Arquivo do mês: setembro 2024

Maria

Não há dúvida que a rejeição a Maria do Rosário é porque ela defende direitos humanos. Todos os defeitos que possam porventura ser mencionados sobre sua atuação parlamentar sucumbem diante deste fato: as pessoas não aceitam quem defenda simples direitos básicos das pessoas comuns, como não ser torturado, não ser perseguido por suas ideias, ter tratamento digno na prisão, não ser preso sem uma clara justificativa, direito à ampla defesa, etc. Todavia, para o cidadão médio, contaminado pela propaganda odiosa da direita fascista, isso nada mais é do que “defender bandido”. Mas, e porque mesmo os bandidos não poderiam ser defendidos?

Ao Estado não cabe combater criminosos, mas o crime. A justiça não deve combater o malfeitor, mas suas ações ilegais, pois a ninguém é lícito julgar as razões pelas quais alguém comete delitos; ao judiciário cabe analisar os fatos, não os sujeitos. Esse é um fundamento basilar do direito. Não se pode usar da justiça para atacar indivíduos, a não ser que tenham cometidos atos ilegais e criminosos.

Por mais que os punitivistas tenham dificuldade em aceitar, todo bandido compartilha conosco algo fundamental: a condição humana. Em verdade, quando analisados de perto, os “bandidos” são incomodamente semelhantes a nós, com a diferença que tiveram obstáculos em suas vidas que nós nunca tivemos. Julgar a criminalidade sob um prisma moralista é a marca registrada do fascismo, mas somos parecidos demais para que se possa usar classificações como “bandidos” e “cidadãos de bem”. A experiência recente mostrou que alguns dos crimes mais horrendos realizados no Brasil no período Temer/Bolsonaro vieram daqueles a quem se outorgava o título de “cidadãos de bem”.

Assim, aqueles que defendem os direitos humanos inerentes à esta condição, não estão defendendo ou estimulando o crime, mas resguardando as camadas pobres e desassistidas da sociedade da vingança brutal daqueles que, para defender o modelo concentrador de renda e a propriedade privada, agem de forma vingativa e cruel contra todos que que rebelam e entram na senda do crime. Maria do Rosário escolheu a tarefa mais difícil e mais ingrata. Defender estes direitos essenciais em um país no qual um antigo presidente se jactava em dizer “minha especialidade é matar”, é tarefa para poucos. Precisa coragem e integridade para se manter firme em seus princípios quando o entorno lhe empurra na direção do fascismo mais abjeto e desumano.

Tenho muitas discordâncias com Maria do Rosário em outros pontos. Sendo comunista, é fácil entender o quanto a democracia liberal e o identitarismo estão corroendo as esquerdas no mundo inteiro. Não acredito que essa esquerda possa oferecer um grande diferencial em longo prazo ao abandonar a luta anticapitalista e apostar na divisão planejada da classe operária em identidades digladiantes. Por isso, no primeiro turno, voto em Cesar Augusto Ferreira, candidato do PCO à prefeitura de Porto Alegre. Entretanto, bem sei que as pessoas rejeitam em Maria do Rosário exatamente aquilo que ela tem de mais virtuoso: a luta pela dignidade humana, de qualquer cidadão, inobstante os erros que tenha cometido. No segundo turno, voto com ela.

Por isso, espero que ela vença os candidatos do atraso e seja uma ótima prefeita.

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Cristãos

Vou repetir o que já venho dizendo há muitos anos: não tenho mais paciência com o cristianismo. Chega!!! Não aguento mais esses pilantras de fala mansa que roubam dízimo de pobre. Não aguento o conformismo cristão que permite uma sociedade injusta sem se revoltar. Não aguento evangélicos defendendo a podridão de Israel e justificando um genocídio acreditando que Deus “deu a terra” para aqueles – por ele mesmo – escolhidos. Não aguento gente das igrejas falando em “povo de Deus”. Não suporto mais milícias bolsonaristas sendo formadas em igrejas evangélicas. É inaceitável a quantidade gigantesca de pastores abusadores sendo encobertos pela imprensa – afinal, não se deve atacar os “ungidos”.

O Brasil se tornou um evangelistão porque, em nome do “respeito à diversidade de crenças”, passamos a passar pano para a barbárie dos religiosos. Até o espiritismo, que conheço muito bem, me incomoda muito hoje em dia, em especial quando a franja mais reacionária dos espíritas fala de “Jesus governador da Terra”. Ora, por que o governador do planeta deveria ser uma personalidade exaltada pelo ocidente, apesar de ser do oriente médio? Esta ideia disseminada por alguns espíritas nada mais é do que desprezo pelo mundo oriental e islâmico, trazendo o centro do mundo para a Europa e sua religião branca. O espiritismo, assim como todas as religiões cristãs, está tomado por bolsonaristas, reacionários, fascistas e hipócritas.

Sei que esses defeitos morais também existem entre os ateus, mas não vejo dirigentes do ateísmo enriquecendo com a exploração da gente pobre do Brasil. Os agnósticos e os descrentes ficam na sua, curtindo seu positivismo existencialista, normalmente sem incomodar ninguém e sem tentar regular a bunda alheia. Enquanto isso, esses Everaldos, Edires, Malafaias e toda essa corja nojenta ligada à Israel e ao neopentecostalismo se comportam como a linha de frente do atraso do Brasil. São a locomotiva do preconceito, gente asquerosa e desonesta, arrogante e hipócrita.

Portanto, é exatamente isso mesmo que eu quero dizer: as religiões cristãs institucionalizadas em suas infinitas seitas e credos precisam sofrer o golpe de um novo iluminismo, uma nova revolução pela razão, para que possamos sair do buraco obscurantista onde nos encontramos. E todos aqueles que acreditam que a religião, enquanto questionamento do sentido da vida e do universo, ainda tem razão de existir no mundo da infotecnocracia atual, deveriam lutar contra essa carolice moralista e reacionária que se tornou o cristianismo.

E tenho dito. Chega de amor!!!

Aliás, creio que Jesus estaria comigo nessa luta. Afinal, ele também expulsou os vendilhões do templo, não?

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Experiência

“Sem que você tenha trabalhado nesta área durante 30 anos, em três turnos, não terá direito de me criticar”

Não é verdade. Você pode opinar sobre o trabalho de alguém mesmo sem ter trabalhado dessa forma e com essa intensidade. Esse tipo de postura é prejudicial para o progresso e serve apenas para calar a boca dos críticos e permitir que um mau profissional continue fazendo um trabalho ruim apenas porque é velho (ou experiente) e trabalhou demais. Quando Galileu Galilei expôs sua teoria heliocêntrica contrapôs inúmeros pensadores da época com muito mais experiência que ele. Deveria se curvar à autoridade destes? Ou a própria ciência é produzida e criada através da ousadia de alguns pensadores munidos de sua criatividade?

Não é justo se blindar das críticas selecionando quem pode lhe questionar. A todos é garantido o exercício necessário da crítica, mas é verdade também que estas serão levadas em consideração – com maior ou menor crédito – a partir do lugar de onde são emitidas. Por certo que um sujeito com ampla experiência terá mais condições de questionar, mas isso não impede que esteja por vezes (muito) errado. A ninguém parece justo ser impedido de criticar Bolsonaro com a desculpa “seja parlamentar da direita por 30 anos e só depois venha me criticar”. Não, isso seria indecente. 

Por fim, experiência não é tudo, apesar de ser importantíssimo. É perfeitamente plausível que alguém tenha formas melhores de realizar um trabalho ainda que não tenha dispensado o mesmo tempo que outro sujeito mais experiente. Se isso fosse verdade, e pudéssemos silenciar a voz daqueles que cuja opinião não nos agrada, quase ninguém teria condições de criticar a qualidade do trabalho alheio, e seríamos prisioneiros de uma gerontocracia que só atrapalha a renovação das ideias. Assim, não estou afirmando que a experiência é inútil; apenas afirmo que ela não pode ser o escudo perfeito para a incompetência e a blindagem definitiva para as críticas.

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Torcidas

Quando eu era criança e adolescente nos anos 70 aqui em Porto Alegre o Inter reinava soberano no RS. Era um time muito bom, a geração Falcão, Batista, Figueroa, Lula, Valdomiro, etc. Não só isso; tinham construído um estádio moderno depois de 15 anos vendo o Estádio Olimpico empilhar campeonatos com os times gremistas de Alcindo, Juarez, Lumumba, Airton Pavilhão, Joãozinho, Babá etc. Pois no mesmo ano que o estádio foi inaugurado inicia-se uma “senda de vitórias” com um time colorado que fez história. Quando da inauguração do estádio foi colocado na marquise a famosa frase “A maior torcida do Rio Grande do Sul”. Na época ninguém reclamou oficialmente, porque o sucesso da época – e o estádio cheio – nos faziam pensar assim.

Todavia, este tipo de impressão – sem avaliação metodológica – era o que regulava os conceitos na era pré-científica. Quando finalmente surgiram as primeiras pesquisas, cientificamente controladas, sobre o tamanho das torcidas, os resultados mostraram (além da grandeza de Flamengo e Corinthians no cenário nacional) que a torcida do Grêmio era bem maior do que a do Inter. O resultado da investigação foi um choque na imprensa da província. Foi surpreendente até aqui entre os torcedores da aldeia, e os colorados, em especial, ficaram estupefatos. Eles realmente acreditavam ser a maior torcida, porque nos anos 70 foi uma festa com Beira Rio, octa, tricampeonato CBD, etc. Parecia mesmo uma torcida grande e, mais importante que isso, maior que a do rival.

Eu ainda lembro do dia que a pesquisa bombástica do Ibope saiu e lembro ainda mais da manifestação do Cacalo no Sala de Redação. O Kenny Braga respondeu dizendo que era mentira, e o que valia mesmo era quem frequentava o estádio. Colocou a cabeça na terra e não quis encarar a realidade. Aliás, os colorados até hoje usam essa retórica, questionando “o que seria considerado um torcedor?”. A verdade é que durante os anos seguintes, e durante as décadas que se seguiram, todas as pesquisas mostraram uma superioridade da torcida do Grêmio sobre a do Inter. Mais ainda, isso se expressa em todas as camadas sociais, desde os muito pobres até os milionários. O Grêmio domina a preferência tanto da torcida da periferia afastada do capitalismo até a mais abastada centralidade da burguesia.

Hoje ninguém mais questiona a superioridade numérica da torcida tricolor. Ainda existe uma guerra de sócios, mas todos sabemos que, apesar de importante economicamente, isso é secundário para avaliar o tamanho da torcida. Entretanto, isso não torna pequena a torcida do Inter; ela é a 8ª ou 9ª maior do Brasil, uma massa enorme de gente que torce por um time. Porém, a ciência das pesquisas resgatou uma verdade histórica que sucumbia a uma narrativa sem embasamento na realidade dos fatos: o Grêmio é a maior torcida do Sul do Brasil.

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Road Story

Nos anos 90 eu estava em Camboriú – antes de se tornar a cidade cafona e cheia de novos ricos de agora – com a minha família. Na época meus filhos tinham 8 e 5 anos. Resolvemos voltar para casa depois do almoço, no final das férias de 1 semana no litoral catarinense. Aproveitamos a manhã para tomar o último banho de mar, depois almoçamos e tomei um banho para começar a viagem.

Bem, este foi o problema. Como na época eu tinha um cabelo farto e rebelde, percebi que se saísse para dirigir com o cabelo molhado ele se tornaria um emaranhado obsceno de cabelos, com cada fio apontando para uma localidade distinta do universo. Para evitar isso, resolvi colocar uma touca cirúrgica que guardava comigo para secar o cabelo. Dito e feito: coloquei as malas no carro, ajeitei as crianças e saímos para a estrada, usando minha touca cirúrgia para secar o cabelo.

Alguns quilômetros adiante, já próximo de Florianópolis, percebi ao longe um acidente na estrada. Era possível ver uma fumaça saindo dos veículos envolvidos no acidente enquanto uma fila de carros se formava, diminuindo a velocidade para assistir a cena. Quando me aproximei, percebi que só havia policiais no local e nenhuma ambulância. Fiquei preocupado que houvesse feridos que estariam aguardando a chegada de auxílio e resolvi me apresentar para ajudar. Imediatamente parei ao lado do policial que coordenava o trânsito e gritei:

– Hei, policial!! Eu sou médico. Vocês precisam de alguma ajuda?

O patrulheiro se aproximou do vidro do carro e ficou me olhando por alguns instantes. Depois de um tempo respondeu laconicamente:

– Não precisamos de ajuda. Não houve feridos, apenas danos materiais. Obrigado.

Só me dei conta quando Zeza começou a rir. Ela disse: “O guarda deve ter pensado que tu és um maluco que pensa ser uma mistura de médico com Batman”. Foi então que me dei conta que estava usando aquele bizarro gorro cirúrgico e que o policial teria todo o direito de imaginar que eu era um psicótico que sai de carro pelas ruas procurando avidamente casos para atender.

Talvez minha calvície tenha sido uma forma que Deus criou para eu não pagar mais estes micos

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Janela

Não deveria causar espanto o fato de que estas meninas parecem estar esnobando os rapazes com quem marcam encontros. Nessa idade – a adolescência – as mulheres são muito poderosas. Em verdade, não haverá momento algum em suas vidas em que serão tão valiosas aos olhos de todos. Todas as heroínas das histórias infantis – de Branca de Neve. Cinderella e até Julieta Capuleto de Verona – eram garotas no fulgor de sua adolescência. O mercado é francamente favorável a elas. Os homens estão por toda parte ávidos por encontrá-las; são desejadas, procuradas, exaltadas, admiradas e têm o mundo aos seus pés. A virada dos 30 anos é, para muitas, um divisor de águas. Na antiguidade quase nenhuma mulher chegava a esta idade sem filhos, o que nos deveria fazer pensar com uma certa estranheza sobre os tempos atuais, quando a maioria ainda não teve filhos. O certo é que, depois de ultrapassada esta barreira, seu valor (aqui entendido como a atração, não os valores morais ou intelectuais) cai progressivamente.

Quando as mulheres de mais idade, por mais lindas e inteligentes que sejam, dizem que não recebem o reconhecimento devido apenas por serem “maduras”, estão apenas dizendo que não ganham mais a atenção desproporcional e exagerada que recebiam no pleno vigor erótico da juventude. Na verdade, estas mulheres maduras sentem na pele algo que os meninos conhecem muito bem: elas passam a ganhar os mesmos olhares que um garoto de 16 anos recebe das mulheres de 20. Lembrem-se: por mais duro que seja aceitar, somos seres destinados à reprodução. Quanto mais nos afastamos da janela reprodutiva menos valor obtemos do entorno social. Apesar da nossa racionalidade ainda funcionamos como uma espécie sofisticada de primatas sem pelos, e nossas atitudes continuam conectadas aos estratos mais primitivos da mente, os quais, fortuitamente, nos garantem a sobrevivência.

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Imperfeições

Se a sua parceira não tivesse os defeitos que tanto lhe incomodam, ainda assim lhe escolheria para partilhar a vida? Sem as imperfeições que ela carrega, ainda assim você seria útil ou atraente para ela?

Talvez você não fosse mais interessante para ela, nem necessário. Não é justo abandonar essa perspectiva. Se ela não fosse gordinha, estaria com você? Se ela não fosse pobre, ainda assim se encantaria pela sua “personalidade”? Se ela não fosse insegura, continuaria ao seu lado? Se ela não fosse desequilibrada, ainda sim estaria consigo? Sem sua extremada carência, ainda assim lhe olharia com ternura e carinho?

Agora mude os gêneros acima e pergunte: se você não fosse gordo, feio, pobre, inseguro, frágil, angustiado, dependente ainda assim estaria com sua atual companheira(o)? Pense nisso. Quem seria você se não tivesse as amarras que o prendem ao mundo da contenção? Não há como saber sem passar pela prova, mas existem vários exemplos para nos mostrar o que nos tornamos quando perdemos alguns desses “defeitos”. Pensem no jogador de futebol que aos 24 anos faz seu grande contrato e fica milionário – literalmente da noite para o dia. Olhe a cantora sertaneja que “estoura” nas paradas de sucesso e passa a contar seus milhões. Olhe para o pobre funcionário que ganha na loteria. Depois desses eventos, como ficaram suas vidas? Como ficaram seus valores e suas exigências?

Como nos ensinava Marx, temos os valores da classe em que estamos, não daquela de onde viemos. Somos produto do entorno, do campo simbólico que nos rodeia, e somos uma chama de vida nutrida pelo desejo. Somente podem criticar aqueles que abusam do poder os que, tendo visitado o reino da opulência, colocaram cera nos ouvidos para não escutar suas sereias. Todos os outros se iludem com seus reais valores e limites, que muito mais refletem o quanto podemos do que o valor que realmente temos.

Pensem nisso…

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Psicologismo

A ideia ultimamente difundida de que o fascismo surgiria pela proliferação dos “machos inseguros”, produzidos por uma sociedade onde as mulheres estão assumindo cada dia mais postos de comando, é outra tolice que vem sendo espalhada pela camada nas redes sociais, em especial nas franjas mais religiosas e beatas das esquerdas liberais. A redução dos problemas sociais a transtornos ou dificuldades dos indivíduos é uma bobagem que deve ser combatida por quem se situa na porção radical da esquerda, pois que nada mais é que um novo golpe identitário, cujo objetivo é atacar as bases do movimento operário. Isso é infantil demais até para ser debatido.

Por certo que o fascismo encontra um terreno fértil entre os “machos inseguros”, mas nem todos os machinhos em crise reunidos do planeta seriam capazes de criar um modelo de opressão burguesa sobre as massas operárias, usando o aparato repressivo do Estado e da polícia. Isso é puro suco de ideologia. Essa “psicologização” dos fenômenos sociais serve apenas para desviar o foco das questões estruturais que nos impedem de progredir e da inevitabilidade da luta de classes.

A tendência contemporânea de interpretar as tendências sociais em direção ao fascismo utilizando o ferramental produzido pela psicanálise é muito sedutora, e por esta razão largamente usada pelos identitários. Para estes, o rechaço à cultura “woke” não passaria de uma reação aos direitos recentemente conquistados pelas comunidades oprimidas, e os ataques partiriam do opressor-mor da nossa sociedade: o macho branco, cis e heterossexual. Se é verdade que existem homens que não suportam qualquer ideia de equidade, desprezando e se sentindo ameaçados pela maior visibilidade e reconhecimento do trabalho das mulheres, estes não seriam capazes de criar um movimento de supressão das liberdades em direção a um controle opressivo do Estado, como se pode ver nos fascismos clássicos. Tais “machos inseguros” normalmente se reúnem nos bolsões bolsonaristas e nos “chans” compostos por supremacistas e incels, mas não representam uma ameaça concreta, a não ser que se unam aos burgueses que, encampando suas ideias, os usam como massa de manobra para atacar a classe trabalhadora. 

Para os apologistas desta perspectiva o fim do fascismo ocorreria com a abordagem psicanalítica dos seus constituintes individuais ou, quem sabe, por um “outing coletivo”, quando milhões de machos reprimidos e multidões de machistas com comportamentos odiosos e vingativos sairiam do armário, dando vazão aos seus impulsos homoeróticos. Ora, nada poderia ser mais ingênuo e errado do que isso.

O fascismo se combate com política, força, consciência de classe, união popular e revolução. O resto é papo furado.

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Memórias do Homem de Vidro – 17

O Sorriso da Pecadora

E aí encaminharam a mulher em direção a um grande muro de pedra. Seu corpo seminu e o cabelo raspado contrastavam com a dureza da rocha por detrás. Era jovem e, apesar dos castigos, mantinha ainda uma formosura de traços. Seus olhos eram fundos, como fundas era sua dor e sua angústia. As mãos trêmulas seguravam o resto que sobrara de suas vestes, destapando os pés magros e su­jos. Seu pranto era seco; seu olhar perdia-se por detrás da multidão que ora gri­tava. Parecia procurar na distância infinita algo ou alguém que de antemão sabia que não viria. Seu olhar vítreo vagava por sobre as cabeças, desatento aos deta­lhes. Finalmente, voltou seu rosto para baixo e seus joelhos dobraram-se pela exaustão.

— Vadia! — disse alguém, imerso na confusão de vozes.

— Vagabunda! — gritaram outros, e essas palavras ricochetearam na pedra bruta, golpeando-lhe nas costas. A dor das sílabas ferozes era maior do que as dores que seu corpo esquálido já suportara.

A adúltera esperava o seu final. A espuma de ódio no canto dos lábios dos que ali se perfilavam com pedras nas mãos mostrava-lhe que nada poderia impedi-los. Seu fim estava próximo. A leitura da sentença fora breve, assim como breves foram seus pecados. A mão dura da lei repousaria sobre seu corpo e seu espírito. Assim estava escrito, assim se cumpriria. As mãos carregadas de pedras se ergueram para o alto, à espera do aviso. Um silêncio. A pedra dura, o corpo vergado. A cabeça baixa. O pranto surdo. Ninguém falou, ninguém respirou. O mundo, entre um segundo e outro, parou para assistir. À espera do sinal esperado por todas as raivas; o aviso para que as pedras se lançassem ao ar, cruzassem o espaço e esmagassem o corpo frágil da pobre mulher. Ela mantinha seu olhar parado, sabendo que nenhuma palavra seria sufi­ciente, nenhum gesto ajudaria. Seu destino estava determinado pela incompreen­são e pelo ódio despertado. Ninguém poderia salvá-la. Aguardava com resignação silente o seu momento derradeiro.

Sua cabeça baixa ergueu-se pela última vez. Seu olhar perdido fixou-se em um horizonte que jazia próximo de onde as coisas começam e terminam. O corpo aprumou-se e os lábios moveram-se sutilmente. Naquele momento de espera, na­quele fragmento de instante antes da tempestade de rochas, ela fechou os olhos e…

Sorriu…

Sorriu a dor de perder a vida. Sorriu a dor de morrer por ter amado. Sorriu a dor do prazer. Sorriu a dor da liberdade. Sorriu o adeus aos seus. Sorriu porque lembrou daquele breve momento em que amou de verdade, transgrediu e gozou. Sorriu o riso dos loucos e dos libertários, o riso da graça e da desgraça. Seu sorriso era o sinal. Um sinal da culpa; uma confissão. Sorriu também pelos filhos que não tivera e pelos que sempre quis acalentar. Sorriu pelo leite que não verteu de seus belos seios, e das noites que não dormiria aconchegando seus filhos. Sorriu pelos homens, bons e maus, a quem seu corpo ofereceu repouso e sossego. Sorriu por tantos que auxiliara entregando seu carinho e seu calor. Naquele exato instante, ela se libertou. Olhou para a multidão com as pedras al­çadas ao ar e pôde entender com clareza o significado de sua dor. Não mais pa­deceria por desconhecer o significado e o sentido no seu sofrer. Era seu momento de ascensão. Liberta, já podia desembaraçar-se do fardo de seu corpo cansado.

Mas seu sorriso foi também o sinal que liberou a torrente de ódio. As pedras ras­garam o ar, assobiando uma música feroz. Uma chuva de cascalho e rancor. No ar, o cheiro do sangue misturava-se lentamente com a poeira. A multidão aos poucos se aproximava da mulher, para não desperdiçarem nenhuma rocha lan­çada. A carne dilacerada. O corpo aos poucos se desfazendo. Terra, lágrimas, sangue. Mas o alvo já nem era mais seu corpo. Aqueles que estavam presentes procura­vam aniquilar aquele sorriso, que se mantinha vivo e instigante. Por mais que as pedras procurassem atingi-lo, ele continuava ali, incólume. Saiu do rosto da pobre mulher, volitando por entre a multidão, e fixou-se nas retinas de cada um. As pe­dras já não mais o alcançavam.

Os executores ainda gritavam excitados, vociferavam, levantavam as mãos para o alto. Da pobre pecadora já não se ouvia a respiração. Nenhum movimento se per­cebia em seu corpo. A torrente de pedras e gritos parou depois de alguns minutos. Aproximaram-se do corpo imóvel. Um silêncio machucou os ouvidos, para obser­var se a vida ainda habitava naquele ser. Nada. O rosto disforme, as carnes abertas. O brilho da espada do soldado reluziu no peito. Seus seios à mostra ainda tinham o viço e a cor de outrora. Seu busto nada sofreu, como que poupado por sua beleza. Consumada a execução, seu corpo morto agora era carregado para longe. Os presentes aos poucos iam se afastando. As pessoas, de cabeça baixa, tenta­vam tirar de sua lembrança aquele sorriso, aquele enigma. O que a fez sorrir? Por que alguém arriscaria tudo, até a própria vida por um momento.

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Max deixou o pedaço manuscrito de papel sobre a mesa enquanto nos olhava, aguardando os comentários. Nadine havia avisado que seriam nossos últimos momentos juntos naquele dia, porque a noite já havia colocado seu negro cobertor sobre nossas cabeças. Max insistira em que déssemos nossa opinião sobre o texto que guardara para nos apresentar. Disse-nos que este seria um capítulo do livro que estava a escrever. Precisava da opinião dos amigos.

Nadine olhou-o, ainda repousando a mão sobre o queixo, e lhe disse:

— Querido colega… Entendo a dramaticidade do que você descreveu. Cheguei a sentir na pele a dor de morrer assim. Penso que todos levamos conosco um pouco da memória planetária, que faz com que tenhamos impressas em nossos corpos e mentes as sensações que nossos antepassados vivenciaram. Acho que a história carrega uma metáfora poderosa. Ela trata da possibilidade heroica de transgre­dirmos os nossos limites em nome de algo superior e nobre. No caso da adúltera pecadora, o amor era esse limite. Ela sabia que “amar/pecar” seria entendido como uma agressão ao modelo patriarcal estabelecido, e que mesmo diante da possibilidade de morrer ela preferiu arriscar, em nome de algo que ela entendia como sublime e valioso.

Resolvi também comentar o texto de Max. Sabia que era hora de ir, pois o escuro já dificultava nossa visão dos letreiros da rua em frente. O dia foi de intensas emo­ções de reencontro, e penso que Max deixara a leitura de seu texto para o fim porque queria nossa opinião sobre seu projeto de escrever um livro.

— Acho que podemos inserir sua metáfora em muitas circunstâncias banais e cor­riqueiras de nossa vida. A pecadora pode ser qualquer um de nós defrontando-se com as nossas paixões. O próprio nascimento humano pode ser visto nesse con­texto, se pudermos entendê-lo como um processo de profunda capacidade trans­formativa para uma mulher. E o nascimento humano carrega essa potencialidade, desde que se entenda a possibilidade libertária e empoderadora que ele traz con­sigo. Para uma mulher ser protagonista de seu próprio parto, ela precisa desafiar os limites impostos por uma sociedade que se assenta sobre valores outros, e que não admite que esses sejam subvertidos. A pecadora, em uma visão humanista, é aquela mulher que se decidiu por aceitar e incorporar por inteiro a tarefa de ser mãe, com tudo o que isso possa significar. É apoderar-se de um evento que sem­pre foi seu, mas que a sociedade tecnocrática acabou afastando dela. Esse res­gate é inegavelmente um gerador de conflito, e por isso muitas são vistas como “radicais”, “egoístas” ou outros adjetivos negativos que a sociedade utiliza para quem tenta desobedecer a seus ditames.

Nadine sorriu para mim, e Max terminou sua cerveja.

— “Pecadores”, entretanto, são também os médicos — continuei — que oferecem suporte e atenção a essas mulheres na sua busca por partos mais seguros e em­poderadores. Oferecer seu trabalho, sua profissão e sua face aos ataques de to­dos aqueles que se sentem prejudicados com essa transferência de poder os co­loca igualmente na condição de hereges transgressores. Entregar às mulheres essa força e essa possibilidade de protagonismo é considerado por muitos uma afronta. Muitos não hesitariam e apedrejariam sem nenhuma piedade. Outra me­táfora que me parece criativa é o momento de ascensão. Esse momento está pre­sente em inúmeras tradições religiosas, como a cristã, a budista e outras, e nos fala da possibilidade de alçar um patamar superior de compreensão da vida atra­vés da dor, da provação e do martírio. A pobre pecadora, diante do sofrimento que lhe foi imposto, teve a oportunidade de entender a vida e suas infinitas conexões no momento em que estava se despedindo dela. Essa possibilidade transforma­dora e renovadora está presente em muitos desafios que enfrentamos pela vida, principalmente no nosso contato com a morte. O parto pode ser também enten­dido como um momento de profunda provação, em que os valores humanos são colocados à prova. Nesse complexo rito de passagem, muitas mulheres se “des­cobrem” e ascendem a um estágio superior em suas vidas. Esse talvez seja um dos aspectos mais fascinantes do nascimento humano: seu potencial criativo e transformador.

Max mantivera-se em silêncio. Queria nos mostrar seu ponto, sua preocupação e talvez uma dor. Sabia que uma sociedade tecnocrática como a que vivemos não perdoa as pessoas que oferecem uma visão alternativa ao modelo dominante. “É duro passar a vida remando contra a maré, meu caro”, dizia-me ele. Bem sei disso. A postura contra-hegemônica na área da saúde é vista como algo intimi­dante, e tanto Max quanto eu já havíamos sentido a dureza das pedras lançadas por aqueles que não aceitam desvio dos dogmas fundamentais que sustentam nosso sistema de crenças. Nadine mesmo falava que, apesar de acreditar em muito do que dizíamos, não tinha coragem de assumir uma postura franca em di­reção ao humanismo, exatamente porque não existe um sistema de suporte aos médicos que agem orientados pela medicina baseada em evidências. Ela dizia: “Se você assistir partos normais, corre o risco de ser processado e cair em des­graça. O mesmo não ocorre se você fizer cesarianas, mesmo que tenha resulta­dos muito piores”. Ela temia ser apedrejada, mesmo seguindo normas seguras, superiores e atualizadas.

Impossível não compreender suas razões. Não conseguimos ainda criar um mo­delo que proteja aqueles que buscam o melhor para seus pacientes através de uma abordagem sistemática e científica. Quando problemas inevitáveis ocorrem durante o transcorrer de um parto, somos julgados por nossos pares, que na maio­ria das vezes estão a defender o seu modelo, o seu paradigma, que em geral se assenta exclusivamente na manutenção do poder sobre o nascimento. Sem uma integração entre mídia, entidades médicas, ministério público e judiciário, nunca conseguiremos nos proteger do oportunismo que cerca boa parte dos processos contra obstetras.

Max tinha enorme preocupação com isso, e dizia que apenas um esforço muito grande de toda a sociedade seria capaz de nos livrar do horizonte negro que se aproximava. Nossa taxa de cesarianas ainda era uma das maiores do mundo, as­sim como as taxas de morbi-mortalidade neonatal. A associação entre esses dois medidores de excelência em assistência nunca foi encarada por Max como uma coincidência. O sistema de seguro médico ameaçava entrar no Brasil com sua potencialidade destruidora, a exemplo do que ocorreu com os Estados Unidos, onde a “indústria do erro médico” solapou toda e qualquer possibilidade de modifi­cação das péssimas cifras de atenção materna e neonatal a curto prazo. Apesar de os Estados Unidos terem o maior orçamento de saúde do mundo, não estão entre os 40 países com os menores índices de mortalidade materna. Lá principal­mente, mas também gradualmente no nosso país, médicos trabalham com medo, apavorados e distantes de um envolvimento com seus pacientes. Nada mais afastado do ideal de cumplicidade e auxílio apregoado pela profissão médica.

Max sentia na pele a dor das injustiças. Sabia que trilhar o seu caminho de desa­fios lhe custara um preço demasiado alto. As pedras eram os olhares, as críticas injustas e infundadas, os comentários maldosos na sua ausência, a desconsidera­ção de alguns colegas. Entretanto, percebera também que não havia escolha, porque a estrada pela qual se decidira era de mão única. Diante das pedradas que a estrada da vida lhe ofereceu, seu único recurso era oferecer seu sorriso e sua compreensão.

Olhei meu amigo abraçar-se a Nadine. Era hora de ir. Lá fora a noite nos convi­dava para o repouso. Nadine estava com os olhos úmidos. Abraçava-se a Max como a tentar agarrar um pedaço de seu passado, onde tudo eram esperanças e sonhos. Max sorria e dizia que voltaríamos a visitá-la em breve. Olhei Nadine mais uma vez e tentei descobrir qual dor se escondia por detrás do azul dos seus olhos. Deixei minha curiosidade de lado e abracei minha querida amiga, sentindo seu coração perto do meu.

— Ric — disse ela. — Voltem mais vezes. Temos tanto a conversar, tanto a lem­brar…

Eu também trazia meus olhos mareados, e prometi que voltaríamos a nos ver em breve. Max me aguardava na porta e juntos saímos do hospital. Olhei Nadine mais uma vez e lhe acenei. Ela devolveu o aceno com um sorriso. Max despediu-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro e combina­mos mais uma vez reencontrar Nadine e reviver os velhos e bons tempos. Antes de se afastar, ele ainda me falou:

— Você não falou de sua dor para Nadine. Por quê?

Olhei para meu velho amigo e lancei-lhe um sorriso triste, que brotava das feridas profundas que cada um de nós carrega.

— Não gostaria que a tristeza pela injustiça que passei contaminasse nosso reen­contro. Fiquei tão feliz de ver de novo meus velhos companheiros que não queria que nossa conversa fosse dominada pela indignação ou pela mágoa. Nadine é uma doce amiga, não queria que se entristecesse por minha causa.

Max bateu nas minhas costas e segurou fortemente meu ombro.

— Prometa que vai escrever aquele livro. Você não pode sofrer em silêncio. Mui­tos colegas poderão entender o que aconteceu com você. Sua indignação não pode ser silente, pois dessa forma não conseguiremos modificar o modelo ana­crônico e machista que controla a nossa obstetrícia. Escreva, meu amigo; escreva tudo. Prometa.

Balanço a cabeça afirmativamente, prometendo diminuir o peso da injustiça que carregava, descarregando-o nas páginas escritas. Max despede-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro mais uma vez. A rua à minha frente está mais escura do que de costume. Os faróis e as buzinas me atrapalham quando revivo mentalmente as cenas do dia. Relembro as piadas e as histórias de Max e não consigo evitar uma risada. Senti um pouco de cansaço e certa sonolência, para logo depois lembrar que ainda havia centenas de e-mails para responder em casa. Meu celular toca uma única vez e recebo o aviso de uma mensagem de texto. Aperto as teclas do aparelho e leio no visor de cristal líquido:

“Patu Saleh, Max.”

Claro, companheiro… Patu Saleh!

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Memórias do Homem de Vidro – 16

Asfalto

Tentei fazer a ligação do meu mouse no computador novo, mas percebi que a co­nexão era inadequada. Inútil insistir. Com as mãos na cintura, eu vislumbrava o ventre cibernético do computador aberto à minha frente. Suas entranhas expostas não me traziam esperanças, mas me ofereciam a ilusão ingênua de controlar seu funcionamento. A conclusão era dura e inevitável: meu dispositivo era PS2, e a única porta acessível era uma serial. Eu necessitava de um adaptador, e talvez pudesse encontrá-lo no shopping. Ok, pensei eu, já conformado com o meu passeio compulsório. Aproveito e visito uma livraria. Quem sabe encontro alguma novidade, ou pelo menos leio o meu livro enquanto tomo um café expresso. Tento acordar Bebel para me fazer com­panhia, mas a festa da noite anterior a mantinha agarrada aos braços de Morfeu. Mais tarde agradeci por ela estar presa a este sono de pedra.

A tarde fria já mostrava seus estertores, colorindo de púrpura o céu da cidade. O vento cantava uma fria melodia na fresta aberta da janela do carro, enquanto os faróis dos automóveis lentamente iam se acendendo, produzindo uma dissonância ofuscante de luzes. O rádio é a companhia que me resta, e acompanho o som das músicas com minha voz desafinada. “E é só você que tem a cura do meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Renato Russo fala da saudade daquilo que ainda não vivera, enquanto eu forço a vista para po­der enxergar a mudança nas tonalidades da rua. Penso na força de um ídolo que se foi, e que, ao morrer, tinha a mesma idade que eu. Novo, pensei. Vítima do desregramento que atinge os mais sensíveis, ainda jovem sucumbiu a um turbi­lhão de paixões avassaladoras. Sua poesia ainda encanta os “meninos e meninas” da geração que nem chegou a conhecer.

Meu caminho em direção ao shopping necessariamente passava pelo estádio de futebol. Aos poucos, vislumbro o topo das torres imensas que guardam os holofo­tes, e sua visão me trouxe à memória minha velha tese de que os estádios tentam reproduzir a estrutura dos castelos medievais, em uma intrigante fidelidade à ar­quitetura das cidadelas. O fosso, as torres sentinelas, a ponte levadiça, os guar­das, o povo alucinado e os exércitos digladiantes: tudo isso me aparecia de forma evidente nas partidas de futebol. Ali os clãs se reuniam para as batalhas, que o processo civilizatório sublimou nos jogos esportivos. Entretanto, o calor dos em­bates futebolísticos frequentemente produzia em mim a memória corpórea de um tempo passado nem tão distante, em que os “gols” eram muito mais sangrentos e as vitórias, realmente “arrasadoras”. Felizmente nossa impulsividade testosterô­nica e guerreira já havia encontrado outras formas mais sutis de expressão.

Quase em frente à curva do estádio, a intuição me fez mudar de rumo. Empurrada por uma vontade repentina, minha mão escorregou no volante e decidi não con­tornar o velho campo de futebol pela esquerda, mas manter uma linha reta e se­guir em frente para somente mais adiante virar em direção ao shopping. Poucos minutos depois, eu ainda questionaria as razões pelas quais tomamos decisões fortuitas, mas que posteriormente nos instigam a imaginação por guardarem uma causalidade aparentemente inexplicável. Ao passar o semáforo, percebi uma aglomeração próxima a um “bailão”, que é uma espécie de boate gauchesca muito ao gosto do povo. Uma pequena multidão acotovelava-se em frente a um posto de gasolina. Diminuí a marcha e me aproxi­mei para ver do que se tratava. Havia um popular, não um policial ou agente de trânsito, a pedir que os carros desviassem. Logo percebi que as pessoas se amontoavam em torno de um corpo caído ao chão. A ausência de agentes policiais me alertou para o fato de que o acidente devia ter ocorrido há alguns minutos apenas, e sequer houvera tempo para que alguma autoridade fosse acionada. Os transeuntes se agrupavam em torno da pessoa caída, me impedindo de ver detalhes do que havia acontecido. Abri o vidro do carona e gritei para o senhor que, com um lenço, fazia sinal para os carros que trafegavam:

— Amigo, eu sou médico. Alguém aí precisa de auxílio?

Ele curvou o corpo para frente, e forçou a vista para me enxergar dentro do carro. Ajustou os óculos com a mão que não segurava o lenço, ainda balançante, e res­pondeu incontinenti:

—- O senhor é médico? Sim, acho que precisamos. Houve um atropelamento. — Voltou-se para trás e, dirigindo-se à turba, gritou:

— Afastem-se. Este senhor é médico. Abram espaço!

Manobro meu carro no posto de gasolina em frente. Corro em direção à multidão, mas ainda preciso avisar: “Sou médico, deixem-me chegar perto”. Uma mulher jazia imóvel no asfalto. Minha experiência com atendimentos na rua é estranha. Parece que as coisas sempre acontecem ao meu lado. Já fui socorrista de muitos acidentes de carro e já auxiliei inúmeras pessoas vítimas do trânsito caótico. Parece uma imantação, ou talvez o fato de que aparentemente eu preciso me aproximar dos acidentes. Pareço ter uma vocação para “anjo da guarda”, o que talvez seja uma boa oportunidade de emprego depois que eu partir “desta para uma melhor”.

Desta vez não foi diferente de várias outras. O acidente havia ocorrido alguns mi­nutos atrás apenas. Depois de esbarrar nos indefectíveis curiosos, chego ao lado da pessoa que estava caída. Ajoelho-me ao lado do corpo e sinto a dureza do asfalto contra minhas rótulas. Instintivamente coloco uma mão no pulso e a outra sobre sua testa. Uma mulher, passando dos 50 anos. Vestia roupas simples, mas os sapatos bonitos e reluzen­tes pareciam novos. Sua calça estava rasgada próximo ao joelho, por onde se po­dia observar o amarelo subcutâneo de um profundo corte. Havia uma fratura ex­posta na altura do fêmur distal, e espículas ósseas agrediam as bordas da pele. Minha visão fixou-se na perna da mulher, à procura de sangue, mas não havia nenhum sinal. Como poderia um corte tão profundo, associado a uma fratura, não sangrar?

Pensei no pior. Olhei sua cabeça que, de lado, parecia tentar escutar o negro as­falto. Uma poça de sangue coloria de rubro o chão escuro. Sem movimentá-la, abri bem seus olhos e não percebi nenhuma reação das pupilas, que se encontra­vam imóveis. A dobra de sua orelha estava azulada e fria, mas o resto do seu corpo ainda mantinha o calor. Tinha uma extensa lesão por abrasão nas costas, de um vermelho intenso. Seus olhos, agora semiabertos, pareciam querer olhar um ponto qualquer do outro lado da rua. O som dos automóveis passava por entre as pernas das pessoas, e o círculo ao redor do corpo ia se tornando menor. Por entres os espectros dos curiosos amontoados ao meu redor, eu podia ver os vi­dros dos carros se abrindo para que cabeças fossem impulsionadas para fora, na ânsia de verem do que se tratava. Ao seu lado, uma senhora me falava:

— Ela é mãe da doutora Fulana, que é ginecologista. O genro dela é o doutor Fu­lano. O senhor os conhece?

Os médicos a quem ela se referia eram meus colegas. Sua filha era da mesma especialidade que eu, curiosa coincidência. O genro, outra coincidência, tinha um dos nomes igual ao meu. Não era meu amigo, mas sabe-se lá quantas vezes já havíamos nos cruzado nas galerias dos hospitais. A filha era provavelmente mais jovem do que eu, porque não reconheci seu nome.

— Ela está bem doutor? Estávamos atravessando a rua quando esta motocicleta apareceu de algum lugar. Ela não viu. Como ela está, doutor?

Não havia nenhum movimento respiratório. As pupilas estavam fixas, os olhos imóveis. Parecia ainda procurar algo do outro lado da rua, fixada em um ponto perdido entre a calçada e o horizonte purpúreo. Botei mais uma vez minha mão no seu pescoço na esperança de encontrar pulso carotídeo. Nada. Nem um mínimo sinal de vida. Olho para a amiga, que ao meu lado chora, e vejo nos seus olhos uma súplica. Pede uma esperança, uma chance. É uma bela mulher, passada também dos 50 anos. Está vestida com um casaco de couro mar­rom claro, e um batom vermelho vivo cobre seus lábios.

— Sua amiga morreu. Não há um sinal qualquer de vida. O trauma na cabeça, ou alguma lesão interna, deve ter sido o causador. Eu sinto muito.

Ela abraça-se a mim e chora. Seu soluço é baixo, mas sua dor é algo que sinto na pele. Os curiosos se aproximam mais ainda, e os ônibus diminuem a marcha pró­ximo ao acidente para poder democraticamente saciar a sede das pessoas pelos espetáculos mórbidos. Pessoas me perguntam se ela ainda está viva, e eu digo que devemos esperar a ambulância. O motoqueiro se aproxima e vejo espanto na sua expressão. Parece não acreditar no que vê. Seu olhar procura uma reação na mulher, mas esta não se move. A amiga continua a falar, tentando extravasar sua ansiedade. Diz que não conse­gue ligar para a filha da amiga, mas penso que ela na verdade estava sem cora­gem para isso. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que dar uma notícia como essa. Continuo a olhar a pobre senhora, cujo corpo rapidamente parece esfriar junto com a noite outonal que se aproxima.

— Ela saiu para dançar. Estava atravessando a rua para uma aula de dança de salão. Ela está bem, doutor?

Quem me dirigiu a palavra foi um senhor gordo com uma camisa vermelha, já passado dos 70 anos. Talvez fosse um colega de aula; quem sabe um antigo amigo. Finalmente consigo entender para onde a mulher parecia olhar. Do outro lado da avenida um cartaz jazia, pendurado à parede de cimento cru: “Aulas de Dança de Salão”. Seu olhar continuava fixado no cartaz, como que a negar o que o destino lhe impusera. Apoiei a mão no ombro do senhor de camisa vermelha e disse-lhe em voz baixa:

— Ela faleceu, meu amigo. Não há mais nada a fazer.

Minha voz saiu como um sussurro proposital, para não criar confusão. Ele apenas falou “Meu Deus…”. Pedi que trouxesse do bar que existe em frente uma toalha para cobrir a senhora. Não conseguia aceitar os olhares dos passantes, que teimavam em chegar bem perto como que para ver a morte o mais próximo possível. Curvei-me mais uma vez em sua direção. Coloquei minha mão no seu rosto e fechei-lhe as pálpebras, tentando entender o que se passou. Uma pessoa sai de casa para uma aula de dança. Seus sapatos novos e reluzen­tes me diziam que ela era uma mulher vaidosa, caprichosa. Seu cabelo castanho pintado tentava disfarçar os fios brancos que teimavam em aparecer bem próxi­mos à raiz. Quem sabe estava procurando um namorado, uma companhia, ou apenas diversão e risadas marotas com as antigas amigas. Encontrou a morte ao atravessar a rua.

A fragilidade da vida é o que lhe empresta grandeza e fascínio. O fato de que po­demos nos retirar bruscamente dessa existência é o que nos faz pensar que cada momento é único, porque irreprodutível, e que a cada instante travamos uma luta contra nossa finitude. Com minha mão em sua face, tentei mentalizar sua passagem. Imaginei o cortejo espiritual que ao nosso lado deveria estar se realizando. Certamente ela teve em sua vida amigos, amores, familiares e pessoas que, já tendo passado para o lado de lá, a estariam auxiliando. Provavelmente ao meu lado haveria algum tipo de “Serviço de Recepção e Auxílio”, para ajudar aqueles que estavam regressando prematuramente à casa espiritual. Meu futuro emprego, pensei eu. Passei essa vida inteira recebendo os que vêm do outro lado, por que haveria de ser diferente depois de morrer?

Chegam os agentes de trânsito. Com suas “caixinhas falantes”, mandam informa­ções ao Pronto-Socorro. Apresento-me a um deles e explico que a mulher acabou de falecer. Ele transmite a informação para a central, mas confirma que a ambu­lância deve se apressar. Falo com a mulher da central e digo que a mulher não mais respirava, e que o caso era realmente fatal.

Minutos após, a ambulância chega, fazendo alarde. A mulher no asfalto jaz co­berta com a toalha do bar, e o paramédico apenas confirma minhas informações. Nada mais há para fazer.

Levanto-me e abraço mais uma vez a amiga. Pego um papel e escrevo meu nome, para que ela entregue à filha, minha colega ginecologista. Talvez ela qui­sesse perguntar alguma coisa, ou saber como estava sua mãe quando veio a fale­cer. Afasto-me da multidão e olho para o corpo miúdo que começa a ser carregado para a ambulância. Digo mentalmente adeus, pedindo para que ela possa ser bem recebida no lugar para onde está indo. Entro no meu carro e sigo meu caminho. Ligo o rádio. A lembrança de V. instantaneamente me vem à recordação.

“Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”, grita Belchior.

Ela também saiu de casa para uma aula de dança. Queria bailar no ritmo de uma canção há milênios cantada. Queria passar pelo seu rito, sem ser obstruída por uma sociedade que recrimina a autonomia e a liberdade. V. sabia que o caminho da libertação passa pela coragem e pelo enfrentamento. Morreu ao atravessar sua última avenida, atropelada pela inevitabilidade de uma doença imprevisível e im­possível de prevenir e abatida pela infecção contraída no que deveria ser o “san­tuário da antissepsia”. Logo ela, que tanto tentou evitar uma fatalidade ao procurar na humanização do seu parto a forma mais segura de lidar com o evento.

Dobro finalmente em direção ao meu destino. As imagens se multiplicam na minha mente, e eu continuo a pensar na morte e seus significados. A morte é o tabu-mor da medicina. É a maldita palavra não-dita. “Palavras são energia”, já dizia minha mãe. Nós, médicos, não pronunciamos essa palavra de cinco letras, talvez para afastar de nós a sua aura temida. Faz parte da nossa mi­lenar herança mística, e dos rituais que cercam nossa profissão. Não falamos feto morto, falamos “FM”; não nos reportamos ao câncer, e sim ao “CA”, e mesmo nós, imitando os pacientes, falamos das doenças malignas como “aquela doença”. Nossa ojeriza à morte, e ao fim determinado por ela, só pode ser compreendida se adentrarmos a sutileza dos alicerces que sustentam a medicina. Tentamos desviar da boca a palavra amarga, para que não chegue aos corações e mentes a marca indelével da nossa falibilidade. Morte em medicina significa o fracasso último de nosso intento fantasioso de sobrepujar a natureza e seus ditames.

Morrer é tão da vida quanto nascer, e enquanto não pudermos entender as pontas da existência como um tubo que se fecha, jamais seremos capazes de sobrepujar a dor de partir. Zeza ainda ontem me falava da dor de nascer, e deixar para trás aqueles que tanto nos amam e a quem deixamos órfãos de nossa presença espiritual. Também do lado de lá deve haver saudade, senão por que sorririam ao nos ver regressar aqueles que já se foram? Seria o humano fadado a um eterno acenar de cais? Seria a criatura de Deus um eterno suplicante de amores deixados para trás, na longínqua memória de tempos e paixões já idas? Seria a completude da presença constante um idílio mentiroso, tão falso quanto aquele em que a princesa e seu escolhido “viveram felizes para o sempre”? Será a existência maior marcada, em essência, pela fatalidade da partida, a sombra da despedida e a dor de um olhar a perder-se? “Viver é preparar-se para morrer”, diria Sócrates. Sem o desapego às coisas e às pessoas, nossa passagem se torna um mar de aflição e tormento. Viver é prepa­rar-se para a separação, para a distância.

Maximilian uma vez me disse: “Se quiser trabalhar com a vida, entenda a morte. Morrer é o que confere à vida sua grandeza e significado. Esta se torna mais vali­osa quando mais frágil a reconhecemos.” Max era certeiro, e sabia o que era a dor de perder alguém. O destino é realmente surpreendente. Pergunto a mim mesmo qual o sentido disso tudo. O medo da resposta me fez aumentar o volume do rádio. Haverá uma razão para o sofrimento?

Volto para a realidade asfáltica do meu percurso em direção ao shopping e tento me preocupar com a peça faltante do computador, para assim afastar os pensa­mentos dolorosos que tomaram conta da minha mente. Sigo meu rumo olhando o rosto das pessoas nas calçadas. Escondido no carro, os passantes não percebem minha angústia e minha estupefação diante do patético da existência. Tenho ga­nas de baixar o vidro e gritar: “Hei, você aí parado. Você mesmo, na parada de ônibus, de camisa amarela. Podia ser você. Isso mesmo… podia ser você”. Desligo o rádio, e uma música da infância me vem à memória, tomando o lugar da balada romântica. Era uma música evangélica polifônica, à capella, tão ao gosto do meu pai. “Se a morte vier hoje o buscar, como está com seu Deus?”

E se ela viesse?

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