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A Sedução dos Atalhos

Na série de artigos que escrevi ultimamente sobre George Soros e a “benemerência colorida” era exatamente sobre essa perspectiva que eu me debruçava. Muitos de nós estamos tão fortemente aprisionados na perspectiva capitalista que sequer percebemos as armadilhas do realismo capitalista para a captura de consciências. Por isso eu vi com um certo horror a passividade com que grupos de assistência ao parto saudavam a intromissão da “Open Society” – uma organização internacional com tentáculos em todo o planeta e gerenciada pelo bilionário Soros – nas nossas organizações, e a justificativa dada era de que “Bem, não há como combater a perversidade desse sistema; assim, nada mais nos resta a não ser jogar a toalha. Porém, não custa nada aproveitar um pouquinho destes valores oferecidos para mitigar os efeitos devastadores do capitalismo na cultura, nos povos, nos trabalhadores e nas minorias“. É neste exato momento que nos iludimos com a ideia de que o auxílio às vítimas do capitalismo pode ser feito usando os próprios recursos dos capitalistas, sem perceber o quanto isso reforça seus pressupostos.

Não acredito na possibilidade de avançar em campos tão sensíveis como a assistência à saúde – em especial à assitência à mulher – sem uma ruptura com a lógica subjacente ao sistema capitalista, onde a saúde está vinculada ao lucro e ao incentivo das intervenções. Um sistema que lucra com a piora da qualidade de vida dos clientes/cidadãos tem uma estrutura perversa, que não pode perdurar. Aceitar que os grandes capitalistas financiem ONGs que atuem no Brasil é aceitar que influenciem na forma como essas questões são abordadas pela população. Esta interferência é deletéria e ameaça a soberania de qualquer país.

Como seria possível deixar que o capitalismo curasse as feridas que ele mesmo produz pela adoção de uma sociedade dividida em classes? De acordo com Fisher:

“… o realismo capitalista conquistou de tal modo o pensamento público que a ideia de anticapitalismo não mais atua como a antítese do capitalismo. Em vez disso, é implantado como um meio de reforçar o capitalismo. Isso é feito por meio da mídia que visa fornecer um meio seguro de consumir ideias anticapitalistas sem realmente desafiar o sistema. A falta de alternativas coerentes, conforme apresentadas através das lentes do realismo capitalista, leva muitos movimentos anticapitalistas a deixarem de visar o fim do capitalismo, mas em vez disso mitigar seus piores efeitos, muitas vezes por meio de atividades individuais baseadas no consumo.”

É fundamental entender que o capitalismo é um sistema que está fadado a falhar, pois não é possível crescimento infinito em uma realidade finita, e a exploração de uma classe sobre a grande maioria da população é moralmente inaceitável. Os modelos de benemerência criados por bilionários, como tentativa de mitigar o sofrimento que o sistema (que os beneficia) impõe, apenas atrasa a adoção de uma mudança profunda na estrutura social. As maquiagens na assistência à saúde da mulher, ao parto e nascimento, não vão solucionar os problemas nevrálgicos dessa sociedade, mesmo que pontualmente possam trazer benefícios para indivíduos “agraciados” por esta ajuda. Este é o clássico “mudar os rótulos para que a estrutura se mantenha intocada”.

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Assédio

Fundação Century

Sentado na cadeira à frente da escrivaninha de Mark eu não tinha a exata noção do que ele desejava comigo. Poderia ser apenas algum informe novo sobre nossa intervenção no Parque Halliburton e todas as questões ambientais envolvidas, que fortuitamente atrasaram a execução do projeto. Como uma ONG de proteção ambiental, era nossa tarefa combater os assentamentos irregulares que pudessem colocar em risco a delicada natureza que ainda sobrevivia em nossa cidade. Imaginei que Mark deveria estar ocupado desde nossa última reunião, há uma semana, quando discutimos a possibilidade de um patrocínio para nossa ação de proteção do banhado, o rio e as salamandras do Condado de Lippville. O oferecimento partiu do instituto “Century”, controlado pelo bilionário de origem romena Atanase Ardelean, conhecido por suas ações predatórias na bolsa de valores americana. Para além disso, é um pródigo financiador de rebeliões neoliberais, o que faz das doações a entidades identitárias uma perfeita cortina de fumaça a encobrir suas ações de reforço ao capitalismo sem fronteiras e sem barreiras, modelo que tanto admira.

Por certo que uma instituição como a nossa, a “Climate Green Challenge”, composta de ativistas que doam seu tempo e seus esforços para a construção de uma sociedade em harmonia com a natureza, precisa de ajuda – em especial de dinheiro. Entretanto, a Fundação Century nunca me pareceu confiável, em especial porque seu controlador é uma figura sinistra, ligada a ataques financeiros, cujas repercussões desestabilizam países inteiros. Não creio que seja adequado ou sensato valer-se do dinheiro de um sujeito que se tornou bilionário pela exploração dos trabalhadores, através do tráfego de influências e incentivando a miséria capitalista disseminada pelo mundo.

Na reunião passada, nossa colega Jesse expôs sua visão positiva sobre o aporte financeiro da Fundação Century para os nossos projetos, em especial a proteção do Parque Halliburton. Falou que muitas outras instituições já foram beneficiadas por este tipo de “grant” e que seria tolice não pleitear esse dinheiro; afinal, não era uma quantia advinda do crime e não estamos em posição de recusar ofertas. Eu escutei sua posição e resolvi responder com a visão que tenho sobre a Century e sobre o próprio Atanase. Minha opinião foi expressa em poucos minutos, porque nosso chefe Mark a todo tempo sinalizava para que eu a interrompesse em função do pouco tempo que tínhamos para encerrar o encontro. De qualquer modo, deixei muito claro que a situação era eticamente delicada, pois o envolvimento de uma ONG de ecologia com um bilionário internacional envolvido em inúmeras ações controversas poderia nos causar constrangimentos no futuro.

A reunião terminou depois de várias outros assuntos terem sido tratados. Desde aquele momento – e até antes disso – ficou claro para mim que eu era uma voz dissonante de todo o grupo. É bem provável que ninguém além de mim tinha informações mais detalhadas sobre a parte sombria da Fundação Century e muito menos sobre as controvérsias mais sérias a respeito do magnata Atanase. Para meus colegas tratava-se de uma instituição “do bem” e Atanase não passava de um filantropo moderno e progressista. Sabia eu também que, mais do que aceitar ou não esse tipo de verba, era preciso que todos avaliássemos com cuidado todos os pontos de vista, as perspectivas e as repercussões dessa iniciativa.

Finda a reunião tive a sensação que Jesse havia se sentido desconfortável. Quando questionei nossa possível união com a Fundação Century ela pareceu ter se sentido pessoalmente atingida. Afinal, a ideia partiu dela, e ela o fez com a melhor das intenções. Senti a necessidade de explicar a minha forma de enxergar a questão. Como tenho seu contato no telefone resolvi mandar uma mensagem para ela à noite do mesmo dia.

Conversa com Jesse

“Não quero mais polemizar sobre este tema, pois acho que apenas atrapalharei as decisões para serem tomadas pelo grupo, mas aqui está meu posicionamento em relação ao Atanase e em particular sobre o tema das suas ações em nível internacional”.

Assim comecei minha comunicação com ela, e depois disso mandei um texto elaborado sobre o histórico de Atanase Ardelean e sua instituição, mas é óbvio que o fiz diante da minha perspectiva marxista e anti-imperialista. Anexei posteriormente um vídeo explicativo de como essas organizações – como a Fundação Century e similares – podem ter intromissões deletérias nos países onde se estabelecem.

Ela respondeu de forma educada e ofereceu também suas explicações. Mandou um vídeo sobre a instituição de Atanase e a explicação sobre algumas de suas obras mais importantes. Percebi que suas informações não eram tão elaboradas quanto as informações que eu tinha, e ela parecia ter uma visão bem próxima do que eu classificaria como “senso comum” sobre o tema: Instituição do bem, bilionário generoso, progressista, a favor da diversidade etc.

Mantivemos esse debate via WhatsApp por mais de uma hora até quando fui dormir. No dia seguinte, acordei com um longo texto em que ela expunha a sua opinião – francamente contrária à minha – dizendo que minha perspectiva era constituída apenas por opiniões e análises confusas. Respondi que a atividade de Ardelean não podia ser entendida apenas pela ponta aparente, a “benemerência identitária”, mas no contexto político do capitalismo transnacional de “portas abertas” que ele propunha, o que é uma forma de manter a miséria e a exploração de vastas porções do planeta.

A conversa se manteve por mais 6 horas com idas e vindas. Por duas vezes, já cansado, me despedi da conversa e fiquei sem responder, mas ela insistia em atacar minha posição tratando-me como exagerado e radical. No final do debate deixei claro que reconhecia que a minha posição era minoritária – para não dizer isolada – e que o nosso grupo precisaria apenas fazer uma votação para decidir. Partiu de Jesse uma pauta consensual:

“Certo. Então proponho uma reunião de deliberação e votação no Colegiado. Porque as negociações estão avançando e o nosso escritório tem um encontro marcado com a Fundação Century na próxima semana para uma conversa inicial. Até que me digam o contrário eu estou avançando no projeto com o aval de Mark.”

Como eu estava cansado aceitei de pronto, até porque esta era exatamente a proposta que eu estivera o tempo todo perseguindo. Concordei dizendo apenas que desejava que todos estivessem cientes do que esta proposta significava. Terminei nosso longo diálogo dizendo:

“Concordo. Sei que serei o voto vencido, mas gostaria que todos se comprometessem com essa escolha. Não acho justo que alguém no futuro venha a dizer que “não sabia destas questões quando foram apresentadas”. Certo?”

Jesse apenas respondeu “Perfeito” e nada mais falamos. Diante das lembranças e acontecimentos de uma semana atrás, imaginei que Mark havia me pedido para ir à sua sala apenas para me dar informações sobre nossas propostas e ações em Lippville. Talvez estivesse interessado em ouvir também o meu ponto de vista sobre o Atanase Ardelean, o que não me parecia provável, uma vez que na própria reunião mostrou-se claramente favorável a este patrocínio.

Depois de alguns minutos Mark entrou na sala e me cumprimentou. Trazia um sorriso estranho no rosto e uma pressa tão grande em me dizer algo que não se permitiu sequer fazer um preâmbulo.

Mark

– Meu amigo, falei com Jesse há pouco, Ela ficou muito incomodada com a conversa que tiveram na semana passada. Disse que você enviou um quantidade enorme de textos e vídeos para ela. Usou também fontes suspeitas para falar da Fundação Century – como o New York Times. Por esta razão acabei de mandar uma circular para todos os nossos colaboradores. A partir de agora você estará suspenso das nossas reuniões. Sua conexão com o Whatsapp do grupo está cancelada. Você terá uma semana para pensar nas suas atitudes e para compreender que não pode usar estes veículos de comunicação desta forma. Na próxima reunião você terá tempo para defender sua proposta, mas não poderá usar as fontes que usou até agora – elas não serão aceitas. Sua atitude em relação a Jesse foi considerada assédio. Como ela se sentiu incomodada, e eu acredito que só a vítima pode dizer dos seus sentimentos, é assim que vou considerar. Ahh, e antes que eu me esqueça, você está com mensalidades da “Green” atrasadas, faça o favor de pagar o quanto antes.

Nos primeiros segundos fiquei em silêncio, atônito e estupefato, realmente confuso. Eu não conseguia acreditar no que estava escutando. Percebi que os meus olhos escureceram de raiva, mas respirei fundo antes de dizer qualquer coisa e correr o risco de me arrepender. Olhei com o canto do olho para o meu celular e vi que meu acesso ao WhatsApp do grupo havia realmente sido suspenso. Era verdade; Mark havia me expulsado do grupo após escutar apenas uma parte da história. Considerou como “assédio” uma conversa livre, educada e cordial entre duas pessoas. Imediatamente veio à minha mente a pergunta: “se conversar com alguém por WhatsApp sobre temas eminentemente técnicos de forma educada e cordial pode ser considerado assédio, o que não seria?” Se uma pessoa pode retrospectivamente – já havia se passado uma semana – perceber que uma troca de ideias com um colega poderia ser considerada como assédio, porque essa mesma conversa com Mark e qualquer outro diálogo que tive em 20 anos trabalhando nesta instituição não poderiam também ser considerados assédio? Por que esta troca de mensagens em especial merecia ser chamada desta forma mas as ligações de Mark para a minha casa durante os 20 anos em que concordamos e discordamos em diversos assuntos da instituição não seriam também criminosas?

Percebi também que o que movia Mark era um espécie de zelo pelo “politicamente correto” com as demandas femininas, mas que também é frequentemente usado com outras minorias. Partia do princípio de que a queixa de uma mulher é verdadeira até prova em contrário, uma inversão do ônus da prova que me obrigaria a provar que não cometi nenhum delito, e não a ela provar que algo criminoso ocorreu. A justificativa de Mark era uma velha conhecida minha: “a vítima sempre tem razão”, que é uma das maiores aberrações jurídicas criadas pelo identitarismo. Ela surge de um conceito bizarro, que eu chamaria de “legislação subjetiva”, ou seja, a ideia de que qualquer um cria suas próprias leis, derivadas de seus sentimentos e percepções subjetivas, mas que deverão ser obedecidas por todos. Assim, se sou negro, exijo que as pessoas ao meu redor usem apenas as palavras que eu permito, pois que algumas tem efeito negativo em minha subjetividade. Se eu for mulher, não aceito que determinadas expressões sejam usadas, e nem mesmo o uso de argumentos fortes e definitivos. Nesta perspectiva, o outro sempre carrega uma dupla posição: vítima e juiz, pois que não há uma instância de lei externa e neutra; o próprio sujeito que se coloca como vítima é quem decide se as palavras e ações alheias que lhe atingem serão lícitas ou não.

Jesse nunca reclamou de nada durante nossa conversa. Pior: ela retomou o debate no dia seguinte, quando para mim já poderia ter sido encerrado. Ainda mais, ela manteve a conversa em duas ocasiões, mesmo depois de eu ter encerrado o debate e ter me despedido dela!! Se há alguém que poderia ter uma base qualquer para se queixar de um fantasioso assédio este seria eu…. e não ela.

Por instantes fiquei pensando que durante nossa conversa eu poderia ter usado uma piada, um gracejo ou qualquer coisa que pudesse ter um duplo sentido, e que isso pudesse tê-la constrangido. Por sorte nossa conversa estava toda no celular e eu poderia investigar com cuidado se isso porventura tivesse ocorrido. Todavia, apesar dessa minha “culpa masculina essencial” eu tinha certeza que nossa conversa foi absolutamente técnica e tocou em vários aspectos delicados da ligação da “Green” com a Fundação Century. Nada pessoal, nada áspero, nada dúbio, nada confuso e nada que pudesse se configurar como “assédio”

Na medida em que os segundos iam passando, e ainda sem saber o que responder, peguei o papel da mão de Mark, que ele parecia estar tentando me oferecer. Era uma cópia do email mandado para todos os membros da diretoria e associados. Meus olhos cravaram na palavra assédio que se situava bem no meio da página impressa, pulava do texto e se chocava contra a minha retina. Lembrei que o termo “harassment” e o termo “abuse” em inglês têm um sentido mais geral, porém em português “assédio” e “abuso” ganham uma conotação claramente sexual. Qualquer membro da diretoria que pusesse os olhos nesse e-mail imediatamente pensaria que eu estava mandando mensagens pornográficas para a minha colega ou fazendo insinuações indevidas. Esta seria, por certo, a primeira primeira coisa que pensariam, a impressão inicial, mesmo que a maioria dos meus colegas conhecessem a mim e a minha família há mais de duas décadas. Era inacreditável o que estava diante dos meus olhos.

Não fui procurado para esclarecer qualquer problema por parte de Jesse. Ela se comportou como uma colegial, uma menina de não mais de 12 anos de idade, confusa com o debate que tivera comigo. Ao invés de escrever uma mensagem diretamente para mim – ou mesmo me bloquear – foi queixar-se para Mark. Diante da dificuldade de metabolizar minhas informações e meus receios com a parceria que estava para se estabelecer ela se refugiou no estereótipo da menina indefesa diante do homem opressor. Já Mark, num surto de autoritarismo e grosseria, resolveu me punir sem que eu tivesse a oportunidade de me defender. Pior ainda: me puniu institucionalmente por uma situação que só poderia ser entendida como privada, já que minha conversa com Jesse não ocorrera no ambiente físico da nossa instituição, em seu horário de funcionamento ou em uma ação na qual ambos deveríamos tomar decisões relacionadas ao nosso trabalho. Não, tratou-se de uma gentileza de minha parte de explicar particularmente a ela a minha posição quanto à Century, para não atrapalhar o ambiente da “Green”. Essa minha grande mágoa: no afã de proteger as mulheres criamos um modelo onde sua defesa pressupõe tratá-las como tolas, ignorantes, desqualificadas e frágeis – como crianças, incompetentes para tomar decisões e incapazes de estabelecer limites.

Adeus, Mark

Poucos segundos e estes pensamentos todos se acumularam em minha cabeça, mas eu nada conseguia falar. Era inegável que a questão não se resumia ao fato específico da minha conversa – repetindo, cordial e respeitosa – com Jesse. Havia algo de pessoal com Mark, uma mágoa, um ressentimento de algo que fiz ou deixei de fazer. Talvez – como saber? – algo relacionado ao que eu sou. Mais do que um malfeito, algo da minha essência que me tornaria insuportável aos seus olhos, e a crise criada por Jesse sobre uma troca de postagens privadas nada mais fez do que permitir que estes sentimentos eclodissem e subissem à tona. Talvez não se tratasse mesmo de uma questão “relacional”, mas “ontológica”. No entanto, eu nada podia lembrar que justificasse estas ações. Nossa amizade de mais de 20 anos não possuía nenhuma nódoa grave que pudesse produzir ressentimentos de minha parte. Tivemos centenas de conversas, até desentendimentos, ligações que Mark me fazia no meio da noite, domingos, feriados e a qualquer momento para me falar de seus problemas pessoais e até perguntar como eu estava. Da mesma forma, não conseguia enxergar algo em minhas ações que pudesse produzir tamanho ódio no meu amigo.

– Isso que você está fazendo é um absurdo, Mark. Minha posição a respeito da Century é clara, cristalina e simples. Minha opinião não é a “Verdade”, mas tão somente a minha perspectiva, que tem tanto valor quanto qualquer outra. Entretanto, conheço todos os colegas da diretoria e sei que eles enxergam esse problema com olhos diferentes dos meus. Não vejo problema algum em ser “voto vencido” em qualquer debate, porque durante toda a minha vida me postei no contrafluxo da vida, abraçando causas perdidas, utopias distantes e sonhos inalcançáveis. Sofri durante anos com os ataques dos poderosos que denunciei. Fui atacado, expulso, humilhado e agredido por todos estes anos e nunca reclamei porque sabia que lutar por estas causas minoritárias é apenas semeadura para que a colheita seja feita por outros, nas futuras gerações. Da mesma forma eu hoje tenho garantidos os direitos que muitos conquistaram para mim no passado, e vários pagaram com a vida por sua ousadia. Por outro lado, uma instituição como a nossa, que se propõe produzir um ambiente mais livre, com menos toxicidade e sem venenos não pode reproduzir em seu seio a mesma violência que combatemos quando usada contra a Natureza. Se pretendemos humanizar o meio ambiente, retirando dele o lixo que nossa ganância acumulou, é justo que façamos o mesmo com nossas relações pessoais. Ou então seremos apenas hipócritas, que encontramos o cisco no olho alheio e não percebemos a trave a nos obliterar a visão.

Mark manteve-se sério sem pestanejar. Iniciou a falar sobre as regras que eu teria que cumprir para a próxima reunião e, como um professor de escola primária, me deu conselhos de como deveria me portar, assim como pedindo que eu aproveitasse o tempo de suspensão para reavaliar minhas atitudes. Não havia como não me sentir um escolar de 60 anos recebendo um “pito” da professora.

Dobrei o papel com a cópia do e-mail e coloquei no bolso do casaco. Tentei me levantar mais senti que estava pesando algumas toneladas. As minhas juntas estava enrijecidas e os meus músculos tensos e doloridos pelo choque dos últimos minutos. Mesmo assim me coloquei de pé, estendi a mão para cumprimentar pela última vez Mark e falei sobre a minha despedida.

– Caríssimo Mark… nada disso será necessário. Sei que minha visão é minoritária e se você assim o desejar não será preciso sequer colocar este tema em discussão. Logo você vai entender. Todavia, acho importante esclarecer que não fiz assédio de tipo algum. Não incomodei ninguém e apenas debati com Jesse para que ela entendesse minha perspectiva. Não falei com mais ninguém sobre o tema além da minha manifestação na última reunião da Green, e apenas contactei Jesse porque ela estava à frente da proposta e não queria que ela pensasse que eu a estava desprezando. Em nossa última reunião manifestei minha inconformidade pela ligação da Green com este tipo de organização de forma clara e concisa, sem interromper outras falas e sem retomar o assunto depois de ter me manifestado. Depois escrevi um texto no WhatsApp com a minha posição, igualmente de forma educada, para deixar claras as minha motivações. 

Suspirei com pesar e me preparei para finalizar a minha fala, controlando cada palavra para que elas não me traíssem e deixassem escapar a decepção que havia me tomado.

– Infelizmente, como fica claro a partir de agora, não há como continuar a trabalhar nesta instituição. Perdi completamente a confiança em você. Nada – literalmente – impede que qualquer um de nós telefone para a casa de um colega fora do expediente do trabalho para trocar ideias e, depois de um ato de cordialidade e amizade como esse, ser considerado um “assediador”. Não é mais possível correr este risco. Um lugar que cultiva esse tipo de relação está doente. Um lugar onde a confiança desapareceu não tem mais sustentação.

Baixei os olhos por uns instantes e finalizei.

– Espero que a Green continue em sua trilha de sucesso, em suas várias frentes de trabalho. Sei o quanto esta tarefa é importante e o quanto eu amei trabalhar aqui por mais de 20 anos. Aqui eu cresci, como ser humano e como cidadão. Sei da magnitude das responsabilidades e o quanto essa tarefa é prioritária no planeta, mas minha presença aqui se torna impossível. Eu jamais concordaria com o abuso que você está me submetendo, muito menos com as ameaças e as humilhações. Não tenho idade ou temperamento para aceitar este tipo de atitude. Também não quero mais ouvir o que você tem a dizer; eu entendo que isso foi produzido por uma terrível dor que você carrega, mas para a qual eu não tenho acesso e nem capacidade de ajudar. Peço agora apenas que aceite a minha saída e me esqueça. Que sigamos todos em paz.

Levantei-me sem dizer mais nada, enquanto Mark ainda tentou expressar algumas palavras para contemporizar. Apenas virei de costas e me dirigi à porta de saída. Olhei pela última vez para os quadros nas paredes, as fotografias, o azul do céu nas gravuras cheias de verdes e flores multicoloridas e abri a porta com a tristeza em carne viva na ponta dos dedos. Respirei o ar da rua e caminhei sem destino certo, à procura de um café que pudesse abrir as portas do entendimento, para que, assim, alguma luz pudesse entrar.

Anwar Ghazawwi, “Top Business”, ed. Princeps, pág. 135

Anwar Fayed Ghazawwi é um escritor americano de origem palestina nascido em New Hampshire em 1958. Estudou jornalismo em Yale e passou trabalhar como correspondente de guerra por vários anos. Foi contemporâneo de Chris Hedges na cobertura da Guerra da Sérvia, tendo sido gravemente ferido na época durante um bombardeio em Saraievo, necessitando voltar para os Estados Unidos para terminar sua recuperação. Depois desse episódio cobriu muitos outros cenários de guerra, até o seu derradeiro: a Guerra dos 51 dias em Gaza, nos ataques israelense que resultaram em mais de 2500 palestinos mortos, entre eles 500 crianças. Depois desse episódio voltou para sua casa em Austin no Texas e passou a escrever sobre o mundo corporativo, que conheceu bem durante as coberturas de conflitos pois, segundo ele “a guerra é acima de tudo um grande comércio. Iludem-se aqueles que enxergam nela apenas patriotismo; há um quinhão de cobiça imenso em cada combate”. Seu primeiro livro foi “Empire of White Delusions”, em que trata das empresas escolhidas para a reconstrução do Iraque destruído pelo imperialismo e a corrupção que coordenava as ações das companhias que se debruçavam por sobre o espólio de milhares de mortos e milhões em destruição. Depois seguiram-se “The Carpet Crawlers” e finalmente “Top Business”, que conta a história de um magnata da indústria do petróleo que “mudou de lado” e resolveu se dedicar à luta pela ecologia e pela preservação da natureza e da vida silvestre. Anwar é ainda músico e toca saxofone na banda de “folk” “Terry versus Ohio”. É casado com Norma Barrington, uma advogada de Austin e tem dois filhos e 3 netos.

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Miko

Não resta dúvida que para as esquerdas é fundamental nos aprofundarmos na luta antirracista, na luta por direitos humanos reprodutivos e sexuais (incluindo aí a luta pelo parto humanizado), na conquista da autonomia de corpos, na proteção aos grupos vulneráveis, etc. Modelos sectários baseados em identidades não cabem mais na nossa sociedade e não podem mais ser confundidos com as bandeiras históricas que defendemos. A segmentação artificial engendrara pelos laboratórios e “think-tanks” liberais americanos precisa produzir uma crítica consistente, severa, firme e dura.

Diante dos massacres a que são submetidos os palestinos, no maior ataque contra civis do século XX, é importante lembrar de um dos mais importantes combatentes da causa palestina da atualidade, figura constante em todas as entrevistas realizadas sobre a questão. Este homem se chama Miko Peled, que provavelmente poucos conhecem, mas é um israelense, por volta dos 60 anos e judeu. É filho do general israelense Matti Peled, herói da guerra do “Yom Kipur“, que assinou a declaração de independência de Israel e participou de ações de limpeza étnica na Palestina em 1948 e 1967, mas que ao se aproximar do fim da vida foi um das primeiros sionistas adeptos da aproximação com os representantes da Palestina para estabelecer um diálogo na busca de uma solução pacífica. Quando jovem, ainda vivendo em Jerusalém, Miko viu sua sobrinha morrer em um ataque suicida causado por um homem bomba do Fatah em 1997. No dia seguinte políticos e jornais israelenses clamavam por vingança e retaliação contra os terroristas árabes. Diante das câmeras a irmã de Miko, Nurit Peled, mãe da menina morta e uma conhecida professora judia israelense, disse em lágrimas para os jornalistas: “A culpa dessa morte é do governo de Israel, que nunca deu aos palestinos qualquer alternativa para além do terror. Não aceito nenhuma retaliação em meu nome ou de minha família, porque jamais aceitarei que uma mãe Palestina sofra a dor que agora estou sentindo”. Após a tragédia da morte de sua sobrinha de 13 anos, Miko começou sua jornada como ativista contra quem considera o principal responsável por essa violência: o regime racista de Apartheid sionista e o seu contínuo plano de ocupação violenta na Palestina.

Miko, alguns anos depois e já morando em Los Angeles, nos Estados Unidos, e trabalhando já como um profissional de artes marciais, conheceu na Universidade um grupo de ativistas palestinos e, apesar da desconfiança, aceitou escutá-los. Ao inteirar-se pela primeira vez da narrativa dos “inimigos”, dos “terroristas”, dos “bárbaros árabes” com mais de 30 anos ele viu seu mundo de crenças sionistas desabar.

Sim, eles – os sionistas – eram os terroristas, não os palestinos. Pela primeira vez entendeu o Nakba, a expulsão, os massacres, o êxodo e o exílio palestinos. No ano de 2012 escreveu um livro chamado “O Filho do General” e iniciou sua trajetória como palestrante, ativista, defensor dos palestinos, pela paz, na busca de uma solução desarmada, pelo BDS (Boycott, Divestment and Sanctions) e por uma consciência mundial sobre o regime de Apartheid de Israel. A importância de sua história está relacionada ao fato de que Miko não é um palestino árabe; nunca sofreu diretamente na pele a dor de ser estrangeiro em sua própria terra. Também não teve sua família morta ou sequestrada pelo exército de ocupação e sequer foi preso por jogar pedras em quem matou seus vizinhos e primos. Porém, Miko foi convencido por amor e não por oposição.

Um palestino “identitário” o veria como um inimigo de sua identidade árabe, por não ter sua língua e sua pele mais escura. Por ser judeu jamais seria aceito, e suas palavras seriam bloqueadas com o silenciamento do “lugar de fala”. Ora, “como você ousa falar da Palestina, seu judeu opressor?”, poderia ser a reação dos que não enxergam nele a identidade palestina, a única que lhe garantiria direito de falar. Entretanto, Miko sabe que a Palestina é o seu lar também e por isso mesmo não aceitou jamais ser calado. Ao lado de outros ativistas, árabes e judeus, debate abertamente uma solução para a Palestina, sem levar em consideração a cor da pele, a origem, a cultura ou a língua. Ousa discordar em alguns temas com o direito que a paixão pela Palestina lhe confere. Para Miko Peled, o que une todos esses personagens na busca para a paz na Palestina é o que nos faz humanos, o traço que nos une para acima das diferenças étnicas e culturais.

Da mesma forma, muitos homens brancos sabem que um mundo que oprime mulheres, gays, trans e que despreza negros também é o seu mundo e por esta razão desejam falar de sua inconformidade e lutar contra estas injustiças. Porém, muitos são silenciados por um identitarismo sectário que se move por ressentimentos e preconceitos, que apenas afastam muitos dos possíveis aliados. Precisamos de um mundo com mais personagens como Miko Peled e menos revanchismos estéreis.

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Fracassos

“Somos o que resta de uma montanha de escombros”, já dizia meu amigo Max. Os fracassos, mais do que as conquistas, são o que nos moldam e aperfeiçoam. Esta semana tivemos a vitória esmagadora de alguém que representa o atraso, o machismo, a corrupção e a perversão na política para ser o chefe do legislativo federal, numa reprise macabra da eleição de Eduardo Cunha. Tivemos a queda das máscaras lacradoras no Big Brother e o fim do sonho autoritário e farsesco da Lava Jato.

Os ídolos com pés de barro, Moro e Dalanhol, caíram das alturas: um queria ser presidente, o outro desejava uma estátua. Ambos terão que se contentar com o esquecimento. Também vimos um partido à esquerda “cancelar” uma co-deputada de um mandato coletivo – sem direito a defesa – por discordar de um texto publicado nas mídias sociais, na mais escandalosa demonstração de amadorismo político e falta de preparo para as discordâncias naturais e o contraditório.

Se não soubermos aprender com estes fatos então teremos perdido uma oportunidade histórica de fazer a necessária depuração nos quadros da esquerda.

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Arquivado em Pensamentos, Política

Humanização de direita

É possível ser a favor da Humanização do Nascimento e ser “fascista”?

Acho que não, mas é melhor só usar a palavra “fascista” com respeito adequado ao seu conceito. Talvez melhor seria perguntar se é possível ser a favor da Humanização e ser de direita. Existem milhões de matizes que exigem avaliação bem minuciosa. Não se trata de uma postura do “Bem contra o Mal”. A realidade é bem mais complicada do que qualquer limite estabelecido pelas simplificações maniqueístas. Por exemplo, nos Estados Unidos a situação dos humanistas no espectro político é bem interessante no que diz respeito às suas origens no início dos anos 70, onde seu aparecimento esteve ligado aos movimentos “new age” e “espiritualista”. Por esta origem atraiu muitas parteiras “espirituais”, ou “spiritual midwives”. Isso lembra alguma coisa? Pois é…

Além disso, essa fonte atraiu parteiras cristãs, que se opõem ao aborto de forma muito intensa. Algumas criaram o mais importante jornal de humanização do nascimento nos EUA. Outra curiosidade: muitas parteiras espirituais, oriundas dos movimentos “beatnik” e “hippie” são brancas, e foram recentemente atacadas pelas parteiras e doulas negras, que se sentem agredidas pelo seu “racismo estrutural”.

Com isso houve uma cisão entre os movimentos de humanização liderados pela MANA e os fortes grupos identitários de parteria negra. Como é bem sabido, os movimentos contrários ao identitarismo nos Estados Unidos se situam à direita do espectro político.

Conheço mulheres que são favoráveis à humanização do nascimento exatamente porque desejam garantir seu direito de parir em casa, um direito individual mais afeito aos propósitos da direita, já dentro do espectro liberal. O mesmo com o desejo de “homeschooling” ou contra a “obrigatoriedade de vacinas”. Nos meus grupos da Internet existe muito desse discurso que se poderia chamar “libertário”. O mais chamativo dessas comunidades é “Separation of Birth and State”.

Sim, humanização e de direita, contra a ação do Estado nos nascimentos. Assim, é razoável imaginar que pessoas que enxergam o mundo pela perspectiva da liberdade, da autonomia e da livre determinação estejam à direita, contra o reforço do controle estatal e à favor da desregulamentação.

Humanização conservadora. Por quê não??

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Arquivado em Ativismo, Parto

Jogados à direita

O grande número de homens brancos e cis que foram jogados para os braços da direita por serem tratados diariamente como inimigos, “machistas“, “esquerdomachos“, “mascus” e todo tipo de agressão (bastando para isso discordar do catecismo fechado das lideres) mostra porque a esquerda identitária se tornou um ambiente tóxico para os homens que gostariam de uma sociedade com justiça e equidade de gênero.

Por mais que a mídia transforme o homem contemporâneo como um predador – muitas vezes com justiça – alguns homens querem equidade de gênero e justiça social e desejam uma sociedade mais igual para todos. Ou deveríamos achar que só os negros queriam o fim da escravidão? Ou podemos presumir que apenas as mulheres querem o fim do patriarcado, um modelo social em que 90% dos assassinados são homens e 80% dos suicídios são também entre os eles?

Eu pergunto: Que tipo de homem não deseja mudar uma sociedade onde mulheres são vítimas de feminicídio cada duas horas, onde uma dessas vítimas pode ser a sua mãe, sua filha ou a sua irmã?

Que tipo de sexismo absurdo é esse que imagina que só mulheres querem uma sociedade mais equilibrada? As mulheres com quem convivo não lutam por uma sociedade boa para si mesmas; pelo que elas falam, essa luta só faz sentido se for bom para todos (ou todxs).

Claro que existe um problema sério de machismo e racismo na sociedade, mas quando o “branco“, o “cis” e o “homem” são vistos e tratados como inimigos – e não os machistas, os racistas e os homofóbicos – a decisão óbvia, natural e JUSTA que muitos deles tomam é procurar um lado na disputa de ideias que não os trate como inimigos e não os veja com desprezo.

Sério que alguém acha que essa sociedade é boa para os homens? Por que então se matam uns aos outros? Por que arrancam a própria vida às pencas? Por são os mais afetados pela depressão? Por que são os que mais se destroem pelo álcool, pela cocaína, pela maconha, pelo cigarro? Se é tão bom ser homem porque tantos querem acabar com a dor que sentem, e que está obviamente ligada à sua condição masculina?

Sério que alguém enxerga o mundo como um lugar de prazer desmedido para os homens e um martírio sem fim para as mulheres? Exercitemos a empatia, se é que queremos mais homens entendendo o sofrimento e as dificuldades de ser mulher.

Por isso mesmo que estes homens – que geralmente são bons pais e excelentes amigos, apesar de ainda reproduzirem algo da herança preconceituosa que receberam – desistem de somar nesta luta quando percebem que serão vistos como eternos adversários.

O presidente do Brasil e seus filhos foram eleitos por serem machistas e racistas (e não apesar disso), mas ninguém teve coragem (ou muito poucos) de perguntar quais os erros cometidos pelos movimentos identitários nesse processo. Por que tanta gente de centro foi jogada para a direita mais abjeta?

Palestinos perceberam muito cedo esse dilema ao não desprezarem o auxílio valioso de judeus que se somaram à sua luta por uma Palestina livre. Entre os meus amigos não se permite nenhum ataque aos judeus ou ao judaísmo, mas apenas ao sionismo e sua ideologia de colonização, limpeza étnica e supremacia racial. Por isso os autores judeus por uma Palestina livre são tão celebrados entre os árabes – para não serem jogados no colo dos supremacistas.

Existem, por certo, mulheres machistas, e eu arrisco dizer que são a maioria nesse país – mas não na minha bolha de classe média. Entretanto, não acho justo dizer que “as mulheres cis e brancas no Brasil são machistas“. Algumas realmente são, mas não quero jogar toda as mulheres com boas ideias no colo dos liberais.

Até porque, como estamos vendo, o nome disso é suicídio.

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Partidos identitários

O que pensar disso? Um partido feminista? Ou seja, um partido de mulheres. O que pensar de um partido que se produz pela exclusão de um gênero? Mas se isso for realidade, por que não um partido só de negros ou gays, pelas mesmas razões? Que tal um só de judeus? Isso me parece o identitarismo levado às últimas consequências, em uma sociedade de “cada um por si”, pelo seu grupo, cada vez mais isolados com propostas centradas em seus minúsculos segmentos.

Minúsculos mesmo, até porque dentro do “partido feminista” haverá uma ala gay. E também uma ala negra. E dentro dela uma ala negra-gay. E mais uma ala feminista trans. E todas vão se odiar e se combater porque é da natureza humana lutar por visibilidade e espaço. É o que vemos dentro do feminismo, mas também no movimento negro, no socialismo e no liberalismo. A fragmentação infinita leva ao grupo de si mesmo.

Se a luta feminista é válida e nobre ela também é uma luta de mulheres e para mulheres, e não necessariamente uma luta pela sociedade. Para isso existem propostas mais abrangentes que não nos separam em sexo, raça, cor de pele ou religião. Um partido feminista seria, para mim, uma profunda aberração, tanto quanto o seria um partido negro ou gay. No meu ver as mulheres deveriam tomar de assalto os partidos centrados em ideias e propostas para a sociedade inteira, e não para um gênero. Também não por qualquer outra identidade. O fato da luta ser “nobre” não torna um partido em seu nome justo ou adequado.

Alias… o partido feminista seria de direita? Esquerda? Pró ecologia? Socialista? Mas… Como votaria uma feminista ferrenha de esquerda num partido feminista de orientação liberal? O que pesaria mais, sua filiação com o feminismo ou sua visão de sociedade? Como se insere este partido na questão da luta de classes? Um partido feminista, no meu modesto ver, composto apenas por mulheres de forma institucional (e não como é hoje, onde as mulheres têm pleno acesso, e apenas são menos votadas por questões da cultura patriarcal) é um absurdo. Será nanico exatamente por enxergar a sociedade por um funil de gênero, tão inaceitável quanto um partido constituído apenas por imigrantes, aposentados, negros ou gays. Na minha opinião, é um desserviço ao próprio ideário feminista, que prega pela diversidade e pela inclusão. .

O fato de haver um problema sério e as lutas por equidade e justiça serem nobres e necessárias não impede que as propostas na defesa desses temas possa ser errada. Um partido construído com base na exclusão seria um fracasso. Entretanto, acho surpreendente que algumas pessoas se deixem seduzir por este tipo de identitarismo radical. Sabe onde encontramos isso? Em Israel. Sabe onde ele se desenvolveu a partir de 1948? Na África do Sul. Na origem havia um sentimento nobre de proteger uma parcela oprimida (judeus na Europa e uma minoria branca da sociedade africaner), mas o que se criou foi monstruoso. Sabem que na Rússia foi criado um partido dos bebedores de cerveja? Pergunto: o que isso significou de positivo para a política russa?

Um partido deve ser promotor de propostas para a sociedade como um todo e não para representar apenas um segmento dela, mesmo que majoritário!!! Eu não vejo nenhum problema em que as mulheres criem movimentos, ONGs, frentes parlamentares, associações cívicas e o escambau. O que não posso aceitar é um partido cuja proposta seja excludente (olha o Paulo Freire aí de novo) e que governe apenas para a parcela a qual representa.

Alias… quem diz isso é Bolsonaro quando vocifera “As minorias devem se curvar às maiorias”. É Bolsonaro que diz governar apenas para quem votou nele. Um partido feminista é um partido para as mulheres e não para a sociedade. Isso, no meu modesto ver, é inaceitável e agride as próprias bases do feminismo. Como eu já disse, apesar de ser uma trajetória lenta, negros, mulheres e gays deveriam tomar de assalto os parlamentos através das agremiações políticas e por meio de propostas para a sociedade, e não apenas através de sua visão identitária.

“Ahhh, mas é demorado. Ahhh mas o mundo é machista”. É verdade, mas um partido como esse jamais acabaria com o machismo. Pelo contrário, produziria um efeito rebote contrário na sociedade.

A propósito… É claro que há espaço nos partidos para as mulheres!!! Por lei 30% dos candidatos precisam ser mulheres!!! Muitas são catadas à unha para preencher as vagas. O problema é a relutância das próprias mulheres em votar em mulher, mas isso não termina com decreto, e sim com educação, paciência, formação e combate sistemático ao modelo patriarcal excludente da sociedade. Creio mesmo que os políticos fazem menos do que deviam, mas são votados por gente que não se importa muito com isso. As minorias deveriam se revoltar, mas não através de projetos anti democráticos ou excludentes. Aliás…. essa é a visão anti política de Bolsonaro. “Já que os políticos são uma porcaria vamos governar de forma autoritária e com militares”.

É isso que queremos?

Para exigir respeito não é necessário criar um partido excludente. Isso é absurdo. Além do mais é da essência dos partidos dominar a cena política para implementar suas ideias para toda a população – e não apenas uma parte dela, mesmo que majoritária.

A criação de um partido de mulheres, feminista e excludente é, para mim, um anátema e uma quimera. Não é a toa que foi rejeitado pelas democracias de todo o mundo. Um partido assim seria como o Nasionale

Não se acaba com a violência com mais violência e não se extermina a exclusão com mais exclusão. Paz e inclusão são as respostas, mesmo quando mais são reconhecidamente mais demoradas.

Os “homens cis” adorariam esse partido. Finalmente poderão dizer que seus medos tinham fundamento. Dirão, e com razão, que as mulheres ameaçam a democracia criando um partido que, se for vitorioso, governará apenas para uma parcela da população, marginalizando metade do país – que jamais poderá participar das decisões.

Pensem nisso…

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Padrões identificatórios

Quando uma jovem negra diz na TV que sempre quis ser médica porque sua mãe era da enfermagem e a “medicina exige mais estudo” há uma questão que cabe analisar. Existe aí uma lição para os identitarismos, tanto o feminismo quanto o racialismo: quando um sujeito muda de classe essa mudança se torna superior e mais importante do que suas identificações anteriores de gênero ou raça. Uma negra quando se torna médica muda de status e sobe na estratificação social, e suas conexões anteriores com o feminino ou a negritude ficam “desbotadas”.

O fato de ela ser uma médica negra que tratou a enfermagem de forma diminutiva é o centro do meu argumento. Como médica ela passou a se identificar com seus pares, e sua condição de mulher, negra, pobre e filha de enfermeira ficou para o passado. Agora ela está em outro padrão de grupo, com quem se identifica. É claro que a enfermagem não estuda “menos”, apenas estuda diferente, mas o fato de ela fizer isso tão facilmente é porque ela sucumbiu à narrativa comum da Medicina, preponderantemente preconceituosa e arrogante em relação às outras profissões da saúde.

O mesmo fenômeno acontece com médicas que atendem mulheres: as obstetras. Com quem se identificam elas quando confrontadas com a questão tensa da violência obstétrica? Com as vítimas, mulheres como elas, ou com os opressores, doutores como também elas são?

A resposta já sabemos, e nossa natureza de autopreservação sempre nos coloca naturalmente ao lado dos mais fortes

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Liberdade, liberdade

Recordo que há alguns anos escrevi um artigo que falava criticamente do racismo que sobrevive no nosso meio e das suas conexões com a escravidão no Brasil. Para ilustrar o texto coloquei uma imagem da internet com um torso negro masculino envolto em uma grossa corrente. Recebi alguns elogios pela iniciativa (um obstetra falando de racismo institucional não é muito comum), mas no dia seguinte um famoso grupo identitário virtual me escreveu dizendo terem gostado do texto, mas que não aprovavam a imagem. Disseram que era hora de desvincular os negros da escravidão. Respondi explicando que o texto falava explicitamente da escravidão e suas repercussões, quase um século e meio após sua abolição, mas elas ficaram irredutíveis em sua proposta.

Eu troquei a imagem por outra (achei que não valia a pena a animosidade por um detalhe). Coloquei uma barriga grávida e negra, mas percebi o risco que havia nessa proposta de censura (que se limitou a um pedido). E se eu tivesse me negado? E se eu insistisse na imagem? Que tipo de represália eu poderia sofrer?

Quando escrevi meu capítulo no livro “Birth Models that Work“, da antropóloga Robbie Davis-Floyd, recebi um “sinal de luz” da revisora que achava que meu texto “essencializava” a mulher ao exaltar suas capacidades de gestar e parir, e isso podia incomodar algumas feministas. Desta vez bati pé e tive uma áspera discussão ao telefone que terminou com “então pode retirar o capítulo do livro“. Não foi necessário e minha contribuição nunca fui criticada por ter essa característica.

Liberdade de expressão é uma falta que eu vejo de maneira muito clara no discurso das esquerdas. As estúpidas expulsões de bolsominions de manifestações, ou mesmo negando-lhes o direito de falar, mostram a face autoritária que ainda sobrevive nesse meio. Cabe a nós, do campo progressista, eliminar qualquer forma de autoritarismo e censura, e para isso precisamos pagar o preço que se fizer necessário.

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