Arquivo do mês: abril 2023

Para facilitar o cancelamento

O sexismo é irmão dileto do racismo e de todas as formas de preconceito. Acreditar que os ataques a um determinado gênero e condição seja “justo” em função de questões dramáticas que vivenciamos no cotidiano acaba por legitimar os ataques às raças, às orientações sexuais e às identidades, ao invés de produzir um arrefecimento dessas ações. Aceitar que homens sejam tratados como “malévolos e inferiores”, “estúpidos e grosseiros” baseando-se na experiência pessoal com eles é o mesmo que tratar negros, gays, mulheres, imigrantes e qualquer outra minoria de forma violenta ou diminutiva baseando-se em generalizações ou em sua experiência pessoal negativa.

Eu não tolero preconceitos que colocam gênero, classe, raça, origem, orientação sexual etc. em uma escala de valores, dos mais nobres aos mais perversos. Não acredito que nossos genes produzem diferenças no que diz respeito às condições morais e intelectuais. Diante disso deixo bem claro que qualquer pessoa que escreve a frase sexista “Nem todo homem, mas sempre um homem”, está convidado a me cancelar peremptoriamente; não precisa sequer se despedir. Lutei contra todos aqueles que tratavam pequenos deslizes naturais de mulheres em ambiente de trabalho dizendo coisas parecidas com isso (“tinha que ser mulher”, por exemplo), portanto não vejo porque deveria aceitar que este tipo de manifestação abjeta, asquerosa, nojenta e que atenta contra metade da população do mundo possa ser válida.

A criação de um mundo de equidade não vai passar por derrubar o poder dos homens para a criação de uma opressão por outro gênero, mas através da abolição de qualquer opressão baseada no sexo, na cor da pele, na classe social, na origem e na identidade sexual dos sujeitos que coabitam conosco neste planeta. Atacar os homens e o masculino, creditando a eles todo o mal do mundo (e fazendo vista grossa para as perversões cometidas por mulheres) é um dos mais importantes fatores para a manutenção dos preconceitos, pois que ataca a essência imutável de todos nós – nossa estrutura de sujeito – algo que não pode ser modificado e elaborado.

Quem ataca os homens e o masculino, tratando-os como inferiores e tolos, não honra seu pai, seus irmãos, seu marido, seus filhos homens e tudo o que o masculino criou na humanidade. Quem faz o mesmo com as mulheres, desonra todas aquelas que lutaram e se sacrificaram para que estivéssemos aqui.

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Arrogância

Eu conheci médicos profundamente pedantes na minha trajetória de vida. Entre eles, eu mesmo. Alguns deles eram contidos, não tinham falas tão arrogantes; entretanto, mesmo estes conversavam com pacientes, enfermeiras, funcionários do hospital e familiares como se fossem desbravadores da selva africana do século XIX, tentando dialogar com aborígenes de terras invadidas, enquanto entendiam como superior sua cultura europeia e branca.

Em verdade, mesmo entre aqueles contidos, existem sinais característicos no tom de voz, na entonação, na escolha das palavras e no caráter paternalista das orientações oferecidas, as quais denunciam a percepção pervertida de superioridade dos médicos em relação ao resto do mundo, herança de milênios de medicina exercida sob o signo da magia, da dissimulação e da encenação.

Hoje eu enxergo os médicos ocidentais como colonizadores que tomam posse do corpo dos pacientes trazendo nas mãos sua “Bíblia” de significados, diagnósticos, prognósticos e curas, a despeito da verdade subjetiva que cada um dos sujeitos à quem tratam carregam eles mesmos como roteiro. Esta verdade, inobstante o lugar e o contexto, sempre vai se expressar através de seus sintomas e dramas, que são essencialmente fissuras na crosta do sujeito que nos oportunizam enxergar a profundidade que se agita sob a fina camada que os recobre.

Ainda carrego como verdade a ideia de que “aquilo que o paciente traz como sintomas é, em verdade, seu maior tesouro”. Deixar de escutar suas dores e negar-se a ver o brilho de suas queixas, impondo a eles um catecismo rígido de doenças e rótulos, é limitar a infinita capacidade humana de expressar, inclusive na tessitura mais firme do seu corpo, suas inexoráveis frustrações. A arrogância dos médicos, e a distância artificial que se cria entre terapeuta e paciente, será sempre um anteparo à livre circulação da energia curativa.

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Crenças e Materialismo

Richard Dawkins se notabilizou no ataque às religiões contemporâneas, em especial o neopentecostalismo capitalista predatório surgido nos Estados Unidos e exportado para o Brasil e o mundo. Entretanto, seu ataque às denominações religiosas acabou extrapolando, sendo usado para desacreditar o pensamento religioso e às próprias tradições, acreditando que as normativas dos livros “sagrados” induzem ao anticientificismo e mesmo às guerras, num suco de idealismo que agride frontalmente a ciência social e o materialismo dialético. Importante notar que nos mesmos textos que estimulam o ser humano ao conflito e à intolerância nas páginas do Corão ou da Bíblia existem passagens que estimulam a paz e a tolerância. Estes livros foram escritos de forma a ser possível colocar qualquer interesse humano em suas linhas e retirar de volta a concordância. Desta forma, é fácil entender que não são as religiões que induzem aos conflitos, mas a fome, os embates geopolíticos, a ganância ou o expansionismo, necessidades humanas que usam as religiões como “cola” para agrupar prosélitos em nome das distintas identidades.

Acreditar na capacidade de que ideias religiosas, por mais violentas que sejam (e todas são), possam fazer a humanidade se atirar às guerras é puro idealismo. Vou mais longe: nunca houve, na história da humanidade, uma única guerra iniciada ou determinada exclusivamente por crenças religiosas. Basta ver os milênios de pacífica convivência entre judeus e muçulmanos no oriente médio que só acabaram quando interesses nacionalistas sectários atingiram a região através da invasão sionista. As guerras, todas elas, são motivadas por fatores materiais (recursos, água, comida, controle da terra, mulheres, etc). Não há como um conjunto de ideias mobilizar agressões desse tipo. O que existe é o uso da religião (ou cor da pele, crenças, origem, entre outras) para justificar e agregar combatentes para uma guerra cujos interesses são materiais. Todavia, para quem olha com olhos desavisados, esta adesão nos ilude de que elas são a motivação primordial.

Tomemos as Cruzadas como exemplo que se caracterizaram por grandes massas de europeus cruzando a Europa ajudando a disseminar a peste negra para atacar Jerusalém, cometendo as mais inimagináveis atrocidades na terra de Cristo, com o intuito de libertá-la dos mouros – e tomando uma surra do curdo Salatino, entre outros. Porém, quando vamos analisar a história de forma pormenorizada, não foram em nome de Cristo que tantos cristãos se aventuraram ao oriente, mas para dar conta de interesses geopolíticos claros, onde a religião foi apenas usada para justificar uma guerra estúpida motivada por controle territorial. Para os comerciantes, as Cruzadas eram importantes para encurtar as distâncias entre o Oriente do Ocidente e, assim, aumentar as atividades de comércio de especiarias, principalmente para as cidades portuárias de Gênova e Veneza, no que hoje conhecemos como Itália. Após muitos séculos, o Mar Mediterrâneo passou a ser utilizado como importante veículo de intercâmbio de pessoas e de mercadorias. Ao longo das nove Cruzadas, os objetivos foram se tornando cada vez mais claros, deixando de usar a máscara religiosa e explicitando suas reais motivações comerciais. As conquistas cristãs no Oriente provocaram, além disso, disputas entre os cruzados pelos seus domínios.

Podemos analisar também algo bem mais recente, como a guerra entre protestantes e católicos na Irlanda, que foi assim chamada para esconder que se tratava de um conflito cujo objetivo era libertar a Irlanda (católica) do jugo dos ingleses (protestantes). Sempre foi uma guerra de independência tratada como uma luta religiosa para esconder o evidente colonialismo explorador britânico.

Religião não é um lugar de onde tiramos determinações divinas, mas onde colocamos interesses absolutamente humanos e materiais. Quem entende isso começa a olhar as religiões de forma distinta e mais elevada. As religiões são buscas humanas para o enfrentamento do desconhecido, algo tão natural quando olhar para o firmamento e elaborar teses sobre as estrelas. As crenças humanas – em especial a crença em Deus – são emoções e, portanto, não são passíveis de qualquer análise racional. “Acredito porque sinto; já eu, não creio porque não sinto”. Basicamente as religiões são a linguagem que usamos para expressar estas crenças ou, se quiserem, nossa fé. “A religião é o poço, a fé a água na profundidade”, como dizia Reza Aslan. Religiões são instrumentos para aplacarmos nossa sede. As ideias religiosas, por mais potentes que sejam, são incapazes para mobilizar guerras, mortes e conflitos; a materialidade de nossas necessidades e desejos humanos é quem está à frente dessas iniciativas.

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Ilusões

Já é hora de parar com a mania que a esquerda liberal tem de fazer elogios rasgados e imerecidos ao STF. O supremo tribunal é uma instituição pusilânime, que referendou todos os golpes no Brasil, e Lula tinha razão quando denunciou sua covardia. Em 1964 estiveram ao lado dos interesses americanos e dos militares golpistas e lhes ofereceram o arcabouço jurídico para as suas ações. Em 2016 chancelaram o golpe contra a presidenta Dilma sem que houvesse qualquer crime de responsabilidade. Sim, e o agora exaltado Lewandowski estava à frente desta aberração.

Não tenho qualquer ilusão com esta instituição burguesa, onde um conhecido antipetista autoritário, cortador de pés de maconha, e preferido do golpista Temer, virou “herói” nacional. “Cria cuervos” é só o que digo sobre Alexandre de Moraes. Não tenho dúvida alguma de que, mesmo depois do desastre Temer/Bozo ocorrido nos últimos 6 anos, os ministros do STF estarão ao lado do sistema financeiro e das instituições burguesas – como sempre fizeram – caso estejamos diante de uma nova crise institucional.

Não há como esquecer que foram eles que promoveram o golpe de 64, produziram a farsa do Mensalão, bloquearam Lula de assumir um ministério no governo Dilma, permitiram o golpe contra a presidente eleita, assim como o impedimento da candidatura de Lula e sua posterior prisão. Só liberaram Lula quando o fracasso retumbante do governo Bolsonaro era evidente e estava prejudicando a imagem externa do Brasil. Se dependesse de figuras como Xandão, Toffoli, Fuchs, Rosa Weber, Carmem Lúcia e Fachin, Lula permaneceria preso, ainda que comprovadamente inocente e mesmo depois da VazaJato.

E sim… precisamos entender que Bolsonaro é o resultado do processo acelerado de falência do capitalismo, e não sua origem. Bolsonaro não tem capacidade para ser o criador de nada. Se não fosse Bolsonaro seria outro a ocupar o posto de liderança do fascismo brasileiro; Mourão, Braga Neto, Moro, Dalanhol, General Heleno entre outros poderiam estar em seu lugar. Estes personagens são provavelmente muito mais perigosos que Bolsonaro, exatamente por não serem tão incompetentes e ignorantes quanto este. De nada adianta prender o ex presidente por seus múltiplos crimes sem enfrentar o bolsonarismo, o nazifascismo tupiniquim e a extrema direita imperialista, que floresceram no Brasil como reflexo das crises do Imperialismo.

A esquerda precisa entender que não podemos esperar que uma instituição criada para proteger a burguesia e seus interesses – o STF – seja capaz de liderar mudanças marcantes na estrutura perversa do capitalismo brasileiro. Abandonar nossas ilusões infantis sobre tais instituições arcaicas é um dever de quem deseja a transformação radical no mundo.

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O Surto

O Brasil se enche de medo diante do surgimento de mais um modismo americano importado pelas ações irresponsáveis do governo Bolsonaro: as chacinas em escolas. Recentemente houve uma na cidade de Blumenau – uma das regiões onde proliferam grupos nazistas – em que um sujeito matou várias crianças com golpes de machadinha. Imediatamente houve uma divisão entre aqueles que consideram a ação “maldade”, enquanto outros tratavam o fato como “surto”. Um surto psicótico pode ser entendido como um processo abrupto de desorganização psíquica e emocional, onde se observa principalmente a perda de noção da realidade, conjugado com um comportamento descompensado e psicótico (fora da realidade objetiva). Durante a emergência do surto psicótico a pessoa pode apresentar sinais como: confusão mental, delírios, alucinações, catatonia (paralisada, sem reação), discurso desorganizado ou incoerente, mudança de humor, perda da noção de tempo e outros.

É óbvio que, pela infinita variabilidade das respostas emocionais do ser humano, os surtos não são todos iguais, e não é justo nem adequado julgar o surto alheio. Se alguém dissesse “quando eu surto vou à luta, não fico chorando” todos concordaríamos que se trata de insensibilidade e falta de empatia com a maneira como reagimos aos nossos dramas. Portanto, dizer que existem “surtos aceitáveis” enquanto outros não o são é desprezar o próprio conceito de surto, qual seja, a emergência de conteúdos psíquicos incontroláveis pelos nossos processos internos de proteção e controle.

Eu não sei o que moveu o rapaz que cometeu a barbárie de Blumenau mas acredito que este tipo de ação dificilmente poderia ser explicada pela neurose. Desta forma, acredito que é lícito chamar esta ação de surto, até porque ela não cabe na nossa compreensão; ela atinge de forma brutal a concepção mais básica de respeito à vida. Em verdade, estes atos brutais que nos agridem de forma coletiva, são produzidos por mentes deformadas e enfermas, sem o que não haveria possibilidade de enfrentar os freios mentais que nos constituem e impedem a “passagem ao ato“. Entretanto, para que este tipo de manifestação possa aflorar na sociedade é também necessário que exista um ambiente cultural propício, produzido por um campo simbólico onde estas palavras circulem sem a devida interdição.

Aqui é que entra o Bolsonarismo com seu culto à morte e à destruição. Sem a “arminha”, as palavras de ordem, os slogans fascistas, o punitivismo, a divisão moral da sociedade – vagabundos x cidadãos de bem – as motociatas mussolinistas, a pulsão de morte pulsante e vigorosa, as bravatas e a corrupção pequena, gatuna e sorrateira, não haveria o caldo adequado para o aparecimento destas aberrações. O mesmo elemento se vê no acréscimo da violência doméstica machista ou nos crimes políticos, onde os agressores são quase todos aliados da extrema direita fascista. Agente e terreno propício produzem os resultados que testemunhamos, na construção dialética complexa que nos caracteriza.

Portanto, se é verdadeiro que a alma deteriorada do sujeito é a semente que faz germinar a brutalidade de suas ações, também é certo que o terreno fértil de uma sociedade doente pelo fascismo é fundamental para que a erva daninha dos crimes absurdos e inaceitáveis possa crescer e se espalhar. De nada adianta eliminar estas sementes sem cuidar do terreno; além disso, arrancar o inço não resolve o problema, já que a sociedade desequilibrada e perversa os produz de forma incessante. A perspectiva punitivista serve apenas para fomentar a sensação de vingança, mas em nada modifica a estrutura social viciosa que estimula e promove o crime.

Resumindo, para deixar bem clara a minha posição: a frase “não chamem de surto o que é pura maldade” está no mesmo nível de “não chame de doente quem é bêbado, nele existe apenas falta de caráter”. O preconceito com a doença mental continua vivo e forte, manifesto no discurso cotidiano, tanto o popular quanto aquele mais rebuscado. Todavia, também é verdade que a expressão dessas condições na cultura ocorre na vigência de contextos sociais que os incentivam ou reprimem. Se é adequado tratar o sujeito enfermo é igualmente justo e necessário cuidar da sociedade doente.

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Futebol

“A gente se odeia, mas se respeita”…

Quando eu era adolescente as brigas eram raras entre torcedores de times rivais. As torcidas saíam juntas do estádio. As arquibancadas eram divididas ao meio, metade para cada torcida. A distância entre os torcedores era não mais que dois metros, e para separar havia apenas um corredor de policiais de cada lado; na hora do gol era quase possível encostar no rival. Não havia gangues travestidas de torcidas organizadas. A violência não era a tônica.

Havia “flauta”, brincadeiras, deboche, festa, carreatas na rua e muita gozação. A violência foi inserida a partir dos anos 80, e no mundo todo, espelhando o fenômeno “hooligan” da Inglaterra. Aliás, fenômeno esse deflagrado durante os tempos de neoliberalismo feroz de Margareth Thatcher. Todavia, para entender esse fenômeno é necessário se dar conta de que não houve uma modificação no futebol e nos clubes que justifique esta transformação dramática no comportamento das torcidas; a mudança foi social, com repercussões em todos os setores da sociedade. O nobre esporte bretão apenas acompanhou as modificações sociais que se estabeleceram.

O futebol, como legítima manifestação da cultura, não poderia ficar isolado das transformações drásticas na economia. A falência do capitalismo, a concentração obscena de renda, o empobrecimento da classe média, fizeram com que o futebol se tornasse um repositório natural das nossas frustrações. Passamos a usar esse esporte como o espantalho das nossos fracassos e fragilidades. Jogamos no futebol a nossa raiva, numa catarse coletiva; o adversário é o chefe, o patrão, o vizinho, o colega que nos oprime, as mulheres que não nos quiseram, os homens que nos desprezaram, os políticos, os ricos, os imigrantes e tudo quanto nos agride.

Nosso grito, em verdade, é contra a opressão que produz ricos e miseráveis. Entretanto, é inconsciente ainda. Não estamos cientes do nosso inimigo, e o confundimos com as cores do nosso adversário. O dia em que acordarmos para esta realidade o futebol não vai precisar ser usado para canalizar tanta frustração. O que nos faz jogar sobre este esporte tantas emoções é a neurose coletiva amplificada e abrangente. Como estrutura básica do ser humano ela não pode ser curada, mas pode ser civilizada se (ou quando) seus condicionantes – o capitalismo – forem superados, para que a paixão pelo esporte não se confunda com a violência explícita.

Não existe “cura” para a violência das torcidas que não passe pela mudança profunda da estrutura social. Precisamos curar a sociedade ajustando suas fundações, baseadas no capitalismo e no imperialismo, que estão ruindo de forma inquestionável. Enquanto houver opressão e violência imbricada na cultura ela vai se expressar no futebol e naqueles que amam esse esporte. Não há como curar a neurose projetada no futebol sem tratar a sociedade adoentada, que usa o futebol como válvula de escape para os nossos fracassos.

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Bots

Em verdade os chatbots são capazes de entender a linearidade do discurso, mas incapazes de compreender o universo de sentidos que se inscrevem nas fissuras que se formam entre as palavras, nos silêncios, nas pausas, no ritmo e na mímica dissimulada que revela o conteúdo. Eles, os robôs, farão sucesso entre os positivistas, os que não enxergam os disfarces de cada frase, a máscara das afirmações contraditórias, a ironia, o chiste, o gracejo.

“Por este motivo, os novos chatbots se darão muito bem com ideólogos de todas as estirpes, desde a multidão “woke” contemporânea dos nacionalistas “MAGA”, que preferem continuar dormindo.” (Slavoj Zizek)

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Mentiras

Já eu penso que a mentira é a essência da civilização. A vida sem mentiras seria insuportável, pois a mentira é o coração da linguagem. Sem a mentira seríamos bestas condenadas a viver eternamente na barbárie. A mentira precisa de todas as homenagens, pois que só ela garante nossa convivência. Convido a assistir “A Invenção da Mentira”, de Rick Gervais.

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Umbigos

Posso falar pelos homens nesse aspecto: tudo, literalmente tudo que fazemos no cotidiano, de escovar os dentes a construir um centro de pesquisas aeroespaciais, de jogar futebol a subir no Everest, nós o fazemos para as mulheres, e por causa delas. Não há nada na existência dos homens que fuja desse determinismo. Os franceses imortalizaram a frase “Cherchez la femme!!” exatamente para deixar claro que todas as manifestações do gênio humano, das brutais e criminosas às angelical e sublimes, tem essa motivação primordial.

Somos seres criados para a reprodução, essa é a lei suprema da nossa existência. Nessa engenharia da vida as mulheres serão o prêmio elementar, a chave para imortalidade, a recompensa para todos os nossos esforços. Coloque dez homens juntos em uma sala e aguarde alguns poucos minutos; inevitavelmente o assunto deles vai convergir, como uma espiral concêntrica, para as mulheres, suas manias, graças, cheiros e sabores. Coloque dez mulheres em um grupo e passados poucos instantes o assunto delas será…. as próprias mulheres.

O poder sobre as mulheres sempre foi essencial na arquitetura do modelo patriarcal. Esse domínio teve que ser exercido muitas vezes à força e só agora começa a ser desconstruído, pois sem dúvida o patriarcado imprimiu historicamente uma configuração diversa às partes distintas desse dueto. Todavia, para um observador, as semelhanças são muito mais arrebatadoras que as diferenças. Na minha perspectiva a grande diferença é da estrutura objetual da sexualidade masculina, em contrapartida com a sexualidade feminina, caracteristicamente narcísica. Isso oferece ao homem uma curiosa vantagem: ele sabe, desde sempre, que é incompleto e precisa de algo fora de si, um objeto de desejo que perseguirá por toda sua vida. Já a mulher muitas vezes fantasia com a autossuficiência. O que, aliás, não faz sentido: somos intrinsecamente dependentes da construção que o outro faz de nós mesmos.

As mulheres são o umbigo do mundo. Não melhores, nem piores, mas o centro.

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Pesadelo

Meu pesadelo renitente:

Estou em um programa de auditório, tipo Sérgio Groisman ou outro qualquer deste formato, e durante um debate o apresentador volta sua atenção para mim, que estou sentado silenciosamente na plateia. Com o dedo apontado na minha direção ele pergunta:

– E você, o que pensa sobre este tema? Concorda ou discorda?

Imediatamente aparece um microfone a meio palmo da minha cara. Durante uma fração de segundo eu penso nas alternativas. Depois de escutar as palavras dos debatedores percebi que existe uma versão que acompanha o senso comum, aquela que a maioria das pessoas, ou a média da população, valoriza e aceita. Existe também a versão do programa, que as perguntas do apresentador demonstraram ser a perspectiva da emissora ou do poder que a controla. Existe, por fim, o que eu penso, que – via de regra – é uma posição contra-hegemônica, politicamente incorreta, impopular e que desagradaria praticamente a todos, do público aos entrevistados.

Por alguns instantes olho para o infinito cósmico pensando se devo escolher o aplauso insípido e amorfo da concordância ou a fogueira flamejante da reprovação. Diante de mim um dilema claro: a sinceridade e a fidelidade aos meus princípios vale o preço de ser linchado publicamente por um tema que sequer tem tamanha relevância? Por outro lado, de que me serviriam essa fugaz popularidade, esses aplausos anódinos e essa aprovação popularesca, se não for pela expressão de algo que penso, sinto e vivo?

O apresentador insiste.

– Então? e repete a pergunta como seu o meu problema fosse auditivo e não o drama de uma escolha complexa entre duas perspectivas dolorosas.

Penso mais… se eu falar o que todos querem ouvir, como poderei me encarar sabendo que minha escolha apenas escondeu minha fraqueza, a covardia de se erguer, o medo de subir na classe e dizer a todos de peito aberto o que carrego como valor. Porém, se disser aquilo que penso – a minha verdade pessoal – expressão dos valores que cultuo, como suportar as críticas, o desamor, o desprezo, as costas se virando e a fuga dos amigos?

– Bem, no meu modesto ver….

Acordo. Existem sistemas psíquicos de segurança que atuam até na fantasia dos sonhos, que previnem os desastres, nos protegem dos dramas insolúveis e resguardam nossa sanidade emocional. Entretanto, toda vez que vejo alguém enfrentando esse dilema ao falar em público, eu bem sei que as palmas que se seguem foram, muitas vezes, às custas do silêncio das verdades guardadas, palavras escondidas, cuja manifestação foi trancada no peito pelo medo das dores que poderiam provocar.

Qualquer um diz o que todos desejam ouvir; só os bravos e fortes dizem o que querem falar.

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