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Representações

Pensem por esta linha: se a representatividade fosse realmente determinante para a mudança dos modelos não seria de esperar que a entrada de mulheres na obstetrícia (onde hoje já são a maioria) deveria transformar as práticas de atenção ao parto de forma que se tornassem mais humanizadas? Ou seja, com tantas médicas mulheres atendendo partos, não deveriam os nascimentos ser mais centrados na autonomia das mulheres, na vinculação com a saúde baseada em evidências e na abordagem interdisciplinar do evento? E por que isso não ocorreu? Por que a prática obstétrica se mantém violenta e “iatrocêntrica” (centrada no médico) a despeito da entrada massiva de mulheres na profissão?

Ora, esse fenômeno ocorre por razões até simples de entender. As mulheres que entram num ofício caracteristicamente masculino como a obstetrícia que opera na lógica da intervenção (ao contrário da parteria, que é essencialmente feminina e opera na lógica do cuidado) adaptam-se à ideologia hegemônica, tornando-se veículo de uma ordem de poderes e de uma ideologia que mantém o poder nas mãos dos médicos. Nessa ideologia os corpos das mulheres precisam ser controlados e domesticados, retirando-se deles a natural energia selvagem e criativa. Via de regra, não se observa nenhuma diferença marcante na atenção prestada por homens e por mulheres no que diz respeito às práticas condenáveis como episiotomia, posição de litotomia, Kristeller, corte prematuro de cordão, cesarianas, etc. Da mesma forma, na atenção médica ao parto não há diferença alguma entre homens e mulheres quando avaliamos as boas práticas e as posturas que estimulam a humanização. Portanto, as obstetras mulheres claramente se adaptam ao sistema de poderes no qual se inserem e não foram – até então – capazes de transformá-lo pela identificação de gênero que teriam com as gestantes.

Da mesma forma, uma mulher negra representando o imperialismo, como Linda Thomas-Greenfield, que vetou o acordo de paz da guerra de Israel contra os palestinos, jamais se posicionaria ao lado das populações negras (ou não brancas) que lutam contra o sistema imperialista, a opressão, o apartheid e a violência de Estado que ela própria representa. Ela também se adapta ao sistema que a abriga, tornando-se uma emissária dos interesses imperiais, e não uma mulher negra em posição de comando. Sua negritude e sua feminilidade desaparecem diante da magnitude de sua posição.

Pois é exatamente por isso que esse modelo de representatividade, que é apregoado e disseminado pela direita – mesmo a direita travestida de esquerda identitária – é uma falácia. Esta estratégia divisionista foi criada pelos “neocons” americanos para produzir a divisão da classe operária entre suas múltiplas identidades – pretos, gays, mulheres, transsexuais, etc. – oferecendo a estas identidades uma pífia representatividade, enquanto mantém intocados os poderes do capitalismo e obstrui a luta de todos nós – a luta de classes. Em troca oferece uma fatia do bolo para essas personagens, mantendo os milhões de representados na mesma condição de miserabilidade e exclusão.

Não existe possibilidade de avançar nas lutas por uma sociedade equilibrada através desses truques narrativos. Assim como mulheres, negros, gays etc. assumem a roupagem do poder que os acolhe, suas ações serão sempre reflexo desse poder, e não das identidades que carregam.

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Café, culpa e preconceito

Certa vez reclamei com uma amiga americana dizendo que, apesar dos Estados Unidos serem os maiores consumidores mundiais de café, este produto era servido muito aguado, fraco. Sua resposta foi curiosa: “Nosso café não é fraco, o de vocês é que é excessivamente concentrado”.

Sim, era uma forma interessante de contrapor minha perspectiva. Quem determina a concentração “correta” do café? Por que alguém teria o monopólio sobre o gosto adequado do café, considerando as outras formas como inferiores? Por que insistimos em estabelecer universalidades – valores corretos e certos – em um mundo que cada dia mais nos fala de formas subjetivas de classificar beleza, relevância, significado, valor e até mesmo os sabores de café?

Minha tese é que a raiz da proteção que se dá às comunidades negras se baseia em culpa e preconceito. Ou seja: enfatizamos a proteção porque acreditamos na sua fragilidade, o mesmo que fazemos com as crianças. Camille Paglia ressalta a importância do conceito de “street feminism”, onde as mulheres são criadas para serem fortes, altivas, poderosas, e não protegidas por leis de excessão ou através de punições pífias contra quem as desmerece.

Posso entender a tendência a proteger quem nos parece fraco e débil, mas acredito que acima de proteger é preciso criar um olhar diferente sobre esses grupos, estimulando-os a valorar suas especificidades. Antes de criar uma redoma de proteção é preciso estimular um olhar sobre si mesmos que demonstre sua força, beleza e poder. Sem essencialismos…

https://www.facebook.com/reel/670397075013104

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Nó Identitário

Estou com uma imensa curiosidade sobre qual será a manifestação dos identitários sobre o imbróglio entre Dudu Milk e Jean Wyllys. Isso porque houve xingamentos homofóbicos e uma clara ofensa, que produziu como resposta um processo por ataques à honra e homofobia. Detalhe: ambos os personagens dessa história são declaradamente gays. Por enquanto só ouvi silêncios…

Peço apenas que, aqueles que estão tentando “passar pano” para as palavras constantes do Tweet do Jean Wyllys (ao lado), imaginem apenas se estas palavras fossem proferidas por Eduardo Bananinha ou Nikolas. Ou seja: como os identitários ou os defensores da causa gay reagiriam à insinuação de que um político declaradamente homossexual toma decisões na arena política motivado por supostos fetiches sexuais? Como reagiriam ao estereótipo do gay descontrolado, reduzido à sua sexualidade (como historicamente se fez com os negros)?

Como vão se posicionar diante da ideia de que os gays, quando assumem postos de poder, agem de forma depravada, tornando-se incapazes de decisões racionais? Esta desumanização dos gays se assemelha à misoginia que considerava as mulheres como incompetentes, por não conseguirem analisar o mundo de forma racional. Também é tão grave quanto aquelas fake news que confundem propositalmente os gays com “tarados” e “pedófilos”. “Ahh, mas ele é gay. Ele pode falar isso”. Não é o que o Dudu achou. Além disso, essa afirmação vai de encontro à ideia de que as ofensas não acontecem pelo seu conteúdo ofensivo, mas tão somente por quem as emite. Ou seja: gays podem xingar e fazer piadas homofóbicas, assim como judeus podem debochar do seu próprio povo, enquanto os negros podem debochar de sua raça. Ou seja: seriam “eleitos”, blindados, capazes de avançar o sinal e cometer ofensas, protegidos pela sua condição. (recomendo um capítulo de Seinfeld onde um dentista se converte ao judaísmo apenas para contar piadas de judeus). É certo aceitar que uma determinada condição se torne um salvo conduto para as ofensas?

“Ahh, mas ele é gay, como poderia ser homofóbico?“, o que faz coro com a ideia de que “negros não podem ser racistas” ou “judeus não podem ser antissemitas” (como disseram do nazi Zelensky). Pois eu convido a escutarem as palavras homofóbicas de um famoso pastor evangélico que contrastam com sua história na homossexualidade enrustida, a qual ganhou as manchetes nas últimas semanas. As defesas feitas ao ex-deputado Jean por parte da esquerda são incompreensíveis para mim. Diante dessa celeuma eu pergunto: um sujeito que atacou a Venezuela em sua luta anti-imperialista, fez a defesa aberta da democracia liberal burguesa, apoiou o apartheid israelense, adotou a retórica do pinkwashing de Israel, atacou o nacionalismo palestino, saiu do país financiado pela Open Society do George Soros e ainda deu uma resposta homofóbica a um governador gay…. ainda pode ser chamado de “esquerda”?

Essa é a grande sinuca de bico do identitarismo: de um lado apoiar um governador gay, anacrônico, bolsonarista e que decidiu manter os monstrengos das escolas cívico-militares, um descarado cabide de empregos para militares da reserva, mas que teve sua honra indiscutivelmente ofendida. Por outro lado, postar-se ao lado de um ícone das lutas dos gays, personagem midiático, auto proclamado de esquerda, vítima de perseguições pelos fascistas do bolsonarismo, auto exilado e financiado pela Open Society do George Soros…. e que cometeu uma ofensa homofóbica grotesca e acima de qualquer questionamento.

E agora? Esquerda ou direita? Progressistas ou conservadores? Fascistas ou progressistas? Devemos olhar para o fato em si ou para as causas que eles defendem? “Caso ou Causa”? É aceitável que esse personagem acusado de homofobia seja contratado pelo governo atual? É justo oferecer a um homofóbico um cargo no governo progressista, que tem um compromisso histórico com as comunidades LGBT? Comprei bastante pipoca para ver como os identitários vão desatar este nó….

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Silêncio

Por volta de dez anos atrás eu fui convidado a participar de uma comunidade de “blogueiros” que escreviam sobre a temática do parto e do nascimento. Na época eu já possuía meu tímido blog, que usava apenas para manter uma cópia guardada e protegida de tudo o que eu escrevia. Eu já tinha plena noção de que o meu tempo na Terra seria curto, e que poderia ser interessante manter minhas ideias resguardadas como uma espécie de “legado”, algo que poderia ser usado por alguém no futuro. Um pouco de arrogância, quem sabe…

Aceitei o convite de migrar o meu blog para esta comunidade com a ideia de que “unidos seríamos mais facilmente ouvidos”. Tinha a ideia de que uma comunidade de pessoas com temáticas próximas poderia produzir um efeito positivo de multiplicação de informações e conceitos. Sabia também que seria o único homem a escrever em um pequeno universo de mulheres, mas este tipo de posição jamais havia me inibido ou constrangido até então.

Desta forma, passei a escrever minhas ideias nesta comunidade sem muito alarde, apenas avisando às pessoas das minhas redes sociais que passaria a ter meus escritos depositados lá. Com o passar das semanas acabei gostando do compromisso de escrever, o que antes acontecia apenas quando eu achava algo interessante para relatar; a pressão de entregar uma “matéria” fez bem à minha criatividade.

O problema aconteceu exatamente por essa minha liberdade de escrever o que me interessava, sem me preocupar com a recepção positiva ou negativa que os meus textos produziam nos leitores. Uma certa vez fiz críticas a algo que, já há dez anos, começava a me incomodar: o identitarismo. Percebia nesse movimento elementos que não me pareciam adequados, em especial no que se relacionava à humanização do nascimento e a amamentação. Mais do que a defesa do parto fisiológico, seguro, com autonomia e liberdade, havia um interesse em atacar o masculino, em especial quando representado por médicos obstetras e mesmo pediatras, sempre tratados com desdém e como se fossem portadores de chagas morais a comprometer seu comportamento diante de mães e bebês. Havia um crescente maniqueísmo nas propostas, que colocava de um lado mães e bebês como vítimas e pessoas moralmente superiores, e de outro lado médicos e homens perversos que agiam condicionados por valores como o egoísmo, o interesse, o despeito e a arrogância.

Eu não podia aceitar esta visão diminutiva das relações entre médicos e pacientes, mas também, escamoteado entre as linhas, as mulheres e os homens. Quando – a exemplo do que faz até hoje a extrema direita – acreditamos que a sociedade é dividida pelos valores morais, pela decência, pelos princípios éticos e não por um sistema opressor que coordena a todos nós, produzimos o meio de cultura adequado para o crescimento de uma sociedade apartada entre “homens de bem” e “vagabundos ladrões”. Eu não aceito que isso seja feito sequer entre as distintas visões políticas, menos ainda poderia aceitar que essa divisão exista entre os gêneros.

Médicos são, via de regra, espelhos dos valores sociais. Médicos fazem no seu mister diário aquilo que a sociedade espera deles. O mesmo se pode dizer da polícia, que age de forma violenta e abusiva porque assim o queremos – mesmo que de forma inconsciente e/ou inconfessa. O mesmo pode ser dito da Medicina, que atua dentro das expectativas criadas pelo conjunto da sociedade. Médicos não são “vasos estanques” dentro de uma sociedade; não, seus valores se comunicam dentro da complexidade de significantes do campo simbólico. Assim, o abuso de intervenções da obstetrícia é tolerado – e até exaltado – porque o conjunto da sociedade acredita em seus pressupostos. Médicos respondem a esta demanda; eles não a criam.

Escrevi um texto duro, dizendo que as demandas feministas não poderiam espelhar as mesmas violências que as mulheres historicamente reclamavam dos homens dentro do modelo patriarcal. A ideia preconceituosa e machista de tratar as mulheres como seres “emocionais” e, portanto, incapazes de decisões racionais não poderia ter como contrapartida o discurso de que os homens são “estupradores em potencial”, maus, malignos, egoístas, violentos e desleais – em essência. A crítica ao masculino – que trata os homens como moral e intelectualmente inferiores – só poderia gerar uma ideologia supremacista de gênero. Ora, se é moralmente abjeta a divisão das competências entre etnias, religiões ou orientações sexuais, no que diz respeito às suas capacidades intelectivas e afetivas, porque ainda admitimos e se faça isso com os gêneros?

Lutar pela equidade não é defender os mais fracos usando as mesmas armas que condenamos nos opressores. Esta luta deve se basear no respeito à diversidade, mostrando que em todas as cores, todas as religiões, todas orientações sexuais e em ambos os gêneros existem pessoas de todo tipo: boas, más, honestas, pilantras, gênios e tolos. Qualquer um que discorde desse valor primordial de respeito ao diferente estará sendo um arauto do preconceito.

Chamei as pessoas que atacavam os homens e o masculino de “corporativistas de gênero”, pois que lutavam pela causa do seu gênero acima dos valores da igualdade e do respeito às diferenças. Essa foi a gota d’água.

No dia seguinte dezenas (centenas?) de pessoas vieram se manifestar. Muitas concordaram, enquanto outras diziam que minha postagem apenas fazia dividir o grupo de pessoas que lutavam contra um “mal comum”: o patriarcado. Não só algumas leitoras se indignaram, mas as outras blogueiras que compartilhavam o espaço comigo fizeram um abaixo assinado e um pedido de expulsão, um cancelamento peremptório pela minha postura de criticar o feminismo (delas) e suas bases excludentes e belicosas. Fui contactado pela dona do coletivo de blogs (a mesma que algumas semanas antes havia me chamado) e convidado a me retirar. Disse ela que estava sofrendo “pressões terríveis” e que seria melhor eu sair.

É evidente que eu saí imediatamente de um lugar que jamais deveria ter aceitado ir. Coletei todos os meus escritos e voltei para o meu humilde blog, que já conta com quase 2500 textos postados desde então. Todavia, eu acredito que sobrou mais uma lição. Durante a polêmica em que estive envolvido o blog explodiu suas visualizações. Nunca tantas pessoas participaram, escreveram, contestaram, apoiaram e se solidarizaram. Muitas pessoas ficaram ao meu lado, clamando por maior respeito com os homens e com os significados últimos do masculino; outras me odeiam até hoje. Pois imediatamente após a minha saída nesta comunidade passou a reinar a mais serena e plácida de todas as calmarias. Ninguém mais reclamou, não houve ataques, discussões ou cartas de repúdio. Todas estavam em perfeita sintonia em suas crenças e ideais. Não houve mais nenhuma briga ou contestação, nenhum contraditório ou discordância.

Para a surpresa de ninguém, o que poderia ser um veículo de difusão de ideais e propostas sobre parto, nascimento, maternagem e amamentação começou a atrofiar poucas semanas depois, na mais absoluta inanição. Não houve mais o mesmo interesse por um lugar que “chovia no molhado”, sem energia, sem enfrentamento, sem polêmica e sem audiência. As pessoas rejeitam lugares mornos, sem graça e sem surpresas. Sobrou o ensinamento de que o silêncio imposto, os cancelamentos e a censura produzem – de imediato – uma falsa sensação de paz, mas que esconde a destruição da energia propulsora e a capacidade de renovação.

Calar a boca daqueles de quem discordamos retira de nós a possibilidade de aprender com as diferenças. Porém, como todo movimento de transformação, respeitar as opiniões divergentes demanda coragem e força para suportar a terrível experiência de escutar o que não se quer.

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Identidades

Lutar contra o racismo não é identitarismo. Combater o machismo, idem. O identitarismo, como o nome diz, é a luta pelas identidades a despeito das divisões da sociedade em classes distintas, as quais nos separam em proletários e burgueses. Esse modelo, em última análise, transforma um homem branco miserável em um opressor, enquanto o negro que divide com ele a mesma marquise é visto como um oprimido, ambos vítimas de uma sociedade injusta e cruel. Usar a luta antirracista para combater essa disparidade sempre serviu aos interesses de quem não quer que a sociedade capitalista seja questionada.

“Você é oprimido porque é preto”, “Você não é valorizada por que é mulher, ou gay” quando por trás desses fatos existe um modelo perverso de sociedade e uma concentração absurda de riqueza que sacrifica a todos nós, trabalhadores.

Grandes organizações antirracistas estão lentamente rompendo com esse sectarismo e abandonando a postura identitária. O pulo do gato é acordar para o fato de que a raiz do racismo não é a melanina, assim como a raiz do machismo não é aquele X a mais.

Os grupos antirracistas e feministas que se deram conta disso estão rompendo lentamente suas amarras com o sistema capitalista. Chamam a isso “interseccionalidade”, que nada mais é do que perceber que esses modelos opressivos são tão somente máscaras usadas para justificar uma sociedade dividida, baseada em classes.

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Caridade privatizada

Diz-se do jogador Sadio Mané do Bayern de Munique que ele é um grande filantropo que auxilia a população pobre de Bambaly, o vilarejo onde nasceu no Senegal. Muitas postagens o apresentam como um sujeito simples, que usa um celular com a tela quebrada e que prefere usar seu dinheiro para ajudar as pessoas pobres do seu país, em especial sua cidade – a base de sua filantropia. Mais do que isso, fazem comparações com os jogadores brasileiros – em especial Neymar – mostrando que o senegalês é um sujeito de caráter, enquanto o brasileiro não passa de um egoísta e aproveitador.

É minha convicção que não é função de jogador de futebol assumir o controle da educação e da saúde em seu país. O Senegal não precisa de Messias ou salvadores para resgatar a dignidade do seu povo; precisa de luta de classes e justiça social. Os ataques aos jogadores brasileiros e a exaltação dessas personalidades são cada vez mais comuns. Infelizmente caímos no engodo de fazer análises morais dos esportistas, ao invés de analisar sua performance em campo. Esse tipo de avaliação moralista dos craques serve apenas para nos afastar da importância da luta de classes.

Sadio Mané é aparentemente uma boa pessoa, mas é impossível saber a verdade que existe por trás da imagem construída pelas empresas de publicidade que trabalham a imagem dessas personalidades. Ele parece ser um sujeito preocupado com seu povo, interessado no seu bem estar e acima das questões mais consumistas que parecem prioritárias entre os muito ricos. Entretanto, cobrar dos outros jogadores de futebol a falta de auxílio aos problemas estruturais básicos do seu país de origem é um erro. Não é obrigação do Neymar – e de nenhum de nós – oferecer seu próprio dinheiro para resolver a fome e a falta de hospitais do Brasil. Cabe a nós mesmos usar de estratégias (como cobrar impostos altos de jogadores) para que o próprio povo possa decidir onde – e a quem – ajudar.

Curioso que nós achamos que a interferência do milionário Lemman na Educação, através do seu instituto e dos “Think Tanks” que opera, é perigosa e ameaça o ensino plural e crítico, mas não acreditamos que um jogador de futebol fazer o mesmo é errado. Afinal, nós acreditamos que o Sadio Mané é um “cidadão de bem”. Ora, precisa mais do que uma aparência para acreditarmos que estas iniciativas privadas podem ajudar o povo do Senegal. Fazer caridade, exaltando personalidades e o “culto ao salvador” é uma péssima iniciativa, pois despolitiza a sociedade e cria, como subproduto, sujeitos maiores do que o próprio Estado. E essa atitude não pode ser julgada “boa” apenas porque sonegação de impostos (que outros jogadores fazem) é uma atitude pior. Ora, trata-se de um falso dilema. É preciso combater a sonegação e limitar ao máximo (regulamentar e fiscalizar) a intervenção de grupos privados na saúde e na educação.

Não há porque desenvolver simpatia por nenhum milionário “bonzinho”. Não existe bondade em quem lucra com a miséria global para que uma franja cada vez mais diminuta tenha luxo e poder. Aliás, Messi – para além de um grande benemérito – é um grande sonegador também. Neymar e Cristiano Ronaldo idem. Soros faz caridade com identitarismo e muitos beijam sua mão. A Fundação Ford e a Fundação Gates espalham suas garras por todo o mundo. Aceitar essa benemerência é submeter-se à sua perspectiva de mundo. Ninguém é aprioristicamente contra o assistencialismo, como se ele fosse um mal a ser combatido. Enquanto houver fome, haverá pressa. Enquanto a divisão perversa das riquezas do planeta persistir haverá necessidade de oferecer ajuda humanitária. Entretanto, faz-se necessário não entender essa “caridade” como a solução última do conflito de classes e da pobreza. O que vejo ocorrer com a divulgação dessas ações de jogadores milionários é a normalização do assistencialismo privado, aceitando como preço a pagar tudo de perverso que vem com o personalismo.

Assistencialismo só se for público, democrático e estatal, caso contrário haverá desequilíbrio e despolitização. Sabe quem faz assistencialismo privado? As ONGs evangélicas da Amazônia, que levam Bíblias e junto com elas a destruição de culturas. Elas estão no olho do furação sobre a exploração da Amazônia exatamente porque pregam a privatização da assistência. Sabe quem mais faz assistencialismo privado? Todos os representantes da ordem mundial imperialista. Muitos hoje fazem a exaltação da caridade do Sadio Mané. Nestas questões eu acredito que é preciso ser radical: tais ações de solidariedade/caridade deveriam ser proibidas em Estados soberanos. Você, por exemplo, jamais poderá fazer isso em Cuba. Lá, o Estado autônomo e independente diria: “Quer ajudar? Entregue seu dinheiro e permita que o povo escolha que tipo de saúde e de educação ele deseja. Não será você a determinar como quer os tratamentos médicos ou quais matérias e em quais livros as crianças deverão estudar“.

Para finalizar, não se trata de debater a assistência, mas o conceito imperialista de que o auxílio aos deserdados pelo capitalismo pode ser feito pela caridade dos bilionários, ou seja, pelos próprios capitalistas. Desta forma, os mesmos que condenam países inteiros às guerras, miséria, opressão e exploração seriam responsáveis pelo combate à fome e à pobreza que, em última análise, eles mesmos causaram. Ora, chega desse engodo neoliberal que nos pede que aceitemos migalhas como elemento central em um projeto de justiça social. Sadio Mané pode ser um bom cidadão, mas o que ele faz jamais deveria ocorrer pois serve à exaltação de personalidades e não tangencia os dramas estruturais da sociedade. A lei deveria limitar ao máximo a interferência dessas pessoas nos assuntos que o Estado deve atuar – como saúde e educação.

Para saber mais sobre o tema, clique aqui e veja outra abordagem sobre a caridade.

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Leftismo

Acho curioso que, ao ser perguntado, sempre informo que sou um sujeito de esquerda. Mas isso acontece apenas quando estou no Brasil; se estivesse nos Estados Unidos eu jamais poderia sequer imaginar me associar aos movimentos da esquerda americana. Apesar de entender a dicotomia da política americana – onde um partido único de direita se separa em dois, sendo um chamado “right” e outro “left” – ainda acredito que não existe nada mais reacionário do que ser um “leftist” do partido liberal (democrata) de lá.

Nos Estados Unidos ficou muito evidente a aposta no “fim da história” preconizada por Francis Fukuyama. No ano de 1989, quando o mundo viu caírem os muros que separavam Berlim, o cientista político e economista americano Francis Fukuyama publicava seu famoso artigo com o provocativo nome de “O fim da história?” na revista The National Interest. Nele o economista antevia que a disseminação sem contraposição das democracias liberais e do capitalismo de mercado eram os sinais inequívocos de que estávamos dando um passo definitivo para o progresso econômico e cultural da humanidade, sendo o modelo disseminado pelo Império Americano aquele se seria o fim da nossa busca por um sistema global de justiça social. Três anos mais tarde, Fukuyama publicaria o livro “O fim da História e o Último Homem”, onde explorava com mais profundidade essas ideias.

Por esta razão, o bipartidarismo americano se assenta sobre essa premissa: nenhum dos partidos tem necessidade em debater a estrutura liberal da sociedade, pois se trata de um debate morto, solapado pelo tempo e pelo fracasso do socialismo real. Todavia, para manter a face enganosa de “duas propostas” políticas, dividem-se pelas questões de costumes como aborto, direitos para gays, negros, transexuais, imigrantes, etc. Para qualquer observador atento, fica claro que se trata da mesma proposta capitalista e imperialista que está presente no “ethos” de ambos partidos, o que se pode ver facilmente pela política externa, onde o imperialismo, o apoio a Israel, o incentivo à guerra e o controle do planeta com mãos de ferro são inequívocos pontos de confluência.

Aqui no Brasil é possível ver muitos reflexos do “leftismo” importado dos americanos no debate político contemporâneo. Partidos ditos de esquerda estão apostando muito mais do debate identitário do que no combate ao capitalismo, no imperialismo e suas mazelas. A exemplo do que ocorreu com o partido Democrata, parecem que apostam em pequenas reformas e na representatividade de setores ditos oprimidos para que a base da injustiça social não seja tangenciada. Aqui, suas pautas se expressam no identitarismo e no wokismo que, infelizmente, contaminaram setores significativos dos seus militantes. Para levar adiante suas propostas e sua visão de mundo não se envergonham de estabelecer contatos profundos e íntimos com instituições imperialistas e golpistas, como a CIA, USAID e NED. Os focos principais são as instituições em defesa das mulheres, do antirracismo, as que oferecem apoio à comunidade gay e aos transexuais, financiados pelas onipresentes “Fundação Ford”, “Gates Institute”, “Open Society” e aquelas ligadas aos irmãos Koch.

Se Lula não conseguir se livrar dessa armadilha o seu governo será inexoravelmente controlado pela esta direita mascarada de progressista, da mesma forma como estes grupos controlam o governo americano agora.

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Retórica identitária

A força retórica do identitarismo recai principalmente no fato de que qualquer discordância é respondida com ataques morais, não racionais. Assim, os dissidentes são tratados como machistas, racistas e transfóbicos, e não como pessoas que discordam de pontos específicos. Não é difícil constatar esse fenômeno; os episódios de mulheres trans nos banheiros femininos são acontecimentos exemplares e didáticos, e o simples questionamento da mudança dos pronomes coloca muitos na posição de inimigos ou traidores.

Nya Dnar, “Epílogo da História Circular”, ed. Fronteiras, pág 135

Nya Konigsberg Dnar nasceu em Praga, na República Checa, no dia 2 de fevereiro de 1965. Com pouca idade demonstrou ser uma criança muito vivaz e inteligente, e com quatro anos de idade aprendeu sozinha a ler e escrever. Com oito anos começou a escrever histórias curtas, pequenos contos e relatos em formato de crônicas. Em 1984 graduou-se em Pedagogia e História. Nesse mesmo ano ingressou no Instituto Nacional de Cinema para estudar roteiro, diagramação e direção de arte. Em 1986, com 21 anos recém completados, emigrou para os Estados Unidos para seguir carreira como roteirista e diretora de cinema. Nos estúdios de Hollywood conheceu inúmeros diretores que foram inspiradores para sua trajetória, e de sua amizade com o diretor Brian de Palma surgiu o interesse pelas películas e histórias de suspense que tanto o caracterizaram. Casou-se com Frank O’Maley em 1989 e começou sua carreira de roteirista na Miramax, empresa fundada por Harvey Weinstein, mas sua história na empresa foi abruptamente interrompida pelos escândalos sexuais que envolveram o famoso produtor e diversas mulheres que ele teria assediado. Depois da queda e do descrédito da Miramax passou a dedicar-se à escrita tendo lançado uma biografia chamada “Os anjos vêm de Praga”, onde conta a sua vida como imigrante e roteirista de sucesso. Logo depois lançou um romance ambientado na Primavera de Praga, chamado “Não há flores em Valdštejnská zahrada”, sobre o amor conturbado de uma florista da cidade com um soldado russo. Publicou em muitas revistas feministas e de esquerda americanas, em especial sobre os temas do identitarismo e do aborto. Em “Epílogo da História Circular” ela transita por temas tão diversos quanto a revolução dos costumes e crônicas sobre mulheres e crianças desassistidas nos assentamentos de imigrantes na fronteira com o México. Mora em Los Angeles.

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Divisões

Em termos políticos e sociológicos, dividir para conquistar (ou dividir para reinar) consiste em ganhar e manter o controle de uma determinada região por meio da fragmentação das maiores concentrações de poder, impedindo sua unidade e força. Esse conceito foi utilizado pelo governante romano César (divide et impera), Filipe II da Macedônia e o imperador francês Napoleão (divide ut regnes). Maquiavel cita uma estratégia semelhante em “A Arte da Guerra” (Dell’arte della guerra), dizendo da importância imperiosa em fragmentar as forças inimigas. Divisões sempre foram o maior interesse do Imperialismo. O sonho do Império Atlantista – ou Otanistão – liderado pelos Estados Unidos, era uma Iugoslávia dividida, e para isso fomentou a guerra fratricida do Kosovo, destruindo o sonho de Tito de uma nação eslava forte e unida. O desejo americano sempre foi uma Alemanha dividida, o que conseguiu por um certo tempo. O interesse do Império sempre foi dividir o Vietnã, a Coreia e a Rússia, assim como tentou com a China durante todo o século XIX. Para a América Latina – como bem cantou Pablo Milanés – ocorreu uma divisão artificial produzida pelo Império Britânico, contrária aos sonhos de Simón Bolivar. Mais modernamente, o Sudão foi dividido arbitrariamente com esta mesma lógica, claramente estimulado pelas nações colonialistas.

Até hoje se estimulam rivalidades e até guerras regionais na América Latina, como os ataques a Cuba, Nicarágua e Venezuela, não por acaso os três países que se impuseram orgulhosamente contra as determinações do Império Americano e, por isto, sofrem boicotes, ataques, sanções, atentados e golpes frequentes, todos eles financiados pelo grande capital internacional.

O próprio identitarismo parte da mesma percepção de mundo, e a través da estratégia de estímulo ao divisionismo como forma de enfraquecer a reação ao domínio. Uma sociedade pulverizada por identidades regradas por identidade sexual, raça, orientação sexual, etnias – onde um negro miserável se sente inimigo do branco explorado e pobre, a quem chama de “opressor” – também foi uma estratégia de sucesso do capitalismo americano, através do “leftismo” do partido democrata que, ao invés de abraçar as pautas socialistas e progressistas (eliminação da miséria, fim dos sem teto, sistema único de saúde, estímulo à reindustrialização), se entregou à defesa das minorias oprimidas, fragmentadas e divididas, assim como da “diversidade”, colocando operários e trabalhadores uns contra os outros como se a cor de sua pele ou sua sexualidade fossem reais barreiras para a integração, mais importantes do que a sua condição de classe.

É curioso que agora tantos falem no Brasil que “eles querem impor a divisão”. A frase é verdadeira, desde que se defina quem são eles. Falta a estes, que agora atacam os nordestinos pelo seu maciço apoio à candidatura de Lula, a percepção geopolítica de que “eles” se refere ao IMPERIALISMO, força que aqui no Brasil está ligada à extrema direita – Bolsonaro e seus seguidores. Quem realmente aposta na união nacional são os partidos da esquerda revolucionária e internacionalista, os quais reconhecem a importância da união dos povos em torno das pautas de apoio e de fortalecimento do operariado. É importante também, em meio a tantos ataques xenofóbicos contra o nordeste, entender o significado desta região para a construção do que hoje entendemos como Brasil. Nossa mensagem deve ir direto ao coração do eleitorado do sul e sudeste, este que deram seus votos a um racista declarado – Bolsonaro – e que agora depreciam o nordeste tratando esta parte do Brasil como subdesenvolvida e atrasada.

Os nordestinos salvaram o Brasil do fascismo que está presente em toda a história e as ações de Bolsonaro e – também por isso – seremos desta região eternamente devedores.

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Futebol e Identitarismo

Discordo com veemência da ideia, expressa por alguns jornalistas que, usando de profundo oportunismo, divulgaram a ideia de que a saída do Técnico Roger Machado tem a ver com o fato de ser um negro de esquerda, enquanto a volta do técnico Renato está conectada com o fato de ser um branco Bolsonarista, uma tese esdrúxula e vitimista.

Maradona era um reconhecido admirador de Fidel e Che. Alguém em sã consciência acredita que, se estivesse jogando hoje, seria vetado no Grêmio (ou qualquer outro clube) por ser comuna? Sério?

A demissão do Roger não teve nada a ver com a política do país, mas com os resultados do time. 1 ponto conquistado em 12 disputados na série B faz qualquer técnico cair. Talvez a volta de Renato tenha a ver com a política do Clube, mas esta é outra história. Renato é bolsonarista assim como Felipão, Felipe Melo ou Neymar, mas também 80% dos jogadores de futebol. No universo do futebol exaltamos Casagrande e Juninho Paulista que possuem uma postura progressista e de esquerda, mas são claramente envolvidos por uma multidão de pobres tornados ricos, direitistas e alienados.

O futebol morreu mesmo, mas não tem nada a ver com Bolsonaro. Esse esporte como manifestação popular morreu há uns 30 anos com a gourmetização do esporte bretão, quando fizemos arenas “shopping center” – onde pobre não pode entrar – quando acabaram os campos de várzea e quando o sonho dos jogadores brasileiros se tornou fugir do país e virar milionário na Europa.

O futebol moderno é uma merda, mas Bolsonaro não tem nada a ver com sua aparição tétrica. Renato Portaluppi foi trazido de volta por ser maior mito do clube, por ser um ídolo e pelo pensamento mágico da chegada de “salvadores da pátria”, fato que acontece em qualquer clube de futebol. Roger foi contratado por ser um excelente técnico, e não por ser um cidadão exemplar, negro e de esquerda. Misturar estes elementos é oportunismo e vitimismo tipicamente identitário.

Sou gremista, comunista, antirracista e conheço o Roger pessoalmente. Ele é um sujeito diferenciado dentro do futebol, um cara que pensa, reflete, analisa e tem crítica. Mas foi demitido por falta de resultados, inobstante seu caráter exemplar. Renato foi chamado por ser um mito, apesar de ser um bolsonarista com cérebro de amendoim.

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