “pode ferir as pessoas” e os humoristas não deveriam fazer de sua arte uma arma para gerar sofrimento, exclusão, preconceito e divisões.

Parece justo, desde que se entenda a diferença entre piada e “humor bullying”. Existe entre elas uma diferença muito grande que poucas pessoas – até mesmo por oportunismo – se negam a ver. É possível – e eu diria, é necessário – fazer piada com QUALQUER coisa. Sim, inclusive mortes de crianças, câncer, tragédias e até abusos, desde que o texto do gracejo respeite o CONTEXTO. A piada não pode ser o veículo que carrega o preconceito. Ela não pode ser usada para que uma mensagem obtusa, excludente ou claramente ofensiva seja levada adiante sem pagar o preço de uma posição aberta e estampada. “Ah, relaxa, é só uma piada”, frequentemente é usado para esconder uma manifestação de puro racismo, sexismo, lgbtfobia, preconceito de classe, etc. O humor não deveria se prestar para isso, mas para quebrar a arrogância que cada um constrói sobre si mesmo ou o grupo ao qual pertence.

O HUMOR É SAGRADO e eu não acho que existam etnias, gêneros, comportamentos ou orientações sexuais que possam exigir isenção à acidez natural e benéfica de uma piada. Um chiste humaniza a todos nós, mostrando nossas quedas, falhas, desacertos e aspectos ridículos. Nos reinos antigos o Menestrel tinha pleno direito de fazer gracejos com o Rei e sua família, porque assim humanizado o povo se sentia mais próximo dele – e assim podia ser mais facilmente manipulado e roubado.

Portanto, creio ser importante garantir o direito à piada, ao gracejo e ao humor… sobre QUALQUER coisa, sem limites (a não ser os legais, se houver) e sem censura. Como diria um famoso piadista americano quando perguntado se era possível fazer piada com “câncer infantil”, sua resposta foi excelente: “Claro que pode, mas é melhor que seja muito boa”. Ele dizia que tocar em um ponto tão delicado como este para fazer humor é possível, mas é importante que a qualidade da piada e seu contexto sejam tão bons a ponto de romper a barreira que naturalmente usamos para nos defender destes temas.

Aliás, para mim um dos piores tipos de exclusão em um grupo é saber que meus iguais se negam a fazer gracejos a meu respeito apenas porque acham que minha condição – seja ela qual for – me impediria de rir de mim mesmo.

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Expiações

Essa frase apareceu em um fórum espírita e suscitou um certo debate. Creio que a confusão se dá quando confundimos a “condição” em si com a “reação social” à condição. Por esta razão eu discordo da tese principal. Claro que ser negro, homossexual ou transgênero pode ser uma expiação. Não vou entrar no debate da definição do que seja “natural”, pois NADA no humano é natural, até porque – como diria Lacan – “a palavra matou o real”, e em um mundo simbólico tudo é artificial e produzido pelas palavras. O mundo para os humanos é uma criação simbólica que não guarda mais nenhuma relação com o mundo de verdade. Por isso a expulsão do Paraíso. Lá, na “animalidade”, impera gloriosamente a natureza, onde podemos dizer que os que lá vivem são amparados pelo Criador e vivem no mundo “natural”. Já nós fomos de lá expulsos e não há como voltar, já que a palavra destruiu todo o resquício de natureza que existia no humano.

Porém, é evidente que a condição de ser negro, homossexual ou transexual no contexto em que vivemos é, sim, uma provação. Ainda não escutei nenhuma pessoa me dizer que seu transcurso pela negritude, pela homossexualidade ou por uma identidade de gênero diferente de sua biologia ao nascer ocorreu sem problemas, de forma “natural”. Ser negro em uma sociedade marcadamente racista – seja de forma explícita ou pelos elementos estruturais e invisíveis – é um peso enorme a ser carregado. Ser homossexual e transexual, em sociedades que penalizam as livres escolhas sexuais também é uma carga muito pesada a ser levada durante uma vida inteira.

Portanto, moralismo anacrônico seria dizer que estas condições são CASTIGOS, como se houvesse algo intrinsecamente pecaminoso em ser negro, gay ou trans. Parece óbvio que não, até porque nenhuma delas parte de uma escolha livre por parte do sujeito e, portanto, o seu exercício não pode ser considerado imoral. Entretanto, qualquer destas condições – NESTA SOCIEDADE – marcada pelo preconceito, continua sendo um peso muito difícil de suportar, onde o sofrimento e a dor são resultados inexoráveis.

Na perspectiva espírita – que pode ser questionada, mas é uma forma de entender a diversidade humana – seria lícito imaginar que um sujeito profundamente preconceituoso com a com os negros, os transexuais ou a homossexualidade em uma de suas experiências como encarnado voltasse em outra oportunidade carregando uma dessa condições – ou todas elas. Não como castigo, pois esse conceito é tolo e infantil, mas como forma de aprendizado, para poder entender a dor que o preconceito é capaz de produzir no semelhante.

Espero ter sido entendido…

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Contextos

Li pelas redes sociais um texto onde a articulista tentava mostrar as dificuldades pelas quais Karol (do BBB) havia passado desde sua infância – difícil e penosa – para que nosso julgamento sobre suas atitudes egoístas ou preconceituosas pudesse ser contextualizado diante de uma vida de luta, dor e sofrimento. Esse texto veio logo depois de outro, de igual teor, que pedia mais amor ao julgar a transexual que, depois de pedir “mais aglomeração”, acabou falecendo pela Covid19. Também ela havia sido vítima de uma sociedade cheia de julgamentos, violência, incompreensões e cancelamentos. Muito antes ainda eu li a história de uma mãe estressada que bateu no seu filho pequeno durante uma viagem de ônibus porque ele insistia em colocar a mãozinha para fora da janela para brincar com o vento. Quando foi interpelada por outra passageira sobre a razão da violência ela desfiou uma série de pequenas tragédias cotidianas que colocavam aquela agressão dentro de um contexto maior, de privação e sacrifício. O nome do texto era algo como “Muitas vezes só o que ela precisa é de um abraço”. E foi mesmo com um abraço compassivo que o texto terminou.

Todos estes textos me chamaram à atenção por serem justos. Há que se conhecer o contexto para compreender a integralidade de qualquer ato desviante. Ortega y Gasset já nos ensinava: “Eu sou eu… e minhas circunstâncias”, mostrando que somos feitos de elementos alheios à nós, os quais pressionam por ações e atitudes.

Todavia, depois de ler estes textos eu fiquei com uma curiosidade: se no lugar de uma “lacradora“, artista negra e vinda dos estratos mais pobres da sociedade, de uma transexual marcada pelo desprezo e o abandono ou de uma mãe desgastada pela sua tripla jornada estivesse um homem, um abusador e agressor, haveria a mesma análise que tenta entender suas ações inseridas em um contexto de violência psicológica infantil? Sim, porque praticamente todos os abusadores e espancadores tiveram uma infância recheada de traumas e agressões, que são encenados pela vítima na fase adulta agora no papel do opressor. Ou esse raciocínio compreensivo só serve para minorias e oprimidos? Só é possível ser condescendente diante da possibilidade de identificação com o sofrimento alheio?

Pois eu faço o convite a que essa compreensão mais abrangente seja estimulada e assegurada a todos, e não somente àqueles grupos com os quais conseguimos desenvolver empatia. Até porque qualquer um de nós, seja preto, branco, homem, mulher, gay, trans, oprimido ou opressor já esteve diante de escolhas e acabou sendo o Torquemada de alguém.

Todos temos um lugar de dor onde se esconde nosso recalque. Meu singelo pedido é que, antes de julgar qualquer sujeito, é importante saber que todo mundo carrega feridas mal cicatrizadas e que é preciso entender aquele que comete erros dentro de seu contexto de vida. Todos nós, de uma forma ou de outra, cometemos delitos – com maior ou menor gravidade. Sem exceção…

Ser compreensivo e tolerante com os erros do próximo é bom e justo até porque é isso que esperamos que façam conosco. Todo mundo merece receber um julgamento de acordo com suas circunstâncias e contextos. Assim, o teste verdadeiro é tentar entender alguém cujas atitudes agridem nossa humanidade, procurando olhar para o criminoso (e não para seu crime) com a mesma justa compreensão com a qual julgamos a transexual ou a garota do Big Brother. E isso não significa perdoar crimes, mas entender os criminosos.

Justiça, amor e raio laser para todos.

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Pelé…. e Maradona

Até quando o Maradona morre o foco volta a ser o Pelé e de novo aparece a nossa incapacidade de aceitar um ídolo e herói negro para um país racista. É difícil aceitar o Pelé, não?

Acho curioso que o Pelé não pode ser referência por causa de seus erros humanos, mas a madame branca que apoiou a pedofilia pode…

Nada a ver com drogas ou “vidaloka” de um ou pela postura política à direita do outro. Pelé é criticado porque ousou ser um Rei preto num pais racista. Maradona pôde fazer filhos com todo mundo e dar porrada na mulher, mas não é negro. Aqui falam exaustivamente do “reconhecimento da filha” apenas para facilitar o ódio que sempre tiveram do Pelé pela cor da sua pele. Preto desaforado, metido…

Pelé deu declarações à esquerda no passado, mas assina camisas para presidentes de direita hoje, e por isso não é perdoado. Toda a cocaína e o álcool de Maradona, assim como as violências domésticas, recebem nosso perdão porque, afinal, ele “parece” ser um rei, e não alguém que algumas poucas décadas atrás era açoitado por um deslize qualquer.

Pelé nunca será perdoado pelo crime de ser negro.

Maradona não foi nem uma quarta parte do que Pelé foi em campo, não teve metade da sua genialidade com a bola nos pés, mas teve muito mais consciência social e muito mais engajamento nas lutas pelo povo da América Latina, e por isso merece também estar no Panteão dos gênios da raça.

Salve Maradona, salve Pelé, salve Fidel e Simón. Viva Che, viva Rosa e Ataualpa… e longa vida à unidade Latinoamericana.

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Xenofilia

Conheci durante minha vida um tipo curioso de brasileiro, facilmente destacado nas rodinhas de médicos em corredores de hospital e nas salas de conforto dos centros cirúrgicos. Eu o chamo de “xenofílico“.

Defino esse sujeito como o oposto do xenofóbico; é o cara que ama o que vem de fora. É um sujeito – via de regra muito pouco viajado – que não se cansa de elogiar tudo que vem de outros países, em especial da Europa, enquanto adora depreciar tudo e todos à sua volta por serem “brasileiros”. Adoram contar a piada de que Deus fez o país mais lindo e mais rico do mundo, mas em compensação encheu com esse “povinho” medíocre, egoísta, escurinho, subletrado e ignorante.

Enquanto descreve as mazelas de ser brasileiro, descreve com água na boca a cidade de Buenos Aires e sua população “culta e loira”, seus cafés, suas livrarias e depois nos conta com indisfarçável prazer da viagem que fez a Paris e como se sentiu em casa diante de toda aquela civilização. Conta dos museus, das roupas, das ruas limpas, mas sempre esconde as feridas que nestas sociedades ainda se mantém.

Esse sujeito, além disso, não se enxerga brasileiro. Não se sente responsável pelo atraso que testemunha. Acredita-se vivamente injustiçado, pois que seu lugar seria justamente próximo de seus iguais. Acha-se um europeu asilado. Como na música de Chico, acredita que Deus é um sujeito gozador e adora fazer brincadeiras e, só por isso, na barriga da miséria ele nasceu brasileiro – e ainda no Rio de Janeiro.

Aqui no sul os xenofílicos tem sobrenome italiano ou alemão. Lia-se nos para-choques de seus carros “Mi son talian, grazie Dio“, que em dialeto vêneto quer dizer “Graças a Deus sou italiano”.

Mesmo? Onde? Em verdade a frase justa e honesta seria “Graças a Deus eu não sou brasileiro“, porque realmente não se consideram como o resto da população. São de outra cepa, muito mais limpa e nobre. Olham com desprezo para os outros, os “pelo duro”, com suas peles mais morenas e cheias de Silvas, Souzas ou Oliveiras nos nomes, uma infinidade de mesmices patronímicas vulgares que desvelam a ausência de estirpe.

Em Bacurau estão representados naquele casal que olha para os gringos e lhes dizem: “nós somos como vocês“, alguns minutos antes de serem exterminados pelos estrangeiros, os mesmos que tanto admiravam. Para estes xenofílicos, a posição “diferenciada” em relação aos seus irmãos brasileiros parece palpável, mas aos olhos de quem os governa são todos igualmente “cucarachas“.

Eu também sonho com uma sociedade sem fronteiras e sem barreiras de qualquer tipo. Entretanto, não acredito que esta sociedade será construída pela simples supressão da autoestima dos povos por ora oprimidos. E acho muito mais honesto – apesar do meu nome cheiro de referências estrangeiras – assumir-me gloriosamente brasileiro, chinelão, cucaracha, com tudo o que isso representa de bom, de triste, de inovador e de poderoso.

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Ungida

Há um filme que idealiza a deputada gospel Flordeliz onde ela é descrita como um “ser de luz”, benfeitora e mãe amorosa de tantas crianças. Porém, hoje sabemos que ela e sua família estão muito longe disso. Então cabe a pergunta: se é possível transformar histórias criminosas em narrativas de superação e virtude que ocorreram somente há duas décadas, então imagine o quanto se distorce a realidade do que aconteceu há 2 mil anos, criando sobre fatos locais fantasias grandiloquentes que dizem muito menos sobre espiritualidade e muito mais sobre os interesses políticos, econômicos e de poder.

A blindagem de figuras históricas pelo manto da “espiritualidade superior” nada traz de construtivo para a sociedade, e para todas elas eu recomendo a iconoclastia.

A pastora recentemente envolvida em crimes diversos pode representar os evangélicos, não o Cristo. Deixem ele fora disso. O erro nessas tragédias é imaginar que uma crença, seja ela qual for, determina a moralidade do sujeito que a segue. Não é o que se observa. O crente não tem nenhuma vantagem ou privilégio na fila do céu.

Ser cristão, muçulmano, espírita ou ateu são, acima de tudo, identidades, usadas para criar laços, narrativas confluentes. A religião é como um idioma para que possamos falar das perguntas que a ciência jamais terá respostas, como o sentido da vida e a razão do universo. Entretanto, são na prática expressões dos códigos morais que apontam para os valores mais profundos da sociedade.

As religiões abrahâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo), por exemplo, são estruturas criadas para dar sustentação ao patriarcado nascente, fortalecendo a coesão social das sociedades agriculturais partir da rigidez da estrutura falocrática. E funcionaram muito bem para isso.

O cristianismo se insere nesse modelo, como religião surgida da releitura reformista do judaísmo. Não existe nada no cristão, do ponto de vista moral, que o diferencie de qualquer outro sujeito no planeta, inclusive aqueles que negam qualquer afiliação religiosa.

Mas, a única diferença é o olhar que a sociedade lança aos “pecadores”. A pergunta que hoje se faz àqueles que (com justiça) dizem que a conduta de Flordeliz nada tem a ver com seu cristianismo é: e se ela fosse do candomblé, poderíamos dizer o mesmo? E se fosse muçulmana, estaríamos limpando a barra do profeta Maomé? Se ela fosse budista nossas palavras seriam direcionadas à proteção de Buda e seus ensinamentos?

Ou estaríamos condenando ela assim como as suas crenças e sua religião como obras demoníacas, criadas para desvirtuar e destruir?

Pois é…

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