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Aula de democracia liberal

Em 1982 houve eleições diretas para os governos dos Estados na primeira eleição após a abertura democrática “ampla, geral e irrestrita”. Naquele tempo eu era um garoto, estudante de Medicina e recém-pai. Entusiasmado com o retorno das eleições majoritárias, fiz campanha para o candidato do MDB ao governo gaúcho, o caxiense Pedro Simon, que disputava contra o candidato da direita, o dentista Jair Soares, do PDS (ex-Arena), ligado à ditadura decadente, ao agronegócio, ao latifúndio e às forças conservadoras. Pedro Simon havia sido um importante parlamentar, seguidor de Brizola, mas que abandonou a radicalidade das propostas que o líder da Legalidade abraçara. Posteriormente, foi senador da República por vários mandatos. Naquele ano distante, fiz vigília pela vitória da oposição e distribuí panfletos para ajudar na campanha de Pedro Simon. Esta foi uma eleição curiosa, pois os quatro candidatos acabaram se tornando governadores em anos futuros. Além de Pedro Simon e Jair Soares, concorreram Alceu Collares pelo PDT e Olívio Dutra pelo recém-criado PT. Por certo que naquele momento eu não pude votar em Olívio, pois era importante fazer “voto útil”, até porque a votação era em turno único.

Não deu. Ganhou o candidato conservador, o que me deixou, na época, espantado. Depois de quase 20 anos sem eleições livres, eu achava que nosso estado daria uma resposta firme e decisiva ao arbítrio e à ditadura corrupta que tivemos. Não mesmo; os gaúchos votaram no conservadorismo, nas forças reacionárias do Estado e por isso não me espanto com a opção bolsonarista desse estado nos últimos anos. Temos uma burguesia atrasada, agrária, latifundiária e profundamente conservadora, em especial no interior. O povo gaúcho resolveu apostar no candidato que falava o idioma do conservadorismo e das tradições, da família e da propriedade.

Nas eleições seguintes, quatro anos após esta decepção, finalmente Pedro Simon acabou chegando ao Palácio Piratini, sendo eleito governador do0 Rio Grande do Sul, e esta foi uma das maiores lições que tive na política. Trazia consigo a esperança de renovação, do fortalecimento dos trabalhadores, em especial para a classe do magistério, historicamente sufocada pelos governos estaduais. Quando no poder, Pedro Simon passou por uma grande greve dos professores, e sua atuação em nada foi diferente daquela de seus antecessores, mesmo os governos militares. Polícia na rua, cavalaria dispersando professores, cassetete em estudantes e atitudes de força e violência contra a população. Também teve um governo medíocre em todos os sentidos. Ou seja, aquele a quem eu dediquei meu esforço pela eleição alguns anos antes teve a mesma mentalidade e práxis política do seu “adversário”. A lição que ficou foi a de que as diferenças eram falsas, meras aparências, miragens criadas para nos confundir. Jair e Pedro eram frutos da mesma árvore, que apenas vicejaram em galhos distintos, dando a falsa impressão de que eram produtos diferentes. O mesmo acontece hoje, em várias partes do mundo, inclusive aqui no Brasil. Onde vemos disputas ferozes existem, em verdade, brigas de ego que apenas escondem uma visão de sociedade praticamente idêntica. Nos Estados Unidos não existem partidos distintos, e as diferenças são devidas muito mais à maquiagem do que à essência. O imperialismo tem um partido único, que independe das eleições. No Brasil, todos os presidentes são gerentes da massa falida do capitalismo periférico. Mesmo Lula não pode ser muito diferente dos seus adversários, pois que todos são controlados pelas forças conservadoras que mandam na imprensa burguesa, no congresso e no judiciário. Para romper esse ciclo vicioso só mediante uma revolução que garanta ao povo o real controle da nação.

No ocaso de sua vida, Pedro Simon foi um grande incentivador da Lava Jato e da prisão ilegal de Lula. Antes disso, foi entusiasta do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Em uma famosa manifestação em 2015 falou que a operação capitaneada por Moro e Dalanhol era um marco para a lisura política no Brasil, que a prisão de Lula era uma grande vitória da justiça e que Lula “não seria mais nada“. Também não se furtou de chamar Lula de “ladrão”. Algum tempo depois abriu seu voto para Bolsonaro e Onyx Lorenzoni, de forma entusiasmada, para derrotar o PT e a esquerda. É incrivel pensar que Pedro Simon, na minha juventude, foi o candidato das forças de esquerda, e aqui está a grande lição: nunca foi de esquerda, e nem próximo disso; o fato de se contrapor a outro político de extrema-direita não o tornava um progressista, mas isso nos enganou a ponto de apoiá-lo. Pedro Simon me ludibriou, mas não por culpa exclusiva dele, e sim pela minha (nossa) ingenuidade em acreditar em suas palavras, suas promessas e seu discurso. Ele era um emissário da direita, conservador e com simpatias pelo extremismo reacionário que o Brasil adotou como um claro sintoma da crise do capitalismo.

Hoje Pedro Simon completa 95 anos. Que tenha ainda muito tempo de vida, o suficiente para refletir sobre sua postura política. 

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Rock and Roll

Aprendam uma lição de uma vez por todas, seguidores do Mito: “Se o proletário tudo produz a ele tudo pertence”. Todo sujeito que tenta desfazer as conquistas do socialismo dizendo “você é um socialista de iPhone” demonstra de forma cabal que não estudou nada na vida, em especial sobre o marxismo. Quem confunde socialismo com voto de pobreza não entendeu coisa alguma do que sejam os pontos fundamentais do marxismo. Quem é pobre por escolha é franciscano, não comunista. O comunismo defende iPhone, carros, joias e luxo para todos enquanto os baba-ovos de ricos defendem que só os vagabundos que não trabalham e ganham dinheiro através de roubo e herança tenham acesso à riqueza. Entretanto, os burgueses ricos sabem que para que 1% dos ricos continuem tendo acesso a 70% das riquezas de um país é necessário que tolos das camadas mais pobres os defendam. Essa é a função dos alienados, dos carentes de consciência de classe, por isso são chamados de pobres de direita e capitalistas sem capital.

Muitas vezes o sujeito é preto e pobre, mas defende os ricos que passam a mão na sua bunda. Esse é o melhor exemplo de sabujo que se pode ter: o explorado que apoia a própria exploração. Isso acontece muito no universo do Rock, mas comprova o que se diz há muito tempo: a prova inconteste da sua morte. Um lugar infestado de babacas de direita, pobres sem futuro, capitalistas sem capital e puxa sacos de milionários só pode ser encontrado em um movimento em estado terminal. Um lugar que se adaptou à sociedade capitalista decadente perdeu totalmente sua força e sua rebeldia. Nos grupos de roqueiros, além dos nazistas declarados, só vejo mortos vivos, tolos e cegos caminhando trôpegos pela rua, com suas camisas da seleção, exaltando torturadores, gritando “eu autorizo” e atacando a justiça social. Estes serão atropelados pela história e serão engolidos pelas grandes massas que exigirão uma sociedade mais justa.

O rock & roll é a face mais evidente de um fim de festa. É a imagem da morte de um modelo baseado na rebeldia e na contestação, mas que hoje desistiu da luta. Seus ídolos estão velhos, cansados ou mortos, e a nova geração aderiu ao comodismo do sucesso e do dinheiro. Hoje, sua imagem é de bolsominions fracassados e quarentões, de cabelos compridos, barrigas salientes, vestindo uma rebeldia tão falsa quando ridícula. Músicos de garagem que só tocam no fim de semana, se entopem de remédios, são brochas e batem na mulher, enquanto pegam travesti no sigilo e fazem coro com a massa de pobres de direita que gritam “Mito!!” pelas ruas de Copacabana.

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Evolução espiritual

“O objetivo do espiritismo é a reforma intima e a evolução dos espíritos?

Não é como vejo. O objetivo do espiritismo é exatamente comprovar a sobrevivência do princípio espiritual, a reencarnação e a lei de causa e efeito. A transformação moral do sujeito – se é que seja possível – é apenas uma consequência do tempo alargado, das múltiplas vivências, da multiplicidade das experiências terrenas e da convivência com o outro. O espiritismo não é (ou não deveria ser) uma doutrina moralista, que estimula as pessoas a fazer o “bem” e o “amor ao próximo”. Nada disso; o espiritismo é uma perspectiva de mundo e de universo que engloba as realidades do espírito; nada mais do que isso. É a compreensão do mundo a partir da imortalidade da alma, mas não tem como objetivo mudar o sujeito, transformar a sociedade, da mesma forma que Newton não criou a lei de gravitação para amarmos ao criador e sermos a ele obedientes. O espiritismo fala de leis naturais, não “leis de Deus”.

Essa transformação só pode ocorrer pela materialidade da vida, pelos choques, pelo contraditório e pela dor. O espiritismo, enquanto se aproxima da carolice religiosa cristã, se afasta de sua essência científica, filosófica e renovadora. Esse espiritismo católico que temos nas Casas Espíritas é apenas uma seita espiritualista que contém os mesmos vícios moralizantes e alienantes de todas as religiões tradicionais. Não é à toa que os espíritas em grande número aderiram ao conservadorismo e ao radicalismo fascista embrionário. Figuras como Divaldo aderiram aos crimes da LavaJato assim como Chico apoiou a ditadura militar, porque seu espiritismo é conservador. O espiritismo, se realmente tiver algo a dizer, será muito diferente do discurso religioso que temos no Brasil contemporâneo.

“Seriam as manifestações espirituais – leia-se mediunidade – casos de esquizofrenia, dissimulação ou falsidade ideológoca?”

Não creio ser essa uma perspectiva justa. Acredito na possibilidade de auto engano, sugestão, wishful thinking ou desejo mascarado de informação. “Safadeza” pode existir, mas jamais explicaria o fenômeno. Existe em pessoas como enganadores profissionais, prestidigitadores, mágicos, etc., mas não em número considerável para ser a razão principal. Psicose e esquizofrenia seriam explicação para um número limitado de casos, mesmo sendo importante levar essa possibilidade sempre em consideração.

A mediunidade pode ser um fenômeno muito interessante a ser estudado. Se aceitamos a possibilidade de manutenção de um princípio espiritual, poderia haver influência entre os planos? Seria possível estabelecer uma linha que parte da mera influência sutil e chega às manifestações mais explícitas? Negar estes fenômenos e tratá-los como falhas morais – tipo safadeza, bandidagem, engodo, dissimulação – não me parece a forma mais adequada de encarar relatos de fatos tão antigos quanto a própria história. Eu prefiro ter a mente aberta para a possibilidade de tais fatos serem verdadeiros e que descortinam uma realidade ainda desconhecida.

Pelo espírito Odracir

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Santa Ceia*

“Ahhh, eu a-do-rei da abertura das Olimpíadas, principalmente porque a extrema direita está furiosa!!”

Sério? Não podemos mais cometer o crime da ingenuidade. A extrema-direita do mundo inteiro está dando gargalhadas com a abertura das Olimpíadas. Claro, não todos, mas em especial aqueles da direita que são responsáveis pela manipulação dos fatos e pela propaganda dos valores conservadores (e aqui defino conservador como aquele que conserva a dor daqueles a quem oprime). Precisa ser muito tolo para não entender que este clamor identitário, e essa manifestação de “diversidade” são esforços gigantescos da direita e dos liberais para domesticar a esquerda, retirando dela qualquer característica de enfrentamento aos modelos econômicos vigentes. É preciso enganar essa franja imensa de “esquerdistas” que se dedicam a temas que não afetam a estrutura política e econômica das sociedades, mas que nos oferecem a ilusão da transgressão, do avanço e do progresso. Para essa direita, a esquerda ideal é aquela que perde tempo discutindo pronomes e “paradas gay”.

Ora, quanta ingenuidade. Aliás, o mesmo tipo de propaganda mentirosa que tentará identificar a feroz direitista Kamala Harris (casada com um ferrenho sionista) com a “esquerda”, apenas por ser mulher e não-branca. “Vamos entupi-los com discussões estéreis sobre “life style”, liberdade sexual, pronomes, releitura da história, derrubada de estátuas, orientação e identidade sexuais, e impedi-los de debater a obscenidade da distribuição de renda no planeta, a miséria crescente, a concentração indecente de riqueza, as guerras imperialistas, as 200 mil pessoas mortas em Gaza, a guerra absurda da OTAN na Ucrânia e o declínio político, moral e econômico do capitalismo“.

Um sujeito de direita minimamente inteligente, esperto e maquiavélico perceberá a genialidade da manobra diversionista do identitarismo, e o esforço que foi feito pela França para que esta fosse a questão debatida por todos, e não a decadência da antiga potência imperial e o fracasso do governo Macron. Este sujeito de direita com algum discernimento agora está rindo sozinho e pensando: “Conseguimos enganar todos esses tolos. Agora eles pensam que a verdadeira luta é por gays, travestis, transexuais e costumes em geral e deixarão de nos atacar por um bom tempo em nosso ponto fraco: a luta de classes. Vencemos, pelo menos por enquanto, até que a esquerda venha a acordar do seu delírio liberal. Mas, de minha parte, continuarei a fazer cara de bravo com a tal da “Santa Ceia” para que ninguém perceba o meu alívio!!” 

* Sim, a encenação da abertura das Olimpíadas Paris 2024 não se refere à Santa ceia, mas a “Festa dos Deuses”, de Jan Harmensz van Biljert, pintada no século XVII, por volta de 1635, e que está exposta no museu Magnin na cidade de Dijon. Não é Jesus Cristo quem está no centro da imagem (a moça gordinha), mas Apolo sendo coroado, e em primeiro plano está Dionísio, pintado de azul. Entretanto, para a análise acima isso não faz diferença alguma, pois o objetivo do artista foi chocar através da exposição da diversidade. O objetivo dessa análise é apontar que este tipo de narrativa interessa à direita, como manobra de diversionismo, para evitar que a esquerda se posicione de forma propositiva no combate ao capitalismo, origem primeira dos males da humanidade.

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Idealismo Espírita

Falar do espiritismo enquanto doutrina progressista e baseando-se em seus ensinamentos e sua perspectiva científica e adogmática é puro idealismo. Na materialidade, na concretude do real, o espiritismo se apresenta como uma seita cristã (e cristólatra), conservadora, à direita no espectro político e caracteristicamente moralista. O espiritismo não difere de forma consistente de outras expressões religiosas ocidentais no que se refere ao perfil dos seus prosélitos. É uma lástima, pois sua base ideológica prometia ser revolucionária.

No Brasil, justiça seja feita, só as religiões de matriz africana se aproximam discretamente da atenção ao povo preto, pobre e oprimido pelo capital, e ainda assim de forma muito sutil. O cristianismo brasileiro é, acima de tudo e em todas as suas expressões, muito mais ligado à Roma e ao Sinédrio do que ao povo chinelão que comia poeira e gafanhotos na Palestina.

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Kardec e o conservadorismo

Um pouco antes de desencarnar meu pai expressou uma evidente preocupação em relação ao futuro do espiritismo, projeto no qual militou durante toda sua vida. Depois de sua morte voltei a me ocupar das ideias espíritas, em especial os estudos sobre imortalidade da alma e sobre a reencarnação. Acabei encontrando no Facebook grupos de debates espíritas, do Brasil e do exterior. Percebi, então, que os fóruns espíritas estão lotados de reacionários.

Eu percebo isso há 40 anos, e basta olhar para o meu círculo de amigos da juventude espírita para constatar essa obviedade: quase todos são adultos de direita, a imensa maioria conservadores e moralistas e uma parcela menor – porém ativa – de reacionários e protofascistas. Muitos garotos maravilhosos da juventude espírita hoje estão nesse último grupo e desfilaram com a camisa da seleção fazendo coro aos gritos misóginos contra Dilma, aplaudindo os paladinos Moro e Dalanhol, e agora apoiando Bolsonaro e sua milícia.

Desta forma, o espiritismo, em que pese sua visão reencarnacionista e teoricamente progressista, em nada difere dos evangélicos, pentecostais, dos protestantes e dos católicos. São todos um grande grupo de conservadores cheios de culpa cristã, direitistas e muitos deles francamente alienados. O espiritismo jamais conseguiu produzir em seus seguidores uma mentalidade progressista, socialista, anticapitalista, mesmo quando as sociedades espirituais descritas em livros espíritas muito se assemelhassem a sociedades de caráter comunista – como Nosso Lar.

Entretanto, no meu modesto ver, o espiritismo se baseia em três premissas básicas e inalienáveis, sem as quais perde sua essência:

1- A existência de Deus
2- Pré-existência e sobrevivência da alma
3- Reencarnação.

É só isso, nada mais. O espiritismo não tem nada a dizer sobre modelos econômicos, sobre aborto, sobre feminismo, sobre ditaduras, sobre economia, sobre sexo, sobre casamento gay ou sobre quaisquer questões mundanas. O espiritismo pretende provar a existência de sentido universal (Deus), que a alma é imortal, que precede a vida e se mantém depois dela. Mais ainda, que a reencarnação é um método pedagógico de crescimento intelectual de um espírito entendido como imortal. Nada além disso.

Os postulados espíritas apenas muito indiretamente influenciam a “moral”, e eles seriam apenas acessórios de uma solução que pode ser buscada mais facilmente nesse mundo, sem precisar de recursos transcendentais.

Sim, a sobrevivência da alma nos deveria fazer abandonar as posturas punitivistas por entender que não existem espíritos cujos erros seriam imperdoáveis. No grande cenário, ninguém está livre de cometer crimes terríveis. Dou mais um exemplo: a ideia das múltiplas encarnações em gêneros diferentes poderia nos oferecer uma complacência maior com as opções de orientação e identidade sexuais. Todavia, os espíritas conservadores usam o argumento de que a orientação “desviante da norma” e a identidade “diversa da biologia” são provas e expiações que o espírito deve enfrentar para “vencer as provações”, suplantando suas “más inclinações”. Acreditem, escutei muito isso em casas espíritas, onde a “sublimação do pecado” era a tônica.

Desta forma, até a perspectiva progressista evidente dos gêneros vicariantes sucumbe diante do moralismo conservador e cafona inexorável do espiritismo cristão.

A ideia de Deus no espiritismo está expressa nos escritos de Kardec, e recebe do professor Hippolyte a questão primeira do “Livro dos Espíritos”, obra principal que funda o espiritismo. Todavia, seria lícito imaginar um espiritismo fiel à ideia de sobrevivência da alma e da reencarnação – entendidas como leis naturais, como a lei da gravidade e a reprodução – mas que fosse independente da ideia de um Criador?

Eu acho que sim, mas creio que isso produziria um conflito lógico complexo ao se perguntar “Ok, mas para quê? Por qual razão manter o espírito imortal? Por que voltar a nascer? Qual o sentido último da reencarnação se não houver um objetivo, qual seja, a depuração de nossas falhas?” Desta forma, para que a reencarnação e a imortalidade da alma fizessem sentido, seria fundamental dotá-las de propósito e direção, que a ideia de uma “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” é capaz de oferecer.

O resto que vemos do espiritismo contemporâneo emerge da impregnação religiosa que nos foi deixada como legado pelo sincretismo, o que tornou o espiritismo (lamentavelmente) uma seita cristã, repleta de códigos de condutas morais e cheio de culpas e remorsos – como de resto todo o cristianismo. Por isso a obra de Chico Xavier é cheia dessas referências moralistas – em especial quanto à expressão da sexualidade – e hoje profundamente defasada. Também por essa razão as casas espiritas são tão marcadamente conservadoras.

Todavia, esse torniquete comportamental não é a função do espiritismo, que deveria ser tão somente uma ciência e uma filosofia que considera a experiência material que vivemos como uma das muitas etapas de transformação do sujeito espiritual.

Por isso eu me incomodo há tantos anos com o conservadorismo e o moralismo dos espíritas, em especial porque os palestrantes e figuras exponenciais adoram ditar regra sobre a moral alheia, em especial a sexualidade. Infelizmente o espiritismo teve em seu criador (sem essa de “codificador”) um católico austero e severo do século XIX, que impregnou de cristianismo seu trabalho. Essa opção por Jesus, ao mesmo tempo que disseminou sua obra na carona das palavras do Cristo, hoje cobra um alto pedágio, pois o espiritismo estaria muito melhor enquanto ciência e filosofia sem a presença incomoda da cristolatria.

Já escrevi muito sobre o conservadorismo das personalidades espíritas – do Chico Xavier apoiador da ditadura ao Divaldo Franco que exaltou publicamente a “República de Curitiba” et caterva – mas acredito que esse é um traço dos espíritas (pelo viés da religião e da moral cristã) e não do espiritismo enquanto doutrina. Este, na minha modesta visão, não deve se ocupar das coisas da Terra, seus costumes e suas regras. O verdadeiro espírita se preocupa apenas com a tríade de sustentação da doutrina: Deus, imortalidade da alma e reencarnação. O resto é debate mundano; fundamental, por certo, mas que cabe aos encarnados resolverem, e não aos espíritos.

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Armas, Guerra, Germes e Soros

Eu participava de um grupo relacionado à minha área há muitos anos de forma bastante intensa, até o dia em que o nome de George Soros e sua “Open Society” – ou Sociedade Aberta, nome derivado de um livro do filósofo conservador Karl Popper – entrou em debate pelos colegas. A questão se relacionava à participação do grupo em uma licitação para receber um “grant”- um financiamento – da Open Society para dar conta de projetos ligados à Humanização do Nascimento. Minha postura, como seria de se esperar, foi evidentemente contrária à qualquer ligação da nossa instituição com George Soros. Argumentei que este cidadão era um representante do “capitalismo sem fronteiras”, e um conhecido financiador de rebeliões neoliberais, o que faz das suas doações a grupos identitários uma perfeita cortina de fumaça objetivando encobrir suas ações de reforço ao neoliberalismo transnacional e sem barreiras, modelo que tanto admira.

Imediatamente as pessoas do grupo se colocaram contra minha posição, tratando-a como radical e baseada apenas em preconceito. Afinal o senso comum o trata como um homem progressista, defensor da democracia liberal e da diversidade, dos trans, negros, gays, mulheres, etc. Que mal poderia haver em um bilionário de bom coração, interessado em distribuir o que ganhou para causas que reconhece válidas e importantes?

Por certo que estas ações mudaram a vida de algumas – ou muitas – pessoas, mas nada produzem de diferença na estrutura social, que se mantém intocada, permanecendo injusta, desequilibrada e perversa. A ação desses bilionários da “caridade identitária” é exatamente essa: fomentar a divisão da sociedade por identidades e separá-la em guetos distribuídos por etnia, orientação ou identidade sexual, gênero, etc. Muda-se a vida de poucos para que a estrutura que comanda a todos não se altere.

É exatamente esse tipo de perspectiva política o que faz com que um negro pobre e miserável perceba como inimigo um branco igualmente pobre, desviando a atenção do fato cristalino de que ambos são vítimas de um modelo social injusto e excludente que produz uma enorme massa de pobres (de todas as cores, gêneros e orientações sexuais) que é explorada por uma elite invisível de bilionários – como George Soros.

Não há como confiar num sujeito cuja riqueza depende da nossa miséria.

Minha posição firme, baseada na minha perspectiva marxista e anti imperialista, foi rechaçada violentamente pelo coordenador do grupo, sendo que até as referências que usei para sustentar minha tese (uma entrevista golpista de Soros se opondo à eleição de Lula em 2002 na Folha de SP) foram desconsideradas e tratadas como “fake news”.

O resultado foi o meu cancelamento sumário e a minha posterior saída do grupo. Não havia maturidade para um debate mais profundo sobre as raízes de nossa dependência e as armadilhas criadas pelo imperialismo para sequestrar nosso ativismo. Ok, vida que segue. Todavia, minha saída tem uma interpretação que pode ser bastante pedagógica.

O objetivo desses institutos internacionais neoliberais (Soros, Gates, Koch, etc.) é a divisão da sociedade em elementos artificiais (criados pela própria sociedade para a divisão do trabalho) como etnia, orientação sexual, gênero, etc., fazendo-nos esquecer elementos muito mais gritantes como as classes sociais que nos dividem pelo capitalismo. Portanto, servem para nos separar, pois unidos em torno das reivindicações de classe somos mais fortes e mais vigorosos no combate à iniquidade social.

Pois a divisão causada nesse grupo pela figura sinistra do bilionário Soros cumpriu exatamente essa função. Separou e desuniu e nos fez esquecer o que nos unia exaltando a artificialidade – a defesa da benemerência colorida – que nos diferenciava. Tristemente didático. Fez lembrar um filme “Proposta Indecente”, com Robert Redford. Na trama, a história de um dinheiro oferecido cuja ideia dissimulada e perversa era separar e desunir, desviando o olhar do fato de que havia amor para além das posses.

Agora ficamos chocados com as informações trazidas a nós através do Ministério de Defesa da Rússia de que várias entidades ucranianas, georgianas e estadunidenses estariam se preparando para a produção de armas químicas. Particularmente, segundo esta fonte militar, o funcionamento destas instalações estaria sendo financiado e controlado por uma gama de organizações americanas, entre as quais o Fundo de Investimento Rosemond Seneca, dirigido por Hunter Biden, filho do presidente americano, e o fundo administrado por George Soros. A subsecretária de Estado americana, Vitória Nuland, reconheceu a existência desses laboratórios, assim como Avril Haines, diretora de inteligência Nacional dos Estados Unidos, que também declarou a existência destas instalações, porém, ambas negaram que em tais laboratórios houvesse a produção de armas químicas.

É importante entender que, quanto mais se investigam as ramificações de poder destes bilionários, mais aparecem seus tentáculos produzindo a exploração e a miséria de povos subjugados. O mesmo George Soros que controla a “Open Society” tem conexões com entidades fascistas ligadas ao golpismo na Ucrânia. Como pode haver ainda alguma dúvida de que sua presença no Brasil deveria ser rechaçada pelo conjunto das forças de esquerda ou por qualquer instituição que deseja ser livre das imposições do capital predatório internacional? Por que aceitamos que um candidato que se posiciona à esquerda do espectro político nacional esteja ligado a instituições golpistas como o NED, a CIA e o próprio Soros?

A atitude marxista mais justa e coerente será sempre lutar pela soberania dos povos e pela ruptura dos laços de subserviência ao imperialismo. Qualquer união com golpistas, por mais inocente que possa parecer, será um passo na direção oposta.

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Conservadorismo espírita

Pensa numa contradição….
Um cara escreve um texto denunciando a “geração cristal”, frágil e fraca, que não suporta contradições.
Você discorda,
Ele te bloqueia….

Mesmo sites espíritas que se dizem progressistas acabam escorregando para o conservadorismo, a essencialização dos gêneros a muitas vezes descambam para uma misoginia escancarada.

Acabei de ler um texto sobre a velha tese da “geração de cristal” que diz que os jovens de hoje não suportam críticas ou frustrações. Eu mesmo creio que existe verdade nesta perspectiva, e temos legiões de jovens “flocos de neve” cujos sentimentos ficam abalados por qualquer contradição. Entretanto o texto apelava para um saudosismo tosco quando afirma textualmente:

“A geração que nos ensinou a viver sem medo está morrendo
….as pessoas que ensinavam aos homens o valor de uma mulher
…. e às mulheres o respeito pelos homens.”

Quer dizer então que “antes sim os homens sabiam valorizar uma mulher”?

Sério? Há 100 anos quando elas não votavam? Há 43 anos quando não podiam se divorciar? Quando se matava em nome da honra? Quando não tinham liberdade sexual? Quando eram apêndices dos homens? Quando não podiam trabalhar? As mulheres não respeitavam os homens; tinham medo deles. E os homens – como regra – viam nas mulheres valores maternais, e quase nada mais.

Ora, quanta verve reacionária. Apesar do nosso atraso civilizatório não será no passado que vamos encontrar solução para os problemas de gênero. Achar que o “cavalheirismo” é a resposta é um brutal desrespeito com as lutas das mulheres. Acreditar que no passado havia respeito é ignorância. Achar possível um passo atrás é absurdo.

É triste ver posturas reacionárias dentro de um movimento que se propõe progressista, aberto e livre pensador.

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Espiritismo careta

Uma análise profunda da idolatria que se estimula no cenário espírita brasileiro é uma tarefa urgente a ser realizada pela Academia. Desde figuras populares como Zé Arigó, Chico Xavier até Divaldo Franco que percebemos um traço marcante no espiritismo cristólatra brasileiro: ele sempre foi pródigo na criação de “gurus”, líderes carismáticos que repetem discursos conservadores e moralistas. São comuns os textos carregados de uma visão superficial e maniqueísta da espiritualidade e da reencarnação, cheios de prescrições de evolução espiritual que criminalizam a luta política e a livre expressão da sexualidade, entendidas assim como “desvios obsessivos”. Em verdade, mais do que um achado ocasional, este é o padrão das publicações espíritas.

A adesão de Divaldo Franco – famoso tribuno espírita e médium – à barbárie jurídica lavajatista empresta um apoio fundamental aos tribunais de inquisição que se transformaram as côrtes de Curitiba, com o intuito de atingir a esquerda e os movimentos populares. Por outro lado, esta simpatia do líder espírita mostra a verdadeira face alienada e subserviente da baixa classe média ressentida que constitui seus seguidores.

O espiritismo institucional mais uma vez adere ao conservadorismo moral e político tacanho que sempre o caracterizou – basta lembrar as falas reacionárias de Chico Xavier sobre a ditadura militar de 64. Alia-se ao poder econômico, às elites, aos conservadores, ao judiciário partidário e aos golpes sucessivos à nossa democracia.

Corremos o risco de não ver no futuro nenhuma diferença significativa entre as monstruosidades de Malafaia, Edir e Feliciano e alguns líderes espíritas alinhados com o atraso, o preconceito e a mistificação. Aquela doutrina que, ao descortinar a reencarnação como processo de depuração espiritual, se apresentava como revolucionária e progressista, em verdade se mostra como mais uma seita cristã atrelada aos privilégios, ao moralismo, à tradição (escravista), à família (falocêntrica) e à propriedade (intocável).”

Que Deus tenha piedade de nossas religiões.

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Religião e conservadorismo

As mensagens de espíritas preocupados com a ascensão do fascismo e com a popularidade de um candidato* que elogia torturadores só fazem sentido porque historicamente a cúpula do espiritismo nacional é reacionária e autoritária. De Chico a Divaldo, passando pelos generais da FEB (Federação Espírita Brasileira), nunca tivemos um espiritismo brasileiro que não fosse próximo e admirador dos poderes instituídos – da ditadura à lamentável “República de Curitiba”. As demonstrações de afeto de Chico com a ditadura de 64 e de Divaldo com a turma de magistrados que golpearam a democracia estão acima de qualquer dúvida.

Com exceção das religiões de matriz africana – umbanda, candomblé, nação – as grandes religiões brasileiras são dos colonizadores: religiões brancas, de classe media, burguesas e conservadoras, incluindo-se aí o espiritismo. Nas três décadas em que circulei pelo universo dos espíritas brasileiros nada reconheci de diferente dos modelos de outras seitas cristãs. O mesmo moralismo, um machismo sutil, meritocracias, hierarquias, aristocracias, espíritos “do bem” – semelhantes aos “cidadãos de bem” deste plano – culto às personalidades, entidades das “trevas”, seres angelicais, uma crítica sistemática à livre expressão da sexualidade, um culto à “família patriarcal” e um número sem fim de informações subliminares que nos conduziam a reconhecer os “espíritos superiores” como a elite branca e aburguesada da nossa sociedade.

Para além disso convivi com o ufanismo infantil propagado entre os espíritas pela obra “Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho” (sobre ela escrevi aqui) que descrevia o nosso país de 60 mil homicídios por ano, assassinatos de transexuais, feminicídios e estupros incontáveis e a distribuição de renda mais perversa do hemisfério sul como “a nação escolhida por Jesus para carregar no coração sua mensagem de amor“.

As religiões são construções humanas e refletem seus valores e crenças. Uma “religião” como o espiritismo (que segundo o próprio Kardec não é, mas se expressa como se fosse), surgida no seio da classe média brasileira, obrigatoriamente viria a refletir sua visão de mundo e suas perspectivas. A umbanda, nascida do sincretismo entre o cristianismo e os ritos africanos, surgiu na marginalidade (à margem) da classe média do país, trazendo para o seu seio as populações pobres, negras, os homossexuais e os desvalidos. Se existem cultos no Brasil que têm a nossa cara e nosso jeito, sendo representante dos mais elementares valores populares, estes são os afro-brasileiros.

Inobstante a mensagem espírita pretender-se mais moderna e abrir espaço para a permeabilidade de seus postulados com a ciência, seu veículo – a classe média branca e urbana – acabou lhe conferindo um aspecto conservador e moralista que em nada se diferencia das seitas cristãs em nosso meio. Não é de surpreender, portanto, que meus amigos espíritas de ontem venham hoje a abraçar as bandeiras conservadoras, em um direitismo que se aproxima do antipetismo mais radical e onde suas ideias encontram eco nas palavras do inominável líder fascista.

A modernidade da “fé raciocinada” que Kardec propunha esbarrou na caretice de quem levou adiante suas propostas. Infelizmente, o espiritismo jamais conseguiu mudar a imagem conservadora e moralista do cristianismo tupiniquim.

* Esse texto foi escrito ainda quando Bolsonaro era candidato

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