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Inevitável

Nada se compara ao que Israel – o único Estado explicitamente racista do mundo – está fazendo com a população ocupada da Palestina desde o início de outubro. O exército mais covarde e imoral de todo o planeta está mostrando uma versão compactada de todas as crueldades que executou nos últimos 76 anos. Nada supera a narrativa genocida dos políticos de Israel, nem mesmo o que se escutou dos monstros nazi em meados do século passado.

Infelizmente, para eles, agora temosalternativas para uma livre circulação de informações, que antes eram filtradas por 4 ou 5 sistemas internacionais denotícias, dominados pelos interesses da burguesia. Pelo menos hoje, qualquer sujeito com um celular na mão é um jornalista, infinitamente mais honesto do que aqueles que trabalham para a imprensa do Brasil ou para a imprensa burguesa internacional. Por esta singela razão, está quase impossível manter por mais de 48 horas as mentiras que sobreviviam por décadas no passado não tão distante. Estivéssemos nos anos 60 e até agora a versão mentirosa dos “bebês sem cabeça“, o “ataque à Rave” ou os “estupros” de mulheres israelenses ainda seriam as versões oficiais, e a população de todo o planeta estaria repetindo de forma enfadonha a farsa montada por Israel.

Hoje já sabemos o quanto Israel é um país criado sobre uma montanha de corpos e páginas infinitas de mentiras, fraudes e manipulações. Essa fábrica de inverdades só pode se sustentar através da compra sistemática de políticos e da imprensa. Não fosse pelo jornalismo independente que apresenta um contraponto consistente e factual aos influenciadores sionistas – ou aqueles pagos por eles – e muitos ainda manteriam a tese de que o hospital de Shifa veio abaixo por “fogo amigo” palestino, tese que foi facilmente desmontada logo depois com a ajuda de especialistas do mundo todo. Cada dia é mais difícil sustentar a farsa de Israel. Nos anos 40 do século XX era possível mentir sobre “Um povo sem terra para uma terra sem povo“, mas hoje a pústula se rompeu e o que vemos escorrer são as falsidades, as mortes, os abusos e a corrupção de uma colônia branca europeia sobre a terra dos palestinos, acumulada em 76 anos de ocupação e arbítrio.

Boa parte da imprensa insiste em chamar o “Hamas” grupo “terrorista”, tentando forçar a narrativa de que a luta pela Palestina é a batalha da “luz contra as sombras“, como disse Bibi Netanyahu, mas é mais do que óbvio para qualquer um que repouse os olhos sobre a história da região que os invasores cruéis da Europa é que representam as trevas, e aqueles que lutam pela liberdade, a autonomia e a dignidade dos palestinos são os que levam a luz para a região. Também querem nos fazer acreditar que o problema é o “Hamas”, a resistência armada palestina, mas a verdade é que mesmo que fosse possível destruir todos os combatentes desse grupo e no dia seguinte outros tantos milhares se alistariam para a luta, porque eles representam a única chance de vida digna para a população de Gaza. Para cada combatente morto, dois mais se alistam para lutar pela liberdade.

O chanceler russo Lavrov declarou há alguns dias ser impossível pensar em paz sem a criação de um Estado Palestino soberano, livre, com defesa, com aeroporto, com moeda, com economia e com plena conexão com a Cisjordânia, mas é claro para qualquer observador que esta é uma solução necessária, porém paliativa. O mundo não pode aceitar mais o sionismo ou qualquer forma de organização social baseada no racismo e na exclusão. Mesmo um país só para judeus mantido ao lado da Palestina deveria ser objeto de boicote internacional, pois que este tipo de organização viola frontalmente todo o arcabouço jurídico e ético que sustenta a democracia.

A luta pela paz é uma tarefa de todos nós. Como dizia Nelson Mandela, “Sabemos muito bem que a nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”. É preciso aumentar o boicote à Israel, forçar os representantes diplomáticos a encerrar qualquer conexão com este país, determinar um “cerco” econômico ao racismo branco de Israel, reforçar o apoio à Palestina Livre e sair às ruas até que Israel recue em seus objetivos de genocídio e limpeza étnica. Desejamos um Estado Palestino único e democrático, que possa aceitar todas as crenças, todas as culturas e todas as raças sob a égide dos direitos humanos e da plena democracia.

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Imprensa e Guerra

Se é possível defender cinicamente a morte de crianças, velhos e mulheres e o bombardeio indiscriminado de zonas residenciais, de hospitais, de ambulâncias e de campos de refugiados, então é possível aceitar qualquer coisa em nome das ideias fascistas e supremacistas que comandam Israel. Se a imprensa contemporânea consegue justificar este tipo de barbárie fica fácil compreender como foi possível, há menos de 100 anos, encher vagões de trem com judeus, ciganos e comunistas e colocar em prática a “solução final” . Quando vejo jornalistas levando adiante a tese de que os “terroristas” (leia-se, a Resistência à ocupação bárbara, cruel e desumana) se escondem nos hospitais e, por isso, torna-se justo bombardeá-los, matando pacientes que lá procuram ajuda e funcionários que heroicamente se dedicam a ajudá-los, um pouco da minha fé na verdade se apaga.

Quando dizem que um telefonema com poucos minutos de antecedência por parte das autoridades militares israelenses avisando que um bairro inteiro virá abaixo é prova de “respeito à população civil”, isso me faz acreditar que a imprensa burguesa não tem pudor algum em contar qualquer mentira, torturando os fatos até que as ações mais desumanas e covardes pareçam justas. Quando o próprio governo sionista divulga mentiras como “corpos carbonizados” falsos, bebês decapitados inexistentes, estupros de mentira, fica claro que deixaram a verdade de lado há muito tempo, mas isso não significa que a imprensa deveria seguir suas falsidades. Mas como sempre, a imprensa vendida – verdadeiro lixo corporativo servindo aos interesses do imperialismo – não vai se desculpar e sequer se retratar pela torrente de imposturas que despejaram nas últimas semanas.

A verdade que resta de mais esse fiasco é de que as grandes corporações jornalísticas são a verdadeira e mais perigosa fonte de fake news. Torna-se impossível acreditar em qualquer relatório, qualquer acusação e todo tipo de comunicado; tudo que emerge das grandes empresas jornalísticas é falso, descontextualizado, inverídico, distorcido e não pode ser aceito como verdadeiro. Os crimes de Israel são tornados públicos apenas pela franja mais ética do jornalismo independente; já a imprensa corporativa – ou seja, aquela onde a notícia pode ser comprada – morreu.

Sim, nas guerras – e esta é a guerra do imperialismo contra o mundo inteiro – a primeira vítima é a verdade. Todavia, sabemos que estamos submetidos a um embate de narrativas conflitantes, onde de um lado temos um povo esmagado pela opressão que já soma mais de 7 décadas, e do outro uma potência nuclear, comandada por fascistas, levando a cabo um plano de genocídio e limpeza étnica de proporções ainda não vistas neste século e aliado a uma gigantesca máquina de informação e imprensa , a qual tenta nos convencer que o massacre de crianças, a destruição de um país, a expulsão de milhões de habitantes dos seus lares é algo justo, ético e certo. Para os sionistas a única saída permitida aos palestinos é desistir ou morrer, mas sabemos que este povo não vai desistir. A resistência popular no mundo inteiro está aumentando e, apesar dos grandes conglomerados imperialistas de comunicação, a guerra da opinião pública está sendo vencida pelos palestinos.

Fosse há 80 anos e esta mesma imprensa burguesa estaria defendendo as câmaras de gás; fosse há dois mil anos e estaria achando correta a crucificação de alguém por suas ideias de liberdade. Alguns de nós estariam aplaudindo a barbárie e a injustiça; muitos estariam convenientemente lavando as mãos. Entretanto, tão logo as contradições ficassem evidentes, outros entenderiam que a luta pela libertação de um povo demanda luta, resiliência e coragem. Esses, em qualquer momento da história, são os imprescindíveis.

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Westworld

Sigmund Freud em “Mal-Estar na Civilização” (1930) tratou da supressão das pulsões inerente à vida em sociedade, e o consequente desconforto que ela determina para nós. O psicanalista Contardo Calligaris em “Hello Brasil” mostra a diferença entre colonos e colonizadores, sendo estes últimos aqueles que empreendem uma aventura que objetiva “gozar sem interdição”. A busca do colonizador está centrada em gozar, extrair tudo que encontra na nova terra, sem limites, sem barreiras. Por isso, todos as invasões coloniais são marcadas pela brutalidade, a violência crua, a anulação do “outro”, a limpeza étnica e a perversidade sádica que, ao ignorar a existência do outro nega sua humanidade, sendo esse o elemento essencial e inescapável para todos os projetos colonialistas.

Hollywood criou este mundo futurista na premiada série “Westworld“, onde autômatos, construídos à semelhança indistinguível dos humanos, servem ao nosso gozo absoluto e livre, o que inclui sexo, morte, abuso e violência. Um lugar onde ricos e poderosos podem usufruir de todas as emoções humanas, pagando para isso uma módica quantia. Se a processo civilizatório produz esse mal-estar, porque não seria lícito criar uma sociedade paralela onde fosse possível driblar tantas e tão angustiantes proibições?

Hollywood criou este mundo futurista na premiada série “Westworld“, onde autômatos, construídos à semelhança indistinguível dos humanos, servem ao nosso gozo absoluto e livre, o que inclui sexo, morte, abuso e violência. Um lugar onde ricos e poderosos podem usufruir, pagando para isso uma módica quantia. Se a processo civilizatório produz esse mal-estar, porque não seria lícito criar uma sociedade paralela onde fosse possível driblar tantas e tão angustiantes proibições?

É chamativo o fato de que, enquanto a série se desenvolve, os robôs aos poucos vão adquirindo consciência de sua condição não-humana (desumana) e começam a se rebelar. Mesmo robôs, criados para a obediência e a servidão, com o tempo adquirem consciência de classe. Também faz parte do núcleo dramático da série a paixão que vai brotar entre uma bela mulher robô e um dos visitantes frequentes do “parque temático”. Por mais que esse sentimento fosse considerado absurdo, ou mesmo ridículo pelos consumidores do parque das emoções sem limite (afinal, trata-se de um mero objeto), ele se manteve por anos a fio. Assim, a trama também está centrada na possibilidade de surgir alteridade entre um opressor e o oprimido.

Qualquer semelhança com a desumanização a que os palestinos são submetidos, e as perversidades explícitas de Israel contra esse povo, não é uma mera coincidência. “Westworld-Israel” é um mundo artificial criado pelo ocidente para ser o lugar onde é permitido o racismo explícito, institucionalizado e sem amarras; um país “fake”, criado para os interesses ocidentais, onde palestinos – habitantes originários da região – são torturados, desprezados, confinados, enganados, expulsos de suas casas, assassinados e tratados como sub-cidadãos. E toda a barbárie lá é feita sem a vergonha e o incômodo que tais atitudes causam nas pessoas de fora. Neste mundo controlado pela ideologia racista do sionismo é possível chamar os palestinos de “animais” as crianças de “pequenas serpentes” e os soldados são autorizados a usar camisetas com desenhos de gestantes palestinas, onde se lê “One Shot Two Kills” (um tiro, duas mortes). Também é permitido aos seus habitantes cantar nas ruas e nos estádios de futebol que “não haverá aulas em Gaza porque suas crianças estarão mortas”

As regras com as quais os habitantes originais da Palestina são tratados tem sentido apenas dentro desse mundo à parte, como em Westworld, e por isso na série ninguém é preso por matar robôs – seres criados exatamente para isso – assim como um palestino pode ser morto apenas pelo crime de existir, enquanto dificilmente um terrorista israelense pagará por seus crimes – mesmo queimar bebês vivos. Também é possível matar quase 5.000 crianças em poucas semanas e isso não causar nenhum remorso; afinal como afirmava o Ministro da defesa de Israel Avigdor Liberman, “não há inocentes em Gaza“. Quem acreditou que nada poderia ser mais perturbador do que a distopia de Westworld, esta série de ficção científica criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy e produzida por J.J. Abrams, se enganou. Existe um país onde as perversidades humanas são permitidas e protegidas. Este lugar já existe, e fica na Palestina.

Westworld é Israel.

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Guerra e Opinião Pública

Nos últimos dias apareceram duas manobras da grande imprensa corporativa manobras claramente farsescas para tentar mudar a opinião pública sobre a guerra de Israel contra os palestina. A primeira foi uma operação da Polícia Federal contra supostos agentes do Hezbollah que estariam agindo no Brasil e planejando ataques “terroristas”. Imaginar que este partido libanês estaria desejando promover ataques contra um país que tem a maior colônia libanesa do mundo por si só não faz sentido. O caso fica ainda mais obscuro quando o Mossad – uma verdadeira organização terrorista de caráter internacional – diz que ajudou a polícia brasileira e aplaude a ação dos policiais brasileiros. Toda a acusação é muito frágil, sem evidências claras, e parece mesmo uma peça de publicidade para criar a narrativa batida de uma luta da “civilidade” ocidental contra o “fanatismo terrorista” do oriente. O outro caso foi a aparição de Bolsonaro com o embaixador de Israel no Brasil, tentando angariar frutos eleitorais para a direita brasileira ao vincular este encontro com uma possível liberação dos reféns brasileiros do sionismo israelense. Mais uma estratégia de propaganda descarada para que Israel fortaleça seus vínculos com a extrema direita fascista brasileira.

Talvez a pressa em mudar a narrativa se deva ao fato de que o mundo inteiro começa a mudar sua opinião e seu apoio à causa de Israel. Os ataques covardes, a morte de crianças, a destruição de hospitais, médico e ambulâncias mostram as verdadeiras intenções genocidas de Israel, mas a cortina de fumaça de imprensa ocidental – totalmente vendida para o imperialismo – começa a se dissipar pela avalanche de depoimentos e comprovações em contrário. Uma pesquisa nos Estados Unidos aponta que, no que concerne à posição de Biden sobre a guerra contra o povo Palestino, ele tem apenas 10% de aprovação no grupo de 18 a 35 anos. Ou seja, a juventude americana , aquela que vai morrer no caso de uma guerra aberta, é absolutamente contrária ao conflito. A imensa maioria do povo americano se opõe ao suporte americano para o estado terrorista de Israel. É notório que os impostos americanos financiam as bombas que matam crianças na Palestina, e isso começa a pesar na opinião pública americana. As últimas manifestações, ocorridas em diversas cidades americanas, deixam bem claro para que lado o povo americano está se dirigindo. A posição do sionismo e sua ação genocida na Palestina não consegue mais se sustentar, por mais que fortes poderes e quantidades imensas de dinheiro tenham comprado a mídia corporativa americana para favorecer o colonialismo racista de Israel.

Na verdade, se olharmos para o conjunto das nações do planeta, apenas Estados Unidos, seus vassalos europeus, Japão e Austrália apoiam Israel nesse enfrentamento. Por certo que nesse grupo há dinheiro e poder, mas o grosso da população está ao lado da Palestina. Se somarmos China, Índia, Bangladesh, Paquistão, Brasil, Indonésia, Nigéria temos apenas nesses 7 países quase a maioria absoluta da população mundial. A opinião pública do planeta, as marchas, os debates na Internet, a derrota da retórica sionista, as manifestações de chefes de governo, tudo isso está mudando a trajetória desse conflito. Isso fez com que a esperada “invasão de Gaza” não tenha ocorrido.

Além das questões relacionadas ao rechaço mundial à postura criminosa de Israel há outro fator importante sobre o fracasso (até agora) da invasão por terra. Os especialistas são claros: o exército de Israel é formado majoritariamente por um contingente não profissional, “garotos de apartamento”, sem preparo, sem condições físicas para suportar um combate em cada rua, cada viela, cada beco, no corpo-a-corpo, de forma desgastante (moral e fisicamente), com a morte espreitando em cada esquina e num terreno cheio de túneis que apenas os habitantes de Gaza dominam. Há o temor por parte dos sionistas de que Gaza possa se tornar o novo Vietnã, com baixas gigantescas de combatentes sionistas, um cemitério de jovens sionistas, o que dará ao imperialismo um novo fracasso retumbante, como o foram o Vietnã, a Síria e o Afeganistão.

As cartas estão na mesa. O sionismo está com seus dias contados, e seu fim será determinado pela comunidade internacional, a exemplo do que ocorreu com o Apartheid da África do Sul. Exatamente pela ação corajosa do Hamas, desafiando a arrogância militar de Israel, pela primeira vez em décadas existe uma uma luz no fim do túnel, e como todos sabemos, só quando Israel se sentir acuado poderemos ter uma real esperança de paz na região.

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Bye bye, Jesus

Em 1983 ocorreram os primeiros casos de AIDs no planeta. Havia um clima de terror biológico no mundo semelhante ao que ocorreu com a Covid há poucos meses. A tese que percorria o imaginário dos médicos e da população é de que a “peste gay” – ou seja, uma doença causada pela “opção” sexual desviante – extrapolaria as barreiras do mundo homossexual, passaria para os bissexuais e daí para todo o mundo heterossexual. Não esqueço de um episódio em que uma palestra foi dada por um dermatologista da cidade (os dermatologistas eram os mais próximos do estudo da síndrome por causa das manifestações de pele, como o sarcoma de Kaposi) onde o clima era um misto de curiosidade e pânico por parte dos estudantes de medicina. A palestra foi técnica, para mostrar o pouco que já se sabia a respeito da doença. Entretanto, havia um outro sentimento no ar: a ideia de que esta doença era causada por questões morais, falhas graves cometidas por humanos desviados das leis divinas.

No ano seguinte ocorreu um seminário sobre “sexualidade” patrocinado por uma entidade espírita da capital. Como eu havia participado da “juventude espírita”- em quase nada diferente de qualquer grupo de jovens que frequentam igrejas – e estava no penúltimo ano do curso de medicina, fui convidado a fazer uma palestra sobre “AIDs e a questão espiritual”.

Não lembro exatamente qual foi o teor da minha palestra, mas por certo que nela havia uma forte tendência a colocar muito mais peso nas questões ambientais, sociais, culturais e psíquicas do fenômeno do que no mero estudo de um vírus – cuja letalidade já era fortemente questionada por virologistas famosos, como Peter Duesberg. Eu acreditava que a destruição do sistema imunológico era produto de um estilo de vida que por si só era destrutivo, e o papel dos microrganismos não era o único responsável pela manifestação da enfermidade. De qualquer maneira, deixei claro que as mortes eram reais e os cuidados deveriam ser mandatórios, para que houvesse uma diminuição nos casos. AIDs tirava a vida de muitos jovens, era um assunto sério, mas evidentemente que havia se tornado uma questão relevante porque as vítimas eram jovens, brancos, de classe média e do ocidente, ao contrário do que ocorria com a tuberculose, que matava dez vezes mais, mas acontecia com populações de pele mais escura, pobres e miseráveis do terceiro mundo.

Sim, as pessoas não estavam preparadas para minha análise dos fatores sociais relacionados ao surgimento de doenças, e muito menos estavam interessadas em ouvir minhas críticas e questionamentos sobre a tecnocracia médica. Eles queriam saber da “vacina” (que jamais chegou, mesmo depois de 40 anos) e, mais do que isso, quais os significados morais dessa doença. Era mesmo um “castigo divino” diante da “libertinagem desvairada” do mundo contemporâneo”?

Pois eu frustrei a plateia (algo que me especializei em fazer) ao me negar a explorar esta perspectiva, e tudo o que eu fiz foi tentar des-moralizar os quadros de imunossupressão adquirida, tirando deles a imagem de “doença do pecado”. Tentei até mostrar que existem vários fatores produzem esse tipo de quadro, mas que havia um número crescente de casos associados com a aparição de um retrovírus específico, o HTLVIII. Minha breve explanação foi sobre a história dessa doença, seu surgimento entre jovens americanos gays, o mito do “paciente zero”, as repercussões, o teste criado por Robert Gallo, a descoberta por Luc Montaigner, etc. Percebi que os espíritas presentes não gostaram das minhas palavras. Caretas, bocas torcidas e cabeças balançando negativamente apareceram à minha frente.

Na parte das perguntas, logo após minha fala, uma jovem me questionou: “Será essa doença um aviso da espiritualidade contra práticas condenáveis”? Ato contínuo, outro senhor me perguntou “O que fazer com uma laranja podre que compromete um cesto inteiro”. Ficou claro que havia uma tentativa de tornar essa síndrome uma doença da alma, torná-la uma chaga moral, produzida por erros do comportamento. Havia a visão de que os gays (mais do que o vírus) eram o problema a ser combatido.

Havia várias pessoas na plateia que eu sabia serem homossexuais. Até hoje me pergunto como se sentiram quando as pessoas ao seu lado questionavam a “moralidade” dos gays”. Como se sentiram ao ouvir que eram maléficos, “um mau exemplo” e que eles poderiam ser os responsáveis por uma doença que tinha a potencialidade de “exterminar a humanidade”? Depois da minha palestra um médico de Goiás veio falar de “homossexualidade e espiritismo”, e sua fala apontava para que a única atitude correta dos homossexuais seria a supressão dos seus desejos e a vida em castidade. “Se religiosos de várias seitas conseguem dominar seus impulsos para se purificar, por que os gays não poderiam fazer o mesmo?”, perguntou ele, com a característica empáfia dos clérigos. Foi aplaudido de pé.

Há 40 anos abandonei as religiões. Percebi que o discurso das religiões não servia para mim. Continuei me dizendo “espírita laico” porque ainda tenho crenças relacionadas ao espiritismo, mas não me sinto bem escutando qualquer palestrante espírita. Quando escuto uma palestra em questão de minutos começa a torrente de moralismo, falas prescritivas, regras de comportamento, idealização de personagens (Chico, Divaldo, Kardec, Jesus, etc) e um ranço cristão culposo insuportável. Desculpe, apenas não é para mim e não consigo achar qualquer validade em tais manifestações.

Abandonei o espiritismo religioso há 40 anos, mas hoje abandono o cristianismo. Chega de Jesus. Sua existência real talvez seja até verdadeira, mas seus seguidores deturparam de tal maneira a mensagem cristã que, se o próprio Cristo viesse à terra, não se reconheceria em nenhuma igreja – até porque, sendo preto, jamais se veria naquele germânico de olhos azuis que aparece nos templos. Mais do que isso, a retórica dos líderes cristãos agora apoia os massacres em Gaza, mostrando a face mais preconceituosa, racista e cruel desses “pastores”, os mesmos que aceitam como “desígnios divinos” as mortes por atacado de crianças nos territórios palestinos. Isso tudo porque estão conectados financeiramente com o Estado Sionista, que os promove e financia em suas excursões para a Terra Santa. São empregados muito bem pagos do terrorismo de Estado de Israel, que controla de forma genocida o colonialismo no Oriente Médio.

Deixo aqui qualquer conexão com o mundo cristão. Não reconheço Cristo como “meu salvador”, e sequer acredito que o cristianismo tem ainda uma mensagem a oferecer ao mundo. Se as ideias de Cristo fazem isso com os cristãos que levam as bombas para Israel, o que podemos esperar de sua mensagem? Uma religião cujos seguidores matam despudoradamente crianças em nome da dominação e do poder não pode ser algo aceitável para a minha vida.

Adeus Jesus, até não mais…

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Sionismo canhoto?

Nesta semana (10 outubro 2023) o professor e pesquisador Michel Gherman abandonou um debate sobre a crise da palestina na PUC do Rio de Janeiro. Na ocasião ele proferiu a seguinte frase “O Hamas é um grupo terrorista e o que aconteceu foi uma ação da pior espécie”. Neste debate é possível ver uma universitária, que afirma ser judia, protestando contra a presença do professor Gherman e dizendo que “95% (dos que estão aqui) não estão se sentindo representados por Michel Gherman”. Surge então a questão: como pode este professor defender uma proposta colonialista e racista como o sionismo, atacar a resistência palestina, aceitar a revanche sangrenta de Israel e ainda assim considerar-se de “esquerda”?

O proclamado “sionismo de esquerda” – um oxímoro ridículo – tem em Michel Gherman uma de suas mais potentes vozes há muito tempo. A narrativa usada pelos defensores da “conciliação” para o drama na Palestina é sempre a mesma: a culpa não é da ocupação, nem da opressão, muito menos da limpeza étnica. Não ocorre por causa do apartheid ou do racismo; a culpa é da extrema direita que governa o país na figura de Benjamin Netanyahu. Para estes personagens (que recebem um destaque incompreensível do jornalismo nacional, inclusive entre os progressistas) se a esquerda estivesse no poder não haveria tanta e tão disseminada violência, esquecendo que nas primeiras duas décadas da existência de Israel os governos eram encabeçados por elementos da esquerda israelense. Porém, apesar do esquerdismo de fachada, a brutalidade era a mesma que hoje testemunhamos – apenas sem câmeras nos celulares para testemunhar o horror dos massacres.

Entretanto, como toda dissimulação, a pretensa postura condescendente e “pacifista” destes falsos democratas desaparece como num passe de mágica nos momentos de crise. Os eventos apicais, seja no contexto dos sujeitos ou dos partidos, são pródigos em revelar nossa natureza mais íntima. Podemos enganar muitos sobre o nosso caráter durante períodos de calmaria e fartura, mas basta que a fome, a guerra, o caos social ou qualquer ameaça – interna ou externa – brote da placidez do nosso cotidiano para que surja a verdadeira essência, escondida sob as capas de civilidade.

Nesta exato momento Israel bombardeia sem dó ou piedade uma população composta majoritariamente por mulheres e jovens, indefesos dentro de uma prisão a céu aberto, privados das condições básicas para a sobrevivência de seu povo. Quando confrontado sobre o que faria no lugar de Netanyahu diante dos impasses da guerra contra o povo palestino, sua resposta se encontra em sintonia com os valores sionistas – excludentes, violentos e racistas – mais básicos: “Se tivesse chegado onde chegamos (faria) a mesma coisa. Só traria gente competente para assessorar”, disse em uma recente entrevista o professor Michel Gherman. Ou seja, mataria milhares de crianças, asfixiaria Gaza deixando-a sem eletricidade, água ou medicamentos, bombardearia hospitais matando médicos, enfermeiras e feridos e tudo isso em nome do regime racista, opressor e colonial criado no solo Palestino. Ou seja, para ele a manutenção do colonialismo brutal de Israel está acima dos valores humanos mais essenciais.

Não existe possiblidade de juntar no mesmo partido – ou no mesmo sujeito – uma proposta colonial e racista com a perspectiva solidária, humanista e justa que compõe a proposta socialista. Esses sujeitos pró Israel são direitistas, colonialistas e imperialistas até a medula dos seus ossos, mesmo quando seus discursos estão repletos de clichês pacifistas e lugares comuns pela “paz”. Não há verdade alguma em suas palavras quando falam de diálogo, diplomacia e entendimento entre as partes em conflito pois que para o sionismo a única possibilidade em seu horizonte é continuar tratando os Árabes como serviçais e cidadãos de segunda categoria. Pior ainda, gente (ou “animais”, como disse Yoav Gallant, ministro de defesa de Israel) que deveria deixar a Palestina ou morrer, pela expulsão ou pelo extermínio.

A mídia brasileira, acostumada a passar pano para essa falsidade, precisa acordar para o que estes personagens realmente representam. Não existe possiblidade de paz que não surja de uma pressão internacional intensa e sem tréguas contra o sionismo racista e colonial, contra o apartheid e contra o imperialismo. Dar ouvidos aos sionistas é atacar a autonomia e o sonho de democracia na Palestina, pois que o centro das reivindicações sionistas é a manutenção do colonialismo e da opressão do povo palestino.

FREE PALESTINE!!! 

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Uma escolha difícil?

É lamentável ver a defesa que alguns fazem de Israel, em especial entre aqueles que se consideram de esquerda. Olham para a ação desesperada de alguns dias atrás de forma maximizada, como se não houvesse por trás dessa ação mais de 7 décadas de abusos, torturas e morte. Agem como o Estadão e sua “decisão difícil” ou a turma do “nem-nem”, que colocavam no mesmo patamar um político vagabundo é o maior estadista do Sul global. Tentam equiparar as reações dos palestinos aos crimes brutais a que são submetidos desde o Nakba.

Estas mesmas pessoas, há poucas décadas, estariam criticando os insurgentes do gueto de Varsóvia pela sua violência “injustificável” contra os nazistas, recomendando àqueles que se mantivessem impassíveis diante da morte certa que se aproximava de sua família e de si mesmos. E se houvesse qualquer reação, mesmo que fossem os gritos lancinantes ao ver a morte se aproximando, mesmo essa indignação seria censurada, pois que demonstra uma rebeldia que precisa ser calada.

A falta de empatia com milhões que sofrem, e a solidariedade com a dor ocasional dos invasores, é algo que não é possível entender, a não ser pela lavagem cerebral produzida pela propaganda sionista massiva, intensa e obliterante.

Nunca houve paz duradoura sem que os opressores fossem vencidos. Não haverá paz com a continuidade do apartheid de Israel, com o racismo, com as prisões arbitrárias, com as mortes à granel. Como dizia Nelson Mandela, “Sabemos muito bem que nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”

Israel, pária internacional.

#BDS

FREE PALESTINE

https://fb.watch/nHCK20fBM2/?mibextid=Nif5oz

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Direita israelense

“Isso é culpa da extrema direita judaica”

Até quando vamos aceitar esse tipo de confusão proposital, que tenta nos dizer que a culpa pelos ataques sistemáticos à população palestina é de uma “direita israelense” de caráter fascista e racista? Este tipo de informação quer nos fazer acreditar que a “esquerda judaica” seria progressista e pró Palestina, e que a culpa das arbitrariedades e da limpeza étnica na Palestina é da direita – o que é claramente um absurdo que pode ser comprovado analisando a própria história do Estado Sionista de Israel. É preciso, abandonar essa confusão criada pela “esquerda sionista”, da mesma forma como já está na hora de acabar com a velha conversa de que este grupo “apoia a população palestina e desejam uma solução de dois Estados”, algo que sempre existiu apenas como recurso retórico e diversionismo durante décadas. Jamais houve, por parte de Israel, o interesse de produzir uma solução negociada com os palestinos, pois que eles sabem que o futuro de Israel está vinculado ao desaparecimento dos palestinos. Tanto os governos de esquerda quanto os de direita boicotaram todas as tentativas de uma negociação justa, porque uma solução que reconheça os palestinos e um Estado Palestino soberano não lhes interessa.

Vamos assumir que o culpado para as tensões infinitas e crescentes na Palestina atende pelo nome de sionismo. Esse modelo etnocrático e excludente de colonialismo é uma questão de Estado, não de governo. O sionismo é a força unificadora de Israel, inobstante o partido no comando. Por exemplo; o Ha-Avoda é um dos grandes partidos do país, de centro-esquerda. É um partido social-democrata e sionista, membro da Internacional Socialista. Ou seja, até a esquerda israelense é sionista, portanto luta por um Estado judeu exclusivo, que visa a expulsão dos palestinos – ou os considera cidadãos de segunda classe.

Os massacres contra os palestinos não se relacionam com a direita ou a esquerda israelense, mas com o núcleo ideológico sionista que mantém a coesão do país. No último grande massacre em Gaza em 2014 foram mortos 2500 palestinos, dos quais 500 crianças. Ao se realizar uma pesquisa em Israel durante os ataques 95% da população apoiou abertamente os bombardeios contra a cidade sitiada. Pergunto: havia 95% de fanáticos de extrema direita em Israel? Não… porém 95% dos habitantes daquele lugar não aceitam a existência da Palestina e de seu povo. A ideia de que os problemas de direitos humanos contra Palestinos é por causa da direita israelense não passa de um mito. Não convém esquecer que Israel foi criado por socialistas ateus.

E sobre a grande supremacia da direita em Israel…. a direita sempre se evidencia nas crises. Israel está em eterna crise desde o Nakba em 1948, a qual jamais acabará. A tendência é o crescimento das contradições e um lento abandono do suporte internacional à Israel, em especial dos sionistas evangélicos do “Bible Belt” americano. Aí recai toda a esperança das futuras gerações de palestinos.

“Uniforme nazi? Não pode, manda prender. O contexto não interessa”.

Quanto aos ataques a Roger Waters, acusando-o de ser antissemita, esta é uma tática antiga. Qualquer um que critique a política de Israel – em especial sobre os direitos humanos de palestinos – receberá este rótulo, com o claro objetivo de desqualificar todos que ousem criticar os desmandos de Israel. Assim, se não é possível atingir a mensagem, que se ataque o mensageiro, chamando-o de “racista”, ou antissemita – o que o aproxima dos executores do holocausto. A mesma estratégia foi usada para o líder trabalhista inglês Jeremy Corbyn e qualquer outro que coloque o dedo na ferida viva da Palestina. Portanto, nenhuma novidade nas acusações contra o músico Roger Waters – ex Pink Floyd – mas já podem ser observadas grandes diferenças, pois que hoje se observa um grande apoio ao músico que chegam da comunidade artística internacional e de todos aqueles que desejam a paz no Oriente Médio.

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Guerra Moral

Eu entendo as boas intenções desses religiosos, mas sei que existe um conceito por trás desse gesto que frequentemente nos leva para o lado errado do debate.

Esses três personagens – clérigos das três grandes religiões abrahâmicas – estão igualmente relacionados aos massacres ao povo Palestino, em especial em Gaza. Em geral, querem nos fazer crer que existe um elemento religioso nessas disputas. Todavia, apenas os tolos acreditam que a solução desses problemas se dará através da comunhão de pastores, rabinos e padres, como se as questões do colonialismo e da iniquidade fossem morais e as religiões pudessem resolvê-las. Isso é falso. Minha perspectiva é de que, se esse encontro pudesse trazer qualquer solução ao bolsonarismo que nos aflige, bastaria ir a Gaza, dar as mãos, fazer uma marcha ecumênica pela paz envolvendo estas religiões e o conflito se resolveria. Entretanto, todos sabemos que o drama da pobreza no Brasil e a ocupação sionista da Palestina NADA tem a ver com as religiões.

Imaginar o contrário é seduzir-se pela mentira. Nada se resolve com esse tipo de iniciativa. Aliás, o próprio Jesus dizia que “não vim trazer a paz, mas a espada“. A solução só poderá através da luta de classes, pelo enfrentamento ao colonialismo assassino e contra o Imperialismo opressor. Às religiões nada tem a ver com os dilemas profundos do Brasil e não são a solução para nossa miséria. O fundamentalismo religioso evangélico no Brasil não tem nada de religiosidade – basta ver o amor à violência e a veneração às armas – mas tem uma adesão clara aos valores conservadores e apenas por essa interface se comunica com a política. Ambos – conservadorismo e religião – aceitam a opressão como natural, e só por isso estão irmanados. Não há cristianismo em Bolsonaro assim como não há nada de judaísmo nos invasores europeus que fazem limpeza étnica na Palestina.

Misturar esse debate é ação diversionista. As religiões nunca foram motivo para as guerras, mas foram frequentemente usadas para camuflar interesses geopolíticos e econômicos. Esses três clérigos estão, mesmo sem o saber, estimulando o uso dessa camuflagem ao nos fazer crer que as religiões unidas poderiam ser um obstáculo ao avanço do bolsonarismo. Para mim o que existe de mais chato nos debates atuais é quando os liberais reclamam de posições radicais, dizendo que o radicalismo impede o consenso. Confundem o conceito de radicalismo com o extremismo. Extremismo é o que vai até o extremo – e dificulta uma posição que possa produzir acordos – enquanto o radical (do latim “radix”) vai à RAIZ, por isso o nome. Por certo que sou radical, e por isso mesmo não me deixo seduzir pelas propostas de amor e comunhão que os religiosos tentam nos oferecer, que nada mais são que uma versão romantizada e contemporânea da “pax romana”.

Ou seja: “calem-se, deixem tudo como está e não toquem nas feridas sociais pois isso atrapalha a nossa “paz” e a comunhão entre as classes“. Eu prefiro o barulho das espadas se chocando em combate do que o silêncio das adagas na garganta. Isso é ser “radical”: entender que não existe paz oferecida graciosamente, muito menos uma paz que trata conflitos geopolíticos e econômicos como simples questões morais, como uma guerra do “bem contra o mal”.

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Figurantes

Quando meu filho tinha por volta de 7 anos ele conheceu o universo dos “jogos de computador”. Eu, que vivi o apogeu do fliperama, nunca consegui ser influenciado por estes jogos – estava velho demais para ser contaminado – mas meu filho por alguns anos se dedicou aos jogos de guerra em “primeira pessoa”, onde era possível incorporar um soldado que enfrentava os inimigos em campos de batalha. Eu não gostava de jogar, mas adorava assisti-lo jogando e não me furtava de fazer alguns comentários. O mais comum – e que virou piada interna – era reclamar das matanças que seu personagem protagonizava. Eu lhe dizia: “Olha, você matou vários soldados inimigos!! Você acha que eles não tem família? Acha que eles não têm mulher e filhos? Acha que eles não tem uma casa para voltar quando você desliga o computador?”. Ele me explicava que eles não eram pessoas de verdade, e eram apenas as dificuldades que o jogo colocava para chegar até o “chefão” e vencer o jogo.

Fiquei feliz ao saber que, anos mais tarde, a minha piada sobre os “capangas” (que continha uma crítica à desumanização) um dia apareceu em uma comédia dos irmãos Zucker. Na verdade, estes jogos expõem, de forma dissimulada, uma face bem cruel da nossa sociedade – mas absolutamente verdadeira. Existem aqueles que merecem a condição de protagonistas da vida e da história, enquanto para outros esta condição não é oferecida; eles apenas merecem a condição subalterna, condenados a ser figurantes. Estes últimos são desumanizados, não contam, suas mortes não precisam ser lamentadas e são apenas o suporte para que os protagonistas possam brilhar.

Quando vejo os comentaristas da imprensa corporativa contextualizando o massacre das mulheres e crianças de Gaza, colocando a culpa das mortes nos próprios palestinos, dizendo que as mortes não aconteceriam se eles se rendessem ou parassem de usar suas mulheres e filhos como escudos humanos (uma mentira repetida mil vezes…), é inevitável trazer à memória Golda Meir. Foi ela, antiga primeira ministra de Israel, que popularizou a frase genocida: “Jamais perdoaremos os palestinos por terem obrigado nossos filhos a matarem os seus”, em conversa com Anuar Sadat, presidente do Egito. Como Israel é uma colônia ocidental, criada por invasores europeus e encravada em terra árabe na última e mais mortífera de todas as experiências colonialistas, percebi que a sociedade europeia continua a se considerar protagonista do planeta, e a periferia (em especial os palestinos, os negros africanos, os habitantes da Indochina e os “cucarachas” do Brasil) são como os capangas do jogo de computador do meu filho, cujo sofrimento e morte não contam porque ocorrem nos corpos dos figurantes no grande tabuleiro do planeta. Para eles nosso mundo continua dividido entre aqueles cujas vidas e mortes contam e os “outros”, para quem a a existência não faz diferença alguma na grande contabilidade do capitalismo.

Mesmo após termos eliminado boa parte do colonialismo em África, Ásia e Oceania, a mentalidade ocidental ainda é guiada pela ética dos colonizadores europeus que dizimavam populações nativas inteiras, dando gargalhadas com a desorientação de aborígenes que jamais haviam visto uma arma de fogo. Somos como os franceses na Argélia, os belgas no Congo, os alemães na Namíbia. Somos insensíveis às lágrimas e gritos das mães palestinas, mas questionamos a resistência palestina chamando-a de “brutal”. Não aceitamos que os figurantes assumam o controle do seu destino, usem de sua própria língua, plantem e colham de sua própria terra e conquistem sua tão sonhada autonomia.

A fala emocionada dos jornalistas também me lembra os clipes carregados de emoção que mostram soldados americanos voltando do front da Ásia central ou oriente médio, fazendo surpresa para suas mães, companheiras e filhos. Depois de destruir as famílias de líbios, afegãos, sírios, palestinos, vietnamitas, coreanos e qualquer um que ouse enfrentar o Império, eles voltam felizes e emocionados para abraçar os seus, todos lindos, limpos e loiros. As mortes que causaram nos “outros” são irrelevantes diante da felicidade do reencontro, mas foram importantes para que seu heroísmo fosse exaltado. Essa é a face mais cruel do imperialismo, e por isso deve ser combatido se desejamos um mundo com equidade e justiça para todos os povos

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