Arquivo do mês: outubro 2020

Lacre

Nos anos 80 e 90 do século passado eu escutava muito um programa de esportes no rádio que era transmitido logo depois do almoço. Tinha uma característica clássica: um torcedor fanático de cada um dos times da cidade, alguns torcedores moderados e outros ditos isentos. Era cômico, divertido, machista muitas vezes, informativo e falava desse universo masculino do futebol. Ainda existe, porém claramente decadente, mas por mais de 40 anos foi o maior programa de rádio desse estado.

Havia, entretanto, uma característica desse programa que sempre me incomodou. Uma vez por mês o programa se mudava para o interior do Estado para fazer uma transmissão ao vivo, num ginásio de esportes ou em uma praça. Lá eles debatiam o mesmo tema – o futebol do estado – mas com plateia, ao vivo. Aí é que as coisas complicavam.

Os argumentos e as tiradas espirituosas davam lugar a falas cujo único objetivo era conquistar o povo reunido para escutá-los. Como em todo lugar, metade da audiência torcia por um time e metade para outro. Assim, a tarefa dos debatedores era dizer algo pretensamente espirituoso e provocativo – falar do número de títulos do seu time, lembrar quem ganhou a última disputa, quantos embates vencidos na história, quem estava melhor no campeonato, etc – e fazer a plateia vibrar quando se dizia algo aparentemente grandioso e que deixaria o adversário sem resposta. Uma espécie de “repente” nordestino, mas centrado no tema do futebol.

O problema desse modelo é que a profundidade dos argumentos, a qualidade da explanação e a própria verdade dos fatos sucumbiam à necessidade de agitar aqueles presentes ao encontro. Não se tratava mais de oferecer uma qualidade argumentativa, com lógica, coerência e precisão, mas conseguir mais aplausos, apupos e aceitação dos presentes. Isso, evidentemente, agradava quem lá se encontrava, os quais passavam uma procuração aos debatedores nessa batalha retórica. As discussões, entretanto, se tornavam pueris, infantis e maniqueístas, reduzindo o encontro de ideias a pó.

Muitos anos depois o mesmo fenômeno aconteceu nas redes sociais e hoje atende pelo nome de “lacração”. Da mesma forma como no programa de rádio, temos uma imensa plateia de pessoas que podem ler o que escrevemos. Para algumas – os chamados influenciadores digitais, ou “influencers” – esse número pode chegar aos milhões. Desta forma, nada que se diga passa impune. Como consequência dessa plateia cativa de observadores, os bons argumentos, a retórica de qualidade e a simplicidade enxuta de uma fala acabam dando lugar às manifestações “lacrativas”, que visam produzir não apenas ataques “ad hominem”, mas argumentos frágeis e até mesmo toscos e tolos, mas que são direcionados à gigantesca massa de pessoas que fazem parte da torcida organizada criada pela nossa bolha das redes sociais.

Mais ainda: os argumentos são frequentemente usados de forma desonesta, quando sabemos que, mesmo sendo errados e injustos, ainda assim os usamos, pois temos a certeza que serão aqueles que mais impacto poderão causar.

A cultura do “lacre” produz cotidianamente manchetes estúpidas como “Fulano humilha Ciclano em um debate“, “Beltrana destroi opositora em conferência“, geralmente no YouTube, e não são poucas as vezes em que o inimigo (de esquerda ou direita) é retirado do contexto e sua fala jogada nas redes para assim poder ser destruída. Vale tudo em nome da lacração.

A “Lacração Ilimitada” não é de hoje, por certo, mas as redes sociais a transformaram em uma praga que obstaculiza o pensamento, impede os debates e atrasa o progresso das ideias.

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Fantasias

Ela contou algumas histórias sobre seu cotidiano, suas insônias, as dores nas costas e o antigo refluxo que a incomodava. Depois falamos de seus sonhos, do casamento recente e do desejo de ter um filho. Eu escutava e só desviava ocasionalmente o olhar para anotar uma passagem que fosse significativa. Após algum tempo ela olhou direto em meus olhos e, depois de uma pausa, me disse:

– Isso é um pouco pessoal, mas preciso falar de uma coisa sobre o meu casamento.

Larguei a caneta sobre o papel, ajustei o óculos sobre o nariz e cruzei os dedos sobre a folha rabiscada. Entendi que a consulta dava um giro importante, talvez chegando ao ponto que a tinha originado.

– Claro, disse eu, pode falar.

Ela baixou o olhar por alguns instante e depois começou a falar sem erguer os olhos.

– É o meu marido. Acontece que ele é muito possessivo. Eu diria que ele é até grosso. Não deixa eu sair com minhas amigas e controla meus vestidos. Não gosta que eu me comporte de forma muito alegre em público. Ciumento, muito. Não suporta que alguém se reporte a um ex namorado meu. Controla meus horários e cobra qualquer mínimo atraso…

– Alguma violência?

– Não!! Jamais!! Nunca me bateu ou qualquer coisa parecida com isso. Ele é – e sempre foi – um perfeito cavalheiro. Nem levantar a voz ele faz comigo. Eu também não aceitaria qualquer tipo de violência comigo. É só esse comportamento controlador dele, constante…

– Bem, mas você já pensou em dizer a ele que poderia pedir ajuda? Existem diversas formas de abordar esse comportamento, e muitos homens apenas repetem em sua vida madura o….

– Não Ric, você não entendeu. Não acho que ele precisa procurar ajuda. Não é esse o problema…

– E qual é?

Ela esperou um pouco antes de responder, e soltou as palavras como se estivesse a fazer uma confissão.

– O problema… é que eu gosto. Eu adoro um homem me tratando assim. É algo que me excita.

Bem, se há algo que aprendi foi não me intrometer na fantasia sexual de ninguém. Se há consentimento e respeito tudo é válido entre adultos. Apenas sorri e lhe disse que a mim não cabia julgar os laços eróticos que unem as pessoas. Ela sorriu satisfeita, como que aliviada por sentir-se livre para amar seu marido do seu próprio jeito.

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Sobre familiares no parto

Lembro de dezenas de relações maravilhosas relacionadas à presença da mãe (futura avó), durante o parto, mas também testemunhei meia dúzia de situações dramáticas causadas pela presença desta personagem, e algumas vezes do próprio marido. Só é possível avaliar a adequação dessa presença analisando caso a caso, e a decisão deve sempre ocorrer na perspectiva da gestante.

Imaginar que a presença da mãe – ou do marido – seja sempre uma boa ideia é não reconhecer as infinitas experiências possíveis criadas nestes relacionamentos. Medo, angústia, dívidas amorosas, fragilidade e falta de confiança nos profissionais podem ser os fatores determinantes desse convite, suplantando a proposta meritória (e por vezes romântica) de comunhão familiar.

Pior ainda, essas emoções negativas podem estar (e frequentemente estão) escondidas e inconscientes, e tudo que vemos na superfície é uma máscara de confiança, amorosidade e afeto. Infelizmente, esta aparência toda se dissolve diante das dificuldades ou desafios do trabalho de parto; onde existia harmonia e carinho pode aparecer ressentimento, impaciência e cobranças do passado. Daí para uma obstaculização definitiva do processo é um passo.

Assim, fica claro que não há como criar regras rígidas e aplicáveis a todos para a participação de futuras avós, maridos e filhos. Tudo o que podemos fazer é estabelecer princípios gerais (silêncio, não interferência, auxílio nas tarefas, etc) adaptados a cada situação particular.

Nenhuma mulher chora, ri ou goza igual às outras, e nenhuma vai parir de mesma forma como qualquer outra mulher já pariu. O parto é uma face da sexualidade feminina e sua expressão é tão própria do sujeito quanto suas digitais.

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Contrariedades

Meu pai há muitos anos foi fazer uma uroscopia no hospital Ernesto Dornelles. Ao acordar da anestesia geral, e ainda tonto, eu me aproximei dele e perguntei como estava.

– Estou bem, não estou sentido nada, só uma zonzeira. O médico passou aqui e me deixou uma única orientação.

– E qual foi?, disse eu do alto da minha inocência, imaginando que era algo sobre a sonda ou algum medicamento.

– Ele falou que estou liberado para fazer tudo, mas devido à minha condição eu não devo ser contrariado em nada.

Disse isso e deu sua famosa risadinha britânica. Não importa a quantidade de boleta na mente; quem nasceu para esse tipo de piadinha nunca perde a oportunidade.

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Poderes

Não tem nada a ver com ciência, mas com poder. A narrativa dominante de penalização da natureza e exaltação da tecnologia não tem nenhuma ligação com a saúde ou as evidências científicas, mas com domínio e poder sobre as “matrizes”. O corpo das mulheres continua sendo o tabuleiro onde este jogo é encenado. Para manter o poder e o controle não se admite perder nenhum centímetro de pele conquistada.

“O parto é parte da vida sexual das mulheres”, e o seu controle pela ideologia médica envia uma potente mensagem subliminar de submissão que se transmite a quem dá à luz e direciona a vida de quem chega.

O controle da sexualidade das mulheres pela ideologia patriarcal dominante, é essencial para manter intocada a estrutura social. Destravar esse sistema opressivo é uma das formas mais eficientes de romper com a iniquidade e a injustiça na cultura e nas relações humanas. “Para mudar o mundo é essencial mudar a forma (opressiva) de nascer”.

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“Bebê nasce com infecção após cesárea eletiva:
—> era uma infecção prévia
Bebê nasce com infecção após parto normal: —> infecção causada pelo parto

Bebê nasce com desconforto importante após cesárea eletiva:
—> pulmãozinho molhado
Bebê nasce com desconforto importante após parto normal:
—> forçaram o parto normal

Bebê aspira mecônio após cesárea eletiva:
—-> o bebê tem um problema
Bebê aspira mecônio em parto normal:
—-> esperaram demais pra operar.

Não estou falando de leigos não… estou falando de médicos obstetras e pediatras.” (Ana Cris Duarte)

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A dor da diferença

Muitos heterossexuais julgam os homossexuais como sendo promíscuos, frágeis, egoístas (sexo sem prole) e incapazes de relacionamentos afetivos duradouros. Já muitos gays acham os heterossexuais covardes (já fui tratado assim), com vidas sexuais monótonas, chatos e sem graça. Conformistas e preconceituosos.

Tudo errado…

São todos preconceitos tolos. Nada existe na homossexualidade inerentemente promíscuo ou egoísta, e nada existe da heterossexualidade que leve o sujeito a ter uma sexualidade monótona. Em verdade, o fato é que as escolhas dos outros, quando divergem das nossas, são desafiadoras. Todavia, ao invés de aceitarmos como válidas as diferentes perspectivas que a vida oferece, nós as atacamos com a ilusão de diminuir nossa angústia por termos escolhido esse caminho – e não o outro.

Funciona como o ateu que se irrita com a fé alheia ou o ex fumante que não suporta ver alguém demonstrando publicamente tamanho prazer com o cigarro. Também aqueles que raivosamente publicam fotos de gente na praia durante a pandemia enquanto se refugiam nos seus apartamentos consumindo Doritos e Netflix. O prazer do outros nos causa angústia e dor.

O poliamor, por exemplo, agride meus sentimentos de exclusividade, mas quem disse que precisa ser assim? Talvez a posse dos corpos para os deleites do prazer seja obsoleto mesmo, e o futuro verá a monogamia com a mesma estranheza que hoje vemos o culto à virgindade ou o cinto de castidade.

De minha parte, melhor garantir o muito que tenho em uma só. Se já é difícil achar uma que suporte minha neurastenia, que dirá com muitas. Aliás, não conseguiria nem dormir, imaginando o complô para me exterminar.

(a partir de uma conversa com Deia Moessa Coelho)

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De novo, Charlie

De novo fatos semelhantes ao episódio do Charlie Hebdo sacodem a França, um país que, após uma história de colonialismo espoliador e cruel, hoje recebe milhões de imigrantes do Magreb, numa curiosa reversão de fluxo humano.

Um professor mostra a caricatura do profeta Maomé em aula, o que causa revolta dos alunos e seus pais muçulmanos. A atitude dele foi temerária. Riscou fósforo em um paiol de pólvora étnica. A questão é que não se trata apenas de debater a liberdade de expressão (da qual sou amplamente favorável) mas sobre o uso dela como veículo de racismo e exclusão em um país cuja ação criminosa na África ainda não teve todas as cicatrizes curadas. Se o seu assassinato é condenável pela motivação religiosa, por sua estupidez e barbarismo, as publicações que se escondem por trás da liberdade de expressão para fomentar racismo também deveriam ser questionadas.

Todavia, qualquer que seja o questionamento, não é mais admissível que estas questões sejam solucionadas com violência desmedida e covarde.

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Futebol e masculinidade

Essa história do jogador e do abuso me afeta muito, não sei exatamente o porquê. Mas a sensação que eu tenho não é de raiva – não sou mulher para entender todas as dimensões dessa violência – mas de tristeza e decepção. É como quando ocorre um acidente entre dois carros com vítimas em ambos. Descobrir o culpado, apesar de ser essencial, não vai trazer de volta a vida de ninguém.

Então fica a tristeza pela dor imposta a uma menina e a destruição da vida do sujeito por atitudes absurdas e inconsequentes. Fico me perguntando: “com toda essa fama e dinheiro qual o sentido dessa barbárie, desse desrespeito e desse abuso?” Todos acabamos um pouco destruídos – inclusive a nossa esperança na humanidade – e não há nada que eu possa fazer a não ser aguardar que a justiça prevaleça.

Mas é tudo lamentável, triste e inaceitável, e a onda de ódio que sobrevém me deixa ainda mais deprimido.

Não gosto de chutar cachorro caído, mas concordo que o meio do futebol é violento e abusivo com as mulheres. Entre as razões para isso está que o futebol assume no imaginário social os valores atribuídos aos guerreiros de outrora. Nestes ambientes, nos quais uma criança entra aos 12 anos e só sai aos 35 – adolescência e juventude inteiras – existe um estímulo constante à hipersexualização, o desprezo por gays e por mulheres e a exaltação do herói mítico duro e inexorável.

O mesmo ocorre com policiais, no exército e nas Igrejas – com os padres. Um mundo masculino, cheirando a testosterona, onde ocorre sistematicamente a supressão de valores que são considerados femininos, como a cooperação, a solidariedade, a delicadeza, o perdão e a entrega. Nesses grupos impera a supremacia, a competição, a luta e a dureza como marcas de afirmação pessoal. Fugir deles é ver fechadas as portas de aceitação.

No futebol ocorre algo interessante. Apesar de ser um jogo de cooperação, onde todos jogam juntos e precisam dos companheiros, a progressão na carreira é solitária, numa luta do sujeito contra os demais, sendo violento e competitivo 24 horas por dia. O mesmo que acontece no exército, onde o estimulo ao companheirismo se alia a um individualismo brutal no enfrentamento da carreira. Um universo de Rambos onde a mulher não tem vez e muito menos importância.

Nestes lugares a brutalidade acaba virando a regra, na espera que algum dia seja modificado este padrão. Eu costumo dizer que até na medicina ocorre um mecanismo semelhante. Esta sempre foi uma área de homens, de energia, de força física e moral, de insensibilidade à dor e ao sofrimento. Não era admissível imaginar uma mulher – mãe e dedicada esposa – arrancando uma perna sem anestesia nos anos que antecederam a sua descoberta.

Todavia, no início do século passado a entrada das mulheres no mundo masculino da medicina não se deu sem um preço alto a pagar. Mulheres médicas eram – e ainda o são – cobradas por qualquer atitude que não seja medida pela regra da masculinidade. Precisam ser duras, fortes e insensíveis para receber o respeito de seus pares. É por isso que o ingresso das mulheres na seara da obstetrícia não surtiu a reforma que esperávamos. Numa estratégia de sobrevivência, as mulheres se associam mais aos homens e suas regras do que às mulheres e suas dores.

Há muito ainda a fazer para encontrar este equilíbrio. A entrada das mulheres no exército, futebol e medicina com o tempo vai impor uma nova perspectiva, e introduzir novos valores, determinando uma mudança significativa nestas funções sociais.

Oxalá seja breve…

PS: O que aconteceu ao jogador em questão é lamentável, mas sua adesão ao bolsonarismo é oportunista e planejada. Quis atrair a simpatia da face obscura do país, a mesma que venera a tosquice do presidente e suas falas “sinceras” e “diretas”, mas que apenas desvelam a pobreza de sua ética.

De qualquer modo, não rolou. Santos rescindiu o contrato e sua carreira acabou. Não creio que arranje clube em lugar algum. Robinho é o gênio das pedaladas, o craque que não foi mas poderia ter sido.

“Ludopédio finis est”, little Robson

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Soltem esses bichos

Quem me conhece sabe que não morro de amores por animais domésticos. E não “amar” os pets não significa que os desprezo, mas apenas que para mim os animais deveriam estar livres na natureza, e não submetidos aos caprichos e carências humanas.

Nessa e em outras eleições estou me surpreendendo (não devia) com a quantidade enorme de candidatos que se apresentam como defensores dos animais. Aqui mesmo na minha cidade um dos candidatos a prefeitura vai à TV com seu cachorro para falar que quer levar a defesa dos animais como uma bandeira para a governança municipal. Mas, esse é outro assunto. Se você chegou até aqui lhe convido a se aprofundar um pouco mais no buraco do coelho…

É evidente que não há nada de errado em querer que os cães e gatos que estão sob a custódia de humanos tenham um tratamento digno e… humano. Por certo que ninguém vai fazer a defesa de maus tratos, violência ou tortura com animais que moram com os humanos e lhes oferecem carinho e companhia.

Claro que vez por outra aparecem casos de acidentes, quando um cão de guarda morde crianças ou adultos, e em algumas situações mais trágicas chegam a levar à morte. Imediatamente os amantes de animais correm em defesa dos bichos dizendo que a “essência” dos pitbull, dos fila ou de qualquer um destes cães ferozes é boa, mas as situações de confinamento e a educação violenta que receberam é que os torna “assassinos”.

Isto é: “o meio os deforma”.

Por esta razão que eu questiono: o Brasil é a terceira maior massa carcerária do mundo. “Considerando presos em estabelecimentos penais e presos detidos em outras carceragens, o Infopen 2019 aponta que o Brasil possui uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes. Caso sejam analisados presos custodiados apenas em unidades prisionais, sem contar delegacias, o país detém 758.676 presos.” (Dados sobre População carcerária 2019). Gente, encarcerada, maltratada, em condições sub-humanas, torturados, assassinados sob a guarda do Estado, adoentados, subnutridos e vítimas de extorsão.

Por que somos muito mais empáticos com o sofrimento dos animais (mesmo os perigosos como leões, hipopótamos, cobras e aranhas) do que com os homens e mulheres que estão aprisionados? Por que aceitamos que a essência dos cães de guarda é dócil, mas o cuidador é que o brutaliza, mas ao mesmo tempo não acreditamos que todo ser humano é capaz de viver em sociedade e o sistema social em que está inserido é que o torna violento?

Por que devotamos tanta humanidade aos não humanos e aceitamos a animalidade contra nossos iguais? Por que não há defensores abertos na defesa do abolicionismo penal e da proteção dos “animais humanos enjaulados” pelo nosso sistema penal nestas (e em outras) eleições, mas em toda esquina recebemos um panfleto em defesa dos “pets”?

Ninguém diria “animal bom é animal morto”, não? Seria por demais condenável, por ser…. desumano.

Que tipo de sociedade é essa que desumaniza seus irmãos e humaniza os animais?

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Tagarela

Bla, bla, bla, bla…

Uma psicóloga me ligou hoje para conversar sobre um projeto interdisciplinar de levar suporte a meninas gestantes que vivem em condições precárias em um bairro muito pobre de Porto Alegre. Depois de escutá-la sobre esse projeto – pelo qual sou apaixonado há anos – comecei a explicar a ela minha perspectiva e as dificuldades que percebo para sua execução. Emendei a conversa falando sobre “centering pregnancy”, atuação profissional horizontal, grupos circulares, parto e sexualidade, doulas, tecnocracia, cesarianas, a necessidade da dor para par(t)ir, etc…

Subitamente eu me dei conta de algo gravíssimo. Na minha frente vi meu pai explicando sua dificuldade de conter ideias e pensamentos. Dizia ele: “Sou reservado e tenho problemas para conversar com desconhecidos, mas quando começo a falar tenho muita dificuldade de parar e me conter. Amarro um tema no outro, faço análises profundas, me empolgo, costuro os assuntos. Fico prisioneiro da empolgação”.

Percebi que ali estava mais uma maldição que herdei do meu pai. Não consigo parar, “engato uma quarta” e fico sem freios. As pessoas se assustam, ficam desconfiadas e temerosas. Não as culpo; eu faria o mesmo.

Sei que ponho muita coisa a perder pelo meu jeito. Fico envergonhado de ser assim. Como todo viciado, prometo que não vou fazer mais isso, que vou permanecer em silêncio e não vou atropelar as etapas naturais dos encontros para não gerar desconforto. Mas…. passa um tempo e lá estou eu de novo avançando o sinal e falando em demasia.

A gente tenta por muito tempo se afastar dos determinismos familiares, mas conforme o tempo passa percebe que percorre a trilha dos seus significantes, mesmo que de forma inconsciente. As vezes me dou conta que minha fobia social fica cada vez mais semelhante à dele, minha tristeza debochada também, assim como a matraca imparável.

Para todos que já foram vítimas das minhas conversas peço perdão. A pandemia e o isolamento pioraram essa angústia de falar, mas sei o quanto isso irrita quem se aproxima. Eu prometo com o tempo melhorar.

Juro, foi a última vez…

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