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Evangelho

Quando pequeno tive aulas de “evangelização” na sociedade espírita que meu pai era presidente. Até hoje tenho sentimentos conflitantes sobre essa experiência. Discuti o assunto com vários amigos da época, e ainda acredito que, caso tivesse frequentado uma escola de artes, ou um clube literário, (quem sabe uma banda de rock?), estas escolhas teriam sido mais proveitosas, e me deixariam mais preparado para a vida. Para muitos, as aulas “dominicais”, são uma forma de ensinar perdão, amor, caridade, fraternidade, etc. Há quem discorde, acreditando que ensinar religião para crianças e encher suas cabeças com conceitos religiosos – acreditando que isso pode “moldar seu caráter” para que se tornem “cidadãos de bem” – é uma ideia absurda e que não encontra qualquer comprovação nos fatos. Seja qual for a verdade, compreendo quem acredita que a infância deve ser livre deste tipo de ensinamento, em especial os que são oferecidos às crianças do ocidente, como as mitologias judaico-cristãs.

Eu lembro vagamente dessas aulas, mas não de uma forma positiva, apesar de que minhas memórias sobre elas também não são negativas (afinal, conheci minha futura esposa nesses encontros). Todavia, acredito que minha cabeça seria mais livre de preconceitos se não tivesse escutado tantas histórias de Jesus e seus apóstolos, as quais acabaram trazendo toda uma exaltação da Palestina como um lugar “mítico” e “sagrado”. Ora, na perspectiva do Império Romano, naquela época a Palestina tinha tanta importância geopolítica quanto tem hoje a pequenina Gravatá em Pernambuco para o Imperialismo americano. Ou seja, absolutamente insignificante. Entretanto, foi Paulo de Tarso (o apóstolo dos gentios) e uma série inimaginável de intrincadas coincidências históricas o que fez o cristianismo ter relevância – muito mais do que a profundidade dos ensinamentos de Cristo, que podem ser achados numa infinidade de outras religiões e seitas até bem anteriores ao próprio cristianismo. “Ahh, mas o sermão do monte, as bem-aventuranças”. Sim, não há como negar o significado desta parte do Evangelho; este sermão é o coração do cristianismo e o seu grande diferencial, pois nele ficou clara a opção pelos pobres, e foi essa conexão com as classes miseráveis que lhe ofereceu imensa popularidade.

Por outro lado, por causa dessas aulas precoces de cristianismo, acabamos fixados nessa cosmovisão judaico-cristã – que pode ser sectária e até obliterante. A pior de todas as heranças é a tese do “povo escolhido” ainda usada pelos sionistas, como se aquele povo tivesse alguma qualidade especial aos olhos de Deus, mais do que os asiáticos, africanos ou os habitantes do novo mundo. Como se Deus tivesse encontrado, entre todos os grupos humanos, a sua gente “preferida”. Pergunto: que Deus é esse que se comporta como um pai irresponsável, que se dedica mais a um filho do que aos outros?

O espiritismo, por sua vez, importou esta ideia supremacista ao criar a fantasia do Brasil como “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, uma ideação arrogante e ufanista que não se assenta sobre nenhuma evidência na história, a não ser o fato de termos a maior população católica do mundo. Bem sabemos o quanto essa “religiosidade” não nos garante nenhuma qualidade especial na defesa dos direitos humanos, das crianças, das mulheres, da população LGBT, da natureza ou na distribuição de renda. Na infância muitas crianças espíritas são alimentadas com estas visões equivocadas e arrogantes sobre o Brasil, trazendo a fantasia de que somos um país “especial”, quando em verdade somos apenas mais uma nação que tenta sobreviver ao capitalismo brutal e decadente.

Hoje vejo entre os cristãos brasileiros uma adesão muito forte ao discurso de Israel na sua guerra covarde contra os palestinos, e acredito que muito disso está na visão positiva que têm da região. “Ahh, Jerusalém, o Monte das Oliveiras, o Gólgota, o lago Tiberíades, Belém, Nazaré, o lago de Genesaré, o mar da Galileia, o rio Jordão”…. são lugares que eu lembro de cabeça somente pelas histórias que li e ouvi durante os anos da infância, mas isso não deveria produzir nossa cegueira diante da perversidade genocida daqueles que controlam a ferro e fogo a região.

Minha experiência mais contundente aconteceu quando fui à China pela primeira vez e perguntei à uma plateia de quase 100 profissionais da saúde se tinham ouvido falar de “Freud”. Apenas duas pessoas o conheciam, mas nada sabiam de sua obra. Ou seja: a cultura de lá jamais necessitou de Freud para construção de uma sociedade vigorosa. Da mesma forma, conheci lá centenas de maravilhosas pessoas que jamais tiveram qualquer contato com o cristianismo ou com as histórias e parábolas de Cristo, o que parecia não lhes fazer falta alguma. Naquela oportunidade cheguei à conclusão que nossa visão eurocêntrica, ocidental e cristã nos dificulta enxergar outras realidades no pensamento humano. Por isso, oferecer aos pequenos uma perspectiva humanista e não sectária deveria ser uma alternativa muito mais frequente entre nós. Sem gurus, sem salvadores, sem messias, sem livros sagrados, sem povos escolhidos, sem verdades pétreas, sem diferenças essenciais entre os povos e abraçando a diversidade da forma mais intensa e possível, desde a mais tenra idade.

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E aí, espíritas?

Prefiro não exagerar nos adjetivos, mas creio que os espíritas do Brasil deveriam se preocupar com as diretrizes políticas que o movimento tem tomado, em especial após as declarações de alguns de seus expoentes. Acho difícil encontrar uma palavra branda para definir médiuns que, usando de sua influência no universo espírita, promoveram delinquentes como Moro, chamando-o de “Espírito de luz”. Essa afirmação, vindo de onde veio, nos coloca diante de um claro dilema: uma possibilidade seria que o referido médium emitiu sua opinião política pessoal a um público espírita para emprestar seu prestígio a um grupo criminoso de juízes e promotores da Lava Jato, o que por si só seria uma usurpação de suas funções como divulgador do espiritismo e um erro histórico. Lembrem que Deltan e Moro, os líderes dessa facção, estão sendo processados pelos crimes cometidos.

A segunda possibilidade é de que sua manifestação foi inspirada pelos espíritos “de luz” que o acompanham, mas isso coloca a clarividência desse grupo de “espíritos assessores” em cheque. Agora que sabemos todas as ligações da turma da Lava Jato com interesses imperialistas – o DOJ e a própria CIA – é provável então que estes “conselheiros” sejam apenas palpiteiros do plano espiritual, imbuídos do mesmo caráter reacionário, punitivista e individualista de tantos iguais a eles que habitam o plano terreno. Ou seja: para que serviriam as mensagens mediúnicas se os espíritos que as manifestam têm os mesmos vícios e a mesma carência de consciência de classe que os encarnados? Qual a sua utilidade se sucumbem ao mesmo punitivismo que desreconhece a dinâmica social na gênese da iniquidade e da injustiça?

Assim sendo, prefiro ficar com as manifestações das personalidades vivas, pois que estas, no mínimo, são obrigadas a suportar o contraditório, podem ser pressionadas a comprovar suas teses e mostrar suas fontes. Mais ainda, deveríamos derrubar essa aura falsa de infalibilidade que surge quando a opinião vem de “espíritos superiores”, o que nos faria testemunhar a debacle de suas teses quando as evidências despontam no horizonte. Onde estão os espíritos que exaltavam a “coragem” do “conje” e sua postura magnânima e viril na luta pela justiça? Provavelmente estão encolhidos com vergonha de se manifestar.

É curioso como os espíritas de direita criticam o apoio da esquerda à Cuba e a ligação com nosso maior parceiro comercial, a China, mas nada falam das visitas dos governos anteriores às ditaduras declaradas da Arábia Saudita ou de Israel, que comanda um sistema racista de Apartheid na Palestina. Onde está o “fora da caridade não há salvação” quando dão suporte a países racistas? Afinal… os espíritas também vão embarcar nesse apoio à Israel? Vamos fechar os olhos para os massacres que se iniciaram há 75 anos? Vamos nos associar na sustentação desses crimes através do “sionismo evangélico”?

O movimento espírita, que deveria estar à frente das manifestações pela paz, deveria se manifestar em nome das crianças palestinas que estão morrendo em nome da ganância imperialista.

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Bye bye, Jesus

Em 1983 ocorreram os primeiros casos de AIDs no planeta. Havia um clima de terror biológico no mundo semelhante ao que ocorreu com a Covid há poucos meses. A tese que percorria o imaginário dos médicos e da população é de que a “peste gay” – ou seja, uma doença causada pela “opção” sexual desviante – extrapolaria as barreiras do mundo homossexual, passaria para os bissexuais e daí para todo o mundo heterossexual. Não esqueço de um episódio em que uma palestra foi dada por um dermatologista da cidade (os dermatologistas eram os mais próximos do estudo da síndrome por causa das manifestações de pele, como o sarcoma de Kaposi) onde o clima era um misto de curiosidade e pânico por parte dos estudantes de medicina. A palestra foi técnica, para mostrar o pouco que já se sabia a respeito da doença. Entretanto, havia um outro sentimento no ar: a ideia de que esta doença era causada por questões morais, falhas graves cometidas por humanos desviados das leis divinas.

No ano seguinte ocorreu um seminário sobre “sexualidade” patrocinado por uma entidade espírita da capital. Como eu havia participado da “juventude espírita”- em quase nada diferente de qualquer grupo de jovens que frequentam igrejas – e estava no penúltimo ano do curso de medicina, fui convidado a fazer uma palestra sobre “AIDs e a questão espiritual”.

Não lembro exatamente qual foi o teor da minha palestra, mas por certo que nela havia uma forte tendência a colocar muito mais peso nas questões ambientais, sociais, culturais e psíquicas do fenômeno do que no mero estudo de um vírus – cuja letalidade já era fortemente questionada por virologistas famosos, como Peter Duesberg. Eu acreditava que a destruição do sistema imunológico era produto de um estilo de vida que por si só era destrutivo, e o papel dos microrganismos não era o único responsável pela manifestação da enfermidade. De qualquer maneira, deixei claro que as mortes eram reais e os cuidados deveriam ser mandatórios, para que houvesse uma diminuição nos casos. AIDs tirava a vida de muitos jovens, era um assunto sério, mas evidentemente que havia se tornado uma questão relevante porque as vítimas eram jovens, brancos, de classe média e do ocidente, ao contrário do que ocorria com a tuberculose, que matava dez vezes mais, mas acontecia com populações de pele mais escura, pobres e miseráveis do terceiro mundo.

Sim, as pessoas não estavam preparadas para minha análise dos fatores sociais relacionados ao surgimento de doenças, e muito menos estavam interessadas em ouvir minhas críticas e questionamentos sobre a tecnocracia médica. Eles queriam saber da “vacina” (que jamais chegou, mesmo depois de 40 anos) e, mais do que isso, quais os significados morais dessa doença. Era mesmo um “castigo divino” diante da “libertinagem desvairada” do mundo contemporâneo”?

Pois eu frustrei a plateia (algo que me especializei em fazer) ao me negar a explorar esta perspectiva, e tudo o que eu fiz foi tentar des-moralizar os quadros de imunossupressão adquirida, tirando deles a imagem de “doença do pecado”. Tentei até mostrar que existem vários fatores produzem esse tipo de quadro, mas que havia um número crescente de casos associados com a aparição de um retrovírus específico, o HTLVIII. Minha breve explanação foi sobre a história dessa doença, seu surgimento entre jovens americanos gays, o mito do “paciente zero”, as repercussões, o teste criado por Robert Gallo, a descoberta por Luc Montaigner, etc. Percebi que os espíritas presentes não gostaram das minhas palavras. Caretas, bocas torcidas e cabeças balançando negativamente apareceram à minha frente.

Na parte das perguntas, logo após minha fala, uma jovem me questionou: “Será essa doença um aviso da espiritualidade contra práticas condenáveis”? Ato contínuo, outro senhor me perguntou “O que fazer com uma laranja podre que compromete um cesto inteiro”. Ficou claro que havia uma tentativa de tornar essa síndrome uma doença da alma, torná-la uma chaga moral, produzida por erros do comportamento. Havia a visão de que os gays (mais do que o vírus) eram o problema a ser combatido.

Havia várias pessoas na plateia que eu sabia serem homossexuais. Até hoje me pergunto como se sentiram quando as pessoas ao seu lado questionavam a “moralidade” dos gays”. Como se sentiram ao ouvir que eram maléficos, “um mau exemplo” e que eles poderiam ser os responsáveis por uma doença que tinha a potencialidade de “exterminar a humanidade”? Depois da minha palestra um médico de Goiás veio falar de “homossexualidade e espiritismo”, e sua fala apontava para que a única atitude correta dos homossexuais seria a supressão dos seus desejos e a vida em castidade. “Se religiosos de várias seitas conseguem dominar seus impulsos para se purificar, por que os gays não poderiam fazer o mesmo?”, perguntou ele, com a característica empáfia dos clérigos. Foi aplaudido de pé.

Há 40 anos abandonei as religiões. Percebi que o discurso das religiões não servia para mim. Continuei me dizendo “espírita laico” porque ainda tenho crenças relacionadas ao espiritismo, mas não me sinto bem escutando qualquer palestrante espírita. Quando escuto uma palestra em questão de minutos começa a torrente de moralismo, falas prescritivas, regras de comportamento, idealização de personagens (Chico, Divaldo, Kardec, Jesus, etc) e um ranço cristão culposo insuportável. Desculpe, apenas não é para mim e não consigo achar qualquer validade em tais manifestações.

Abandonei o espiritismo religioso há 40 anos, mas hoje abandono o cristianismo. Chega de Jesus. Sua existência real talvez seja até verdadeira, mas seus seguidores deturparam de tal maneira a mensagem cristã que, se o próprio Cristo viesse à terra, não se reconheceria em nenhuma igreja – até porque, sendo preto, jamais se veria naquele germânico de olhos azuis que aparece nos templos. Mais do que isso, a retórica dos líderes cristãos agora apoia os massacres em Gaza, mostrando a face mais preconceituosa, racista e cruel desses “pastores”, os mesmos que aceitam como “desígnios divinos” as mortes por atacado de crianças nos territórios palestinos. Isso tudo porque estão conectados financeiramente com o Estado Sionista, que os promove e financia em suas excursões para a Terra Santa. São empregados muito bem pagos do terrorismo de Estado de Israel, que controla de forma genocida o colonialismo no Oriente Médio.

Deixo aqui qualquer conexão com o mundo cristão. Não reconheço Cristo como “meu salvador”, e sequer acredito que o cristianismo tem ainda uma mensagem a oferecer ao mundo. Se as ideias de Cristo fazem isso com os cristãos que levam as bombas para Israel, o que podemos esperar de sua mensagem? Uma religião cujos seguidores matam despudoradamente crianças em nome da dominação e do poder não pode ser algo aceitável para a minha vida.

Adeus Jesus, até não mais…

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Missionários

Sobre missionários americanos que vem ao Brasil para trazer “a palavra” e fazer assistencialismo barato (na verdade, bem caro).

Será que realmente precisamos de mais gurus? É esse tipo de “levante” espiritual que necessitamos? Os caras chegam aqui falando inglês para nos “salvar”? Já não foi suficiente o Jim Jones na Guiana? Mais espertalhões que misturam espiritualidade com negócios? Outro Rajneesh? Mais um Edir Macedo, desta vez um “que habla”? Outros reacionários conservadores que usam a pobreza, a miséria e a carência para vender seu salvacionismo conservador e bilionário?

Mais promessas? Mais sucesso econômico e cadeira cativa no céu? Ainda mais dízimos sendo recolhidos para a ganância das igrejas? Trago seu amor de volta? Mais assistencialismo que escraviza as mentes? Mais torniquetes emocionais de culpa? Mais líderes carismáticos que lucram com a fé? Afinal, quem financia esse gente? Quem paga essas apresentações midiáticas? Quem está por trás da fortuna que circula nessas instituições? Posso apostar que procurando bem podemos encontrar o dedo do Departamento de Estado Americano, que pretende nos fazer a creditar que o fim da pobreza está na … fé.

Esses espetáculos não são feitos para acordar; pelo contrário, são feitos para nos manter em sono profundo, anestesiados, imóveis e sem reação. Acordar significaria revolucionar nossa realidade de tal sorte que a sociedade, ao fazer uma mudança tão radical, não teria mais nenhum pobre para ajudar.

Basta desses gringos falastrões….

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Espiritismo Místico

Minha dúvida é a seguinte: o que teria ocorrido com o espiritismo se houvesse optado por uma vertente científica – a vertente derrotada no final do século XIX, liderada por Angeli Torteroli, no enfrentamento com os místicos? O que teria acontecido com a “Doutrina dos Espíritos” caso tivesse aderido às concepções científicas da época, mantendo-se longe das percepções místicas e religiosas e tornando-se um ramo científico, positivista e experimental de investigação da vida e da comunicabilidade após a morte? Na minha humilde opinião esta escolha poderia ter produzido pesquisadores como os “Ghost Busters”, que se divertiriam fazendo experimentos em laboratórios para investigar fantasmas e mensagens do além, tendo quase nenhuma pervasividade entre a população.

O espiritismo assim desenvolvido seria um ramo quase desconhecido do conhecimento, como o são as ciências parapsicológicas. Ou seja: a vertente mística, cristã/católica e mediúnica do espiritismo, através do processo sincrético de adaptação à cultura brasileira, foi o responsável pela fantástica disseminação dessa mensagem. Todo mundo no Brasil conhece o espiritismo, conhece Kardec, conhece mediunidade e sabe o que é reencarnação. Pela mesma razão, a ligação da homeopatia com o espiritismo foi a responsável por manter a ideia do tratamento homeopático vivo na cultura – apenas porque na sua chegada ao Brasil esteve ligado ao espiritismo, mesmo que nada exista de necessário na conexão entre esses dois conhecimentos.

Desta forma, mesmo que seja justo discordar da forma como o Espiritismo se desenvolveu na cultura, sendo uma espécie de seita católica reencarnacionista e mediúnica, repetindo inúmeros defeitos e problemas das grandes religiões tradicionais (crendices, conservadorismo político, moralismo, conservadorismo de costumes, hierarquias, gurus, burocracia, culto às personalidades, etc.) ainda assim é correto dizer que estas foram as circunstâncias essenciais para a disseminação da mensagem espírita. Sua conexão com o cristianismo foi fundamental para garantir sua popularidade, mesmo que a visão kardequiana seja muito mais universalista – o que permitiria o espiritismo na China ou no Oriente Médio, já que não competem com visões religiosas tradicionais. Não fosse sua ligação com as vertentes mais místicas e a doutrina de Kardec jamais teria o sucesso que teve entre os brasileiros. Essa é uma das contradições mais interessantes para a abordagem espírita.

Muitos espíritas laicos, que combatem a vertente mística do espiritismo, negam a imensa maioria dos livros psicografados como embustes, incluindo toda a obra de Chico Xavier, “e não colocam nada no lugar”. Entretanto, cabe a pergunta: por que deveriam colocar “algo” no lugar? Se acham que é um embuste, por que razão deveriam colocar alguma coisa no lugar de erros, fantasias e até fraudes? Como provocação: “eles criticam ferozmente a TerraPlana mas não colocam nada no lugar”. Ora, colocam sim: o Globo terrestre, assim como as pessoas que combatem a mediunidade de Chico Xavier dizem que os seus livros são obra dele mesmo, e que os espíritos que assinam suas obras são seus tímidos alteregos.

Para outros “A ciência dentro do espiritismo tem um propósito final claro, que é a transformação moral das pessoas”. Sério? Por que deveria ser assim? Desde quando a ciência tem um “objetivo”? Por que deveríamos colocar na pesquisa da sobrevivência da alma um objetivo último de caráter moral? Imagine alguém afirmar que: “a lei de gravitação de Newton tem como finalidade última o aprimoramento moral dos indivíduos e uma vida centrada na caridade”. Não soaria ridículo? Pois assim é… e na minha perspectiva a vida após a morte não é uma pesquisa que objetiva mudar a moral de qualquer um!!!

Para mim, por exemplo, a pesquisa no espiritismo serviria tão somente para mudar a nossa percepção de realidade, acrescentando uma nova dimensão para entender o significado último da vida – caso ele exista – e que não precisa ser utilizada de forma moralizante. Por acaso as descobertas de Darwin serviriam a algum propósito nobre, como “melhorar o mundo”, ou “transformar moralmente” a humanidade? E Freud? E Oppenheimer? Estavam em busca da “bondade” ou da suprema “fraternidade”? Por que achamos que o objetivo precisa ser melhorar ou fazer evoluir a humanidade? Por que não poderia o espiritismo ser um ramo da ciência que procura desvendar este mistério, sem compromissos de caráter religioso, moral, ético, etc.?

Comparo o desbravamento da vida após a morte com a conquista espacial, ou a travessia do Atlântico pelas naus no fim da idade média. Por esta razão, “o conhecimento do outro mundo só se justifica pela utilidade em tornar alguém melhor” não faz sentido algum para mim. No meu entender a descoberta da América, da rota das Índias, ou da vida em Marte não é para trazer a transformação moral da humanidade, sequer para transformar o caráter dos sujeitos humanos, mas tão somente para alastrar o conhecimento humano sobre um campo até então obscuro e misterioso.

Para finalizar, combater os aspectos religiosos do espiritismo é um objetivo nobre. Alguns podem não concordar, mas isso não retira desse específico viés a sua importância. Nada há de necessariamente raivoso nisso. Essa visão teria a mesma função que o combate à politicagem contida nas decisões de juízes, ou à contaminação de ideologias sectárias em organizações que se propõem universalistas. Não se trata, portanto, de “combater por combater”, mas por entender que os aspectos religiosos e místicos contidos no espiritismo são elementos artificiais, enxertados na prática espírita, não contidos na proposta original da doutrina e que não estão em sintonia com a perspectiva laica que Kardec sempre tentou oferecer à doutrina dos espíritos. Claro que pode existir raiva e outros sentimentos menores na iconoclastia de figuras espíritas, mas esta busca, por si só, não pode ser penalizada.

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Caritas

Tenho uma clara discordância com a famosa frase de Alan Kardec sobre a “salvação” através da caridade. Por certo que posso entender a importância da empatia e a necessidade de auxiliar os pobres, mas vejo nessa prática a manutenção de erros na política de distribuição das riquezas produzidas pelon ser humano. Em verdade, penso exatamente o contrário: a prática da caridade – mesmo que meritória – sinaliza degeneração social. Minha versão é esta:

“Enquanto houver caridade, não haverá salvação.”

A caridade é o subproduto da perversidade social. A caridade é a face sorridente da iniquidade e da injustiça social. A caridade é a estratégia que os ricos usam para aplacar suas culpas. O “caridoso” e o filantropo são, via de regra, sujeitos culposos que acumularam riqueza através da exploração do trabalho alheio. A caridade é sempre vexatória e humilhante para quem a recebe. Ninguém deveria receber pela caridade o que deveria ser o justo pagamento pelo seu trabalho. E mais: a caridade floresce onde existe miséria, escassez e concentração obscena de riquezas. A caridade, desta forma, é a medida mais adequada para o fracasso civilizatório.

Não estou me referindo, por certo, à caridade que pode ser traduzida por amor ao próximo ou fraternidade (de frater, irmãos, portanto iguais). A caridade que me refiro – e o cristianismo também – é aquela que nos estimula a oferecer o que se tem aos necessitados. Essa é, sem dúvida, um sinal inequívoco de injustiça social. Ao invés de construir uma sociedade com equilíbrio, onde inexista a disparidade obscena de riquezas e poder, estimulamos àqueles privilegiados a doar algumas migalhas de suas fortunas – normalmente conquistadas pelo trabalho árduo dos outros, muitos deles os próprios pobres a quem ajudam.

A caridade cristã é “…é difundida como um dever cristão, uma ação que se expressa na experiência da solidariedade em relação ao outro que se encontra em situação que lhe impossibilita garantir sua condição mínima de sobrevivência”. Segundo a igreja católica, a caridade pode ser entendida como:

1) Dar de comer a quem tem fome;
2) Dar de beber a quem tem sede;
3) Vestir os nus;
4) Dar pousada aos peregrinos;
5) Visitar os enfermos;
6) Visitar os presos;
7) Enterrar os mortos.

Nada disso seria necessário em uma sociedade justa. Essa caridade apenas existe pela nossa ganância e pela incapacidade de elaborar uma estrutura social em que ela seja dispensável.

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Espiritismo e Cristianismo

Cristo não criou uma religião, muito menos Leon Tolstói ou Maradona, mas três igrejas se ergueram em seus nomes. Religião é o que os outros fazem do pensamento e das obras de alguém. O mesmo aconteceu com o pensador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, também conhecido como Allan Kardec. Na minha perspectiva – e na de Kardec, que explicitamente negava que o espiritismo fosse uma religião – uma religião é uma ideologia que nos aparta das demais. Por isso se usa a palavra “seita”, um termo que deriva do latim “secta” cujo significado é “seguidor”. O termo é utilizado para designar um grupo numeroso de uma determinada corrente religiosa, filosófica ou política que se destaca da doutrina principal. Sectário é um termo que designa o indivíduo que faz parte de uma seita. Uma seita pode também ser considerada uma “divisão”, “partido” ou “facção”.

Kardec não desejava nada disso. Ele era um homem de ciências e queria demonstrar a sobrevivência do princípio espiritual, a comunicabilidade entre os planos, a evolução e a reencarnação como sistemas pedagógicos espirituais. Em verdade, o espiritismo é apenas isso e Kardec tão somente desejava que o espiritismo fosse um suporte para todas as religiões. Na sua visão seria absolutamente razoável a existência de um católico espírita, um budista espírita, um muçulmano espírita e até um ateu espírita – se for possível negar a existência de Deus mas aceitar as outras leis naturais que o espiritismo defende.

Tornar-se uma religião formal foi, entretanto, algo inevitável para o espiritismo. Não haveria como o espiritismo nascente no Brasil – a grande nação espírita do mundo – não estabelecer um sincretismo com o cristianismo do país. De certa forma quando Kardec (ele mesmo um católico) escreveu o “Evangelho segundo o Espiritismo” criou uma conexão indissolúvel com a religião e suas inevitáveis pregações morais. Nem Kardec conseguiu evitar isso, mas em um mundo ideal, o espiritismo poderia ficar alheio às questões morais. Isso jamais ocorreu, e as palavras de um espírita são facilmente confundidas com qualquer cristão deste país. O espiritismo se tornou uma seita cristã reencarnacionista com os mesmos vícios moralizantes das outras religiões ligadas à figura de Cristo.

Para mim esta ligação com a “moral” e com o cristianismo aprisiona o espiritismo. Seria muito mais interessante que fosse livre, laico, despregado do catecismo carola das religiões. Sendo uma filosofia e uma ciência sem vinculação com preceitos morais ele estaria muito mais próximo de atingir seus altos objetivos. Porém…. admito que minha posição é contra hegemônica e pouco popular. Existe muita cristolatria no espiritismo, e uma necessidade de criar normas para regular o comportamento das massas. Como toda religião o faz.

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Dalai

Não vi e nem quero ver o vídeo do Dalai, mas vamos combinar que, a despeito do que ocorreu, esse é um personagem que foi exaltado pelos Estados Unidos como parte de uma propaganda anti-China. Não há – e nunca houve – nada de muito especial neste personagem. Quase tudo o que se diz sobre ele faz parte de uma narrativa construída para tratar os chineses como vilões e o pobre Dalai como uma vítima dos malvadões comunas.

“O XIV Dalai Lama é um anticomunista ferrenho que herdou o trono do território do Tibet e criou a resistência pró-imperialista a partir do Chushi Gangdruk, uma milícia guerrilheira apoiada pelo governo fantoche chinês de Chiang Kai Chek e o partido vassalo Kuomintang (partidos que se refugiaram na ilha de Taiwan). O “pacifista” Dalai Lama, com apoio do Presidente dos Estados Unidos Dwight D. Eisenhower (e com uso da CIA), forneceu armas, munições e treinou Gang Chushidruk, a fim de fortalecer a guerra por procuração contra Mao Tsé Tung. Além dessa milícia pró-ocidental, a CIA apoiou outros grupos de guerrilha no local”. (Via DCO)

Apesar de ele ser o líder no exílio de uma teocracia violenta, medieval e criminosa no Tibet, o Dalai foi tratado pelo ocidente como se fosse um homem de rara sabedoria e elevação espiritual. Nunca produziu nada além de conselhos vagos sobre “amor” e justiça social – algo que não havia no feudo que comandava na Ásia. Talvez se a Rússia tivesse agido na operação especial contra seu vizinho nazista da mesma forma como os cães raivosos americanos atuaram em suas invasões – usado a estratégia “shock and awe” – para expulsar Zelenski da Ucrânia, hoje o comediante estaria nos Estados Unidos sendo celebrado e tratado a pão de ló como um “guru ucraniano no exílio”, falando trivialidades e escrevendo livros de autoajuda (talvez usando um ghost writer para isso), dando especial enfoque à paz, à liberdade e à “autonomia dos povos”.

Se você acha a comparação “forçada”, pense em como Adolf, Tio Joe, Sadam Hussein, Osama Bin Laden e tantos outros foram tratados como heróis por um tempo, e depois como vilões terríveis pelo Império, dependendo se agradavam ou não os interesses imperialistas.

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Crenças e Materialismo

Richard Dawkins se notabilizou no ataque às religiões contemporâneas, em especial o neopentecostalismo capitalista predatório surgido nos Estados Unidos e exportado para o Brasil e o mundo. Entretanto, seu ataque às denominações religiosas acabou extrapolando, sendo usado para desacreditar o pensamento religioso e às próprias tradições, acreditando que as normativas dos livros “sagrados” induzem ao anticientificismo e mesmo às guerras, num suco de idealismo que agride frontalmente a ciência social e o materialismo dialético. Importante notar que nos mesmos textos que estimulam o ser humano ao conflito e à intolerância nas páginas do Corão ou da Bíblia existem passagens que estimulam a paz e a tolerância. Estes livros foram escritos de forma a ser possível colocar qualquer interesse humano em suas linhas e retirar de volta a concordância. Desta forma, é fácil entender que não são as religiões que induzem aos conflitos, mas a fome, os embates geopolíticos, a ganância ou o expansionismo, necessidades humanas que usam as religiões como “cola” para agrupar prosélitos em nome das distintas identidades.

Acreditar na capacidade de que ideias religiosas, por mais violentas que sejam (e todas são), possam fazer a humanidade se atirar às guerras é puro idealismo. Vou mais longe: nunca houve, na história da humanidade, uma única guerra iniciada ou determinada exclusivamente por crenças religiosas. Basta ver os milênios de pacífica convivência entre judeus e muçulmanos no oriente médio que só acabaram quando interesses nacionalistas sectários atingiram a região através da invasão sionista. As guerras, todas elas, são motivadas por fatores materiais (recursos, água, comida, controle da terra, mulheres, etc). Não há como um conjunto de ideias mobilizar agressões desse tipo. O que existe é o uso da religião (ou cor da pele, crenças, origem, entre outras) para justificar e agregar combatentes para uma guerra cujos interesses são materiais. Todavia, para quem olha com olhos desavisados, esta adesão nos ilude de que elas são a motivação primordial.

Tomemos as Cruzadas como exemplo que se caracterizaram por grandes massas de europeus cruzando a Europa ajudando a disseminar a peste negra para atacar Jerusalém, cometendo as mais inimagináveis atrocidades na terra de Cristo, com o intuito de libertá-la dos mouros – e tomando uma surra do curdo Salatino, entre outros. Porém, quando vamos analisar a história de forma pormenorizada, não foram em nome de Cristo que tantos cristãos se aventuraram ao oriente, mas para dar conta de interesses geopolíticos claros, onde a religião foi apenas usada para justificar uma guerra estúpida motivada por controle territorial. Para os comerciantes, as Cruzadas eram importantes para encurtar as distâncias entre o Oriente do Ocidente e, assim, aumentar as atividades de comércio de especiarias, principalmente para as cidades portuárias de Gênova e Veneza, no que hoje conhecemos como Itália. Após muitos séculos, o Mar Mediterrâneo passou a ser utilizado como importante veículo de intercâmbio de pessoas e de mercadorias. Ao longo das nove Cruzadas, os objetivos foram se tornando cada vez mais claros, deixando de usar a máscara religiosa e explicitando suas reais motivações comerciais. As conquistas cristãs no Oriente provocaram, além disso, disputas entre os cruzados pelos seus domínios.

Podemos analisar também algo bem mais recente, como a guerra entre protestantes e católicos na Irlanda, que foi assim chamada para esconder que se tratava de um conflito cujo objetivo era libertar a Irlanda (católica) do jugo dos ingleses (protestantes). Sempre foi uma guerra de independência tratada como uma luta religiosa para esconder o evidente colonialismo explorador britânico.

Religião não é um lugar de onde tiramos determinações divinas, mas onde colocamos interesses absolutamente humanos e materiais. Quem entende isso começa a olhar as religiões de forma distinta e mais elevada. As religiões são buscas humanas para o enfrentamento do desconhecido, algo tão natural quando olhar para o firmamento e elaborar teses sobre as estrelas. As crenças humanas – em especial a crença em Deus – são emoções e, portanto, não são passíveis de qualquer análise racional. “Acredito porque sinto; já eu, não creio porque não sinto”. Basicamente as religiões são a linguagem que usamos para expressar estas crenças ou, se quiserem, nossa fé. “A religião é o poço, a fé a água na profundidade”, como dizia Reza Aslan. Religiões são instrumentos para aplacarmos nossa sede. As ideias religiosas, por mais potentes que sejam, são incapazes para mobilizar guerras, mortes e conflitos; a materialidade de nossas necessidades e desejos humanos é quem está à frente dessas iniciativas.

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Religião e paz

Religião não tem nada a ver com guerras ou pacifismo. Aliás, a imagem acima, com cavaleiros Cruzados em batalha, pode dar a falsa ideia de que esta foi uma guerra “religiosa”, de cristãos contra o islã, algo tão errado quanto a luta de “católicos contra protestantes”, na Irlanda, algo que era ensinado quando eu estava na Escola – uma forma imperialista de descrever o conflito. As religiões não produzem guerras – nem paz. Ninguém mata pelo Deus do outro ou pela forma de fazer pão. O que nos leva à guerra são interesses materiais bem mais palpáveis.

Como diria Marx, “a história do mundo é a história das lutas de classe”. Pegue qualquer guerra, em qualquer período da humanidade e verá que em todas elas vamos encontrar interesses econômicos e geopolíticos determinantes, e não disputas ideológicas ou de caráter religioso. As religiões, entretanto, são usadas como “cola”, uma forma de seduzir o povo para o esforço de guerra, clamando por uma identidade ou pela defesa de valores culturais que estariam sendo “ameaçados”, questões estas que são absolutamente desprezíveis para aqueles no poder e que estão interessados economicamente no conflito.

Portanto, se você acha que as religiões produzem guerras, então foi reprovado em suas disciplinas de história

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