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Contexto

A verdade de uma fala estará sempre na dependência do contexto onde foi dita. Sem isso não há como avaliar seu sentido, pois muitas vezes ela pode querer dizer exatamente o oposto do que está enunciado. Não quero com isso invalidar frases racistas, misóginas e homofóbicas, mas afirmo que é essencial que cada fala seja analisada em seu contexto para, só depois disso, fazermos um juízo. Como diria meu amigo Max, sem o contexto em nossas falas não somos mais que máquinas que falam, criaturas cujas palavras carecem de alma e simbolismo. Sem a linguagem nossas palavras viram meros símbolos operacionais, que apenas nos permitem comunicar como abelhas sinalizando o lugar das flores. Quer um exemplo?

– Quer tomar um sorvete?
– Capaz.

Digam: ela aceitou ou não? Quem é do Rio Grande do Sul sabe que não há como saber. Nosso falar sempre vai depender do contexto, o que inclui a entoação, o olhar e o jeito de dizer. Para formar um juízo sobre uma afirmação qualquer é fundamental saber onde ela está inserida. Vou dar como exemplo uma antiga fala do meu pai, sobre a qual escrevi um texto há mais de dez anos, na qual ele discorria sobre um técnico de futebol. Dizia ele:

– Ele é um excelente técnico, mas pesa contra ele o fato de ser negro.

Então? Essa fala é racista? Seria se o contexto fosse “negros não sabem comandar jogadores e não entendem de tática”. Todavia, o que meu pai estava dizendo era o oposto disso: sua intenção era afirmar que as críticas seriam sempre mais pesadas devido à sua cor. “O fato de ser negro vai fazer com que sofra preconceitos, e seu brilhantismo será eclipsado pela visão racista e retrógrada de parte da sociedade” Como eu sei a verdadeira interpretação? Pelo contexto, por estar presente e por conhecer a fundo o interlocutor. Portanto, uma frase que poderia ser interpretada como racista se fosse recortada e retirada de sua fala era, em verdade, uma crítica à falta de oportunidades para técnicos negros e uma queixa às injustiças com o trabalho das pessoas negras que ocupam estes cargos.

Espero ter sido claro…. (opss!)

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Armadilha

Hoje tive que me afastar de uma ex-amiga, defensora da “nova era”, daquelas ligadas às “deusas”, ao “sagrado feminino”, à “liberdade” e contra a “opressão dos homens”. Tenho para mim que muitas destas mulheres são o contraponto feminino dos ativistas chauvinistas da extrema direita. Não todas, por certo, mas muitas delas têm o mesmo discurso excludente dos mais arraigados defensores do machismo. A briga surgiu por um texto que mostrava uma mãe e uma filha usando burcas e dizendo que estas mulheres deveriam ser resgatadas da opressão que sofrem em suas culturas. No texto a autora tratava de forma profundamente ofensiva as mulheres muçulmanas, mas com uma pegada “patronizing“, tratando-as como coitadinhas, indefesas, frágeis e submissas, mostrando um profundo desconhecimento do mundo islâmico. Como eu disse anteriormente, o interesse era mostrar que as mulheres no ocidente, apesar da opressão que sofrem, estavam protegidas por uma cultura superior e democrática. Puro suco de orientalismo.

O texto era uma colcha de retalhos de clichês islamofóbicos e etnocêntricos. Entre tantas pérolas de misandria, sobressai a frase que mais me irritou: “Todos sabem que as mulheres maduras são as legítimas condutoras da civilização”. Ou seja, a condução da civilização não será feita pelos humanos, pelos cidadãos, pelos membros de uma sociedade (de preferência os mais aptos e capazes), os políticos ou os sujeitos mais votados em eleições livres. Não… será feito por mulheres maduras. Para a autora existe um gênero que é mais competente e mais capaz de comandar uma sociedade, e com mais sabedoria. Sim, poderia ser uma cor ou uma religião, mas neste caso foi um gênero (e uma faixa etária). Acham exagero? Então façam o exercício de trocar o gênero e me digam como classificariam esta frase: “Todos sabem que os homens maduros são os legítimos condutores da civilização”. Machismo que chama não? Como devemos considerar as pessoas que acreditam que as mulheres são mais capazes do que os homens para controlar a cultura, a política e a sociedade como um todo? Se condenamos manifestação de supremacismo do gênero masculino (machismo), da cor da pele branca (racismo) e da orientação sexual heterossexual (homofobia) porque deveríamos aceitar um texto que exalta a pretensa superioridade moral de um gênero sobre outro?

“Ahhh, mas e os 80 séculos de machismo”… “isso é mimimi de macho”…. “male tears”, etc. Pois eu apenas digo que se as mulheres realmente esperam que os homens lutem contra os desníveis criados pelo modelo patriarcal devem abandonar um discurso supremacista e preconceituoso. Porém, isso não foi o pior. O que me deixou profundamente preocupado com o debate com esta senhora, foi o fato de que o texto era evidentemente uma isca para capturar um tipo de personagem clássico das redes sociais: pessoas que desejam lutar contra o patriarcado mas acreditam que o alvo são os homens – e não o sistema. Uma coisa chamou à atenção logo de início: o texto foi escrito por uma tal de “Anna Park”, um nome tão genérico quanto Maria Souza. Tudo leva a crer que seja um texto apócrifo, escrito por AI, cujo único objetivo é estimular a ideia de uma distância civilizacional entre nós e o Oriente. A disseminação desse tipo de lixo, que visa capturar mentalidades identitárias que seriam simpáticas à pauta das mulheres islâmicas, nada mais é que uma armadilha imperialista cujo objetivo é desviar a atenção do público – em especial as mulheres – do massacre e da carnificina que está sendo realizada na Palestina. Não só isso, mas também para preparar o terreno para uma futura guerra contra os “bárbaros e infiéis”.

O texto, em última análise, quer estimular a desumanização dos árabes e muçulmanos, para que futuras bombas atômicas no Oriente Médio sejam vistas como uma forma de salvar mulheres, gays, trans e vegetarianos da cultura depravada que os oprime. Não sejam ingênuos: este tipo de discurso correu livre na primavera árabe, no golpe frustro na Praça da Paz Celestial e no Irã. É por esta fresta cultural que o imperialismo vai atacar, mas não deveria causar espanto que as mulheres, gays, negros, indígenas serão – mais uma vez – massa de manobra do imperialismo, produzindo uma cortina de fumaça das verdadeiras razões das guerras que estão destruindo o planeta. “É pelo petróleo, seus tolos”, não pelo tamanho da saia, casamento gay, visibilidade negra e pronomes!!! É preciso combater frontalmente este tipo de armadilha das redes, que usam mentes frágeis e compassíveis para dourar a pílula amarga da submissão à ordem imperialista

E vejam, não me cabe tratar de questões particulares; cada um sabe a flor e a cruz que carrega, mas posso entender o que significa um choque cultural. Imagino como seria há 100 anos, antes da Terra se tornar uma aldeia global, se eu fosse me relacionar com uma mulher de uma cultura onde os relacionamentos são, como regra, abertos. Como eu me sentiria? Seria injustificável meu desconforto? Estaria ela errada? E se eu fosse visitá-la em casa e todos de sua família estivessem nus, como indígenas? Seriam eles todos depravados? Estaria errado na minha surpresa? Compreendo o quanto os atritos entre diferentes culturas podem ser complexos, mas prefiro sempre adotar uma posição de relativismo cultural. O etnocentrismo, e o olhar de censura das populações europeias aos povos colonizados, levou a muitos genocídios. Respeitar – mesmo sem concordar!!! – com as posições divergentes é sinal de maturidade, tanto de sujeitos quanto de culturas. Desta forma, é necessário respeitar todas as culturas em qualquer circunstância, o que não significa que não seja necessário debater, questionar, criticar e mesmo condenar as culturas onde a plenitude dos direitos humanos não são obedecidos.

Façamos um exercício: pode o seu corpo ser comandado por alguém além de você? É lícito que alguém esteja no controle dele, acima de sua vontade? Então, partindo desse princípio, deveríamos invadir países onde o aborto é condenado e as mulheres presas? Deveríamos atacar países onde a monogamia é a norma? Ou deveríamos esclarecer os homens e as mulheres das vantagens de um sistema mais libertário? O drama dessa questão do comportamento, em especial a sexualidade, é que ela é usada como bandeira para o imperialismo. Esse é o grande risco!!! Não é por outra razão que os movimentos identitários são mal vistos em muitos países, como na Rússia, por exemplo. Ora, os russos não tem nada contra a orientação sexual de alguém, tanto quanto nós, mas sabem que estes movimentos são utilizados como ferramentas pelo Império para desestabilizar a cultura e o poder político.

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Islamofobia

Resolvi escrever sobre o tema porque vejo o trabalho intenso das identitárias atacando o Irã e fazendo o serviço sujo do imperialismo, o que vem ocorrendo com muita frequência na Internet. Para isso usam fotos retiradas de contexto para disseminar falsidades contra o islamismo, tratando-o como uma “religião do mal”, selvagem, brutal e ofensiva às mulheres. Fazem isso agora, ora atacando árabes, ora ofendendo os persas. Aliás, para estas ativistas, é tudo a mesma coisa.

A foto de cima foi postada em vários sites dizendo se tratar de casamentos em grupo de crianças no Irã. Quem postou foi uma mulher que se diz de esquerda, afirmando que estes países são criminosos e protegem a pedofilia. Quando analisamos a foto e buscamos sua origem (por busca reversa) percebemos que não é no Irã, mas em Gaza e sequer é recente: é uma foto de 2009. E não são noivas na imagem, mas “damas de honra”, um costume milenar que também ocorre no ocidente. São meninas vestidas com o mesmo estilo das noivas para simbolizar a função precípua das mulheres – do presente e do futuro – como guardiãs da vida.

Por certo que esta visão da mulher na sociedade pode ser questionada. Nada nos impede de analisar criticamente costumes sedimentados. Cerimônias, costumes e mitos são transitórios nas culturas; eles refletem os valores sociais e os disseminam. A própria cerimônia de casamento é um reforço dos valores patriarcais, uma celebração da mulher como elemento central da sociedade. No ritual do casamento ela é o centro das atenções e das homenagens, sendo o marido sempre um personagem secundário. Entretanto, ali se estabelece um compromisso deste com aquela, o que forma a base do patriarcado.

Hoje os casamentos são bem diferentes daqueles do início do século passado e antes. Os casais são muito mais velhos, a cerimônia mais curta, a pergunta infame “se alguém souber de algo…” desapareceu e os vestidos são muito mais diversificados. Essas diferenças refletem a mudança de valores: a virgindade não é mais tabu, a submissão da mulher não é explícita, os casais tem múltiplas obrigações, os compromissos e responsabilidades são mais bem divididos, etc.

Todo mundo tem uma antepassada que pariu antes dos 15 anos. Para populações envolvidas em mortes precoces, pestes, guerras e fome não havia como esperar muito; este era um imperativo social, e assim o foi por milênios. O adequado entendimento dos significados e importância da infância nos mostrou que adentrar na maternidade com tão pouca idade era um prejuízo terrível e irrecuperável, em especial para as meninas. Com o tempo fomos abolindo essa prática, até os dias de hoje onde este costume se tornou proibido e até criminalizado.

Os países árabes e os persas também tem essa consciência, apesar de muito dos valores patriarcais mais ultrapassados ainda existirem por lá. Hoje não há como defender a prática de casamentos que envolvem menores de idade, e essa prática precisa ser combatida no mundo todo através da conscientização e da educação. Entretanto, o número de casos de gestação na adolescência no Brasil e nos Estados Unidos (e em todo o ocidente) mostra que este não é um problema exclusivo do Oriente e da Ásia. Nos Estados Unidos, como exemplo, 300 mil crianças menores de idade se casaram entre os anos 2000 e 2018, a maioria delas consistindo de meninas menores de idade casando com homens adultos.

De acordo com a organização Girls not Brides, mais de 2,2 milhões de menores de idade são casadas no Brasil ou vivem numa união estável – cerca de 36% da população feminina brasileira menor de 18 anos. O Brasil é o quinto país do mundo em números absolutos de casamento infantil. Na América Latina, o México fica em segundo lugar, com 1,42 milhão de meninas menores de 18 anos casadas ou vivendo em união estável. Essa situação atinge 26% da população feminina mexicana menor de idade.” (veja mais aqui)

A imagem da festa em Gaza mostra apenas uma cerimônia com meninas fazendo o papel de acompanhantes das noivas, mas o identitarismo busca nesta imagem tratar o Oriente como um lugar onde o abuso é exaltado. Essas imagens são maldosas e oportunistas e seriam tão mentirosas quanto as imagens aqui ao lado, se fossem apresentadas no Irã como o “casamento de crianças no Brasil”, sem apresentar o contexto da cerimônia, onde as crianças ocidentais são apenas “aias” e estão fazendo o mesmo papel das meninas em Gaza. Sobre a foto na Palestina, resta a explicação de quem organizou o casamento coletivo:

“Ahmed Jarbour, o oficial do Hamas em Gaza responsável pela realização da atividade, disse à WND que a garota mais nova a se casar na cerimônia tinha 16 anos. Disse também que a maioria das noivas eram maiores de 18 anos de idade. Jarbour, assim como dois outros oficiais de alto escalão contatados pela WND, se sentiu ofendido pela sugestão de que o Hamas estava financiando o casamento de crianças. Ele explicou que as menores vistas faziam parte da família do noivo ou da noiva. Ele disse que se trata de uma tradição as menores se vestirem de vestidos semelhantes aos das noivas. Disse que as meninas que aparecem no vídeo descendo um corredor com os noivos são membros da família do noivo ou da noiva. Em múltiplas ligações realizadas para os palestinos que participaram do casamento os mesmos afirmaram que as garotinhas não eram elas mesmas as noivas. O Hamas, entretanto, celebrou o casamento como uma vitória. “Nós estamos dizendo ao mundo e à América que eles não podem nos negar a alegria e a felicidade”, Mahmoud al-Zahar, Chefe do Hamas em Gaza, disse aos noivos no evento.”

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Black Cleópatra e o “novo” Guarani

A Cleópatra de pele escura, e o debate que ocorreu a partir da série da Netflix, mostra bem os limites do identitarismo. Provavelmente para conseguir engajamento, criando uma polêmica desnecessária, a série acabou escalando uma atriz negra para o papel principal. Contrariando as vertentes históricas oficiais que demonstravam que Cleópatra era Macedônica – portanto branca – os produtores insistiram na escolha. Não deram importância ao fato da cultura egípcia ser desconsiderada e não se preocuparam que fatos históricos fossem aviltados e torturados; o que vale é lacrar, mostrar-se “moderninho” e supostamente defender minorias.

Creio que poucas coisas são mais prejudiciais à causa dos negros e à luta contra o racismo do que fomentar histórias como esta. O mundo árabe está justamente indignado pela falsidade histórica do documentário, e a culpa disso acabou recaindo sobre a agenda identitária.

O que me impressiona é que bastam cinco minutos de leitura de mitologia africana para maravilhar-se com suas histórias, lendas e mitos. Cabe então a pergunta: por que é necessário burlar a história egípcia para levar adiante a causa dos negros? Por que não levar às telas as incríveis narrativas épicas da África sub-sahariana?

E digo mais: “Black Panther” fez um gigantesco sucesso de público e crítica com atores negros e a partir da fantasia de uma sociedade utópica racial, a terra de Wakanda. Assim, não se trata de preconceito contra a desenvoltura de atores negros ou com histórias com temática negra, mas de evitar que esse tipo de lacração venha a impedir a real emancipação das comunidades negras pela violência produzida contra os fatos e contra outras culturas.

E antes que critiquem, quero lembrar que há 40 anos eu mesmo já dizia: “Jesus nunca foi branco; ele era um Palestino de pele escura“. Se é importante afirmar um “Jesus negão”, porque não seria justo aceitar uma Cleópatra grega – e branca?

Destruir – ou perverter – obras clássicas por motivos ideológicos não tem perdão. E não são poucos os que já estão em desacordo com este tipo de revisionismo; no mundo inteiro vozes estão se levantando contra este ataque identitário, que deseja modificar livros como a “Cabana do Pai Thomas” e até obras clássicas como “E o Vento Levou”. Isso é inaceitável e ofensivo à cultura. Atores como Tom Hanks se manifestaram contra este abuso há poucos dias, e leis estão sendo criadas para proteger que obras clássicas não tenham seu conteúdo alterado. Mudar estes textos sem considerar sua relevância no contexto em que foram criados é um ato criminoso.

É impossível estar de acordo com essa perspectiva, que mente e que falseia a história. Quando vejo as justificativas de quem apoia as “maquiagens” feitas, percebo que elas são como aquelas do livro “1984”. Nesta obra George Orwell descreve o Ministério da Verdade, que modificava os documentos, livros e a própria história em decorrência das contingências políticas vicariantes. Da mesma forma, estuprar “O Guarani” para dar conta de interesses de hoje é um crime “lesa humanidade”, em especial se estas “novas versões” servem às questões identitárias.

Destruir a história de Cleópatra ou o drama de “O Guarani” por conta de pressões e padrões politicamente corretos não vai ajudar em absolutamente nada na proteção de negros e indígenas, mas vai municiar os detratores desses movimentos como já se observa. A “Cleópatra Black” e “O Guarani” já são pautas de ataque na direita mais obtusa e reacionária.

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Para facilitar o cancelamento

O sexismo é irmão dileto do racismo e de todas as formas de preconceito. Acreditar que os ataques a um determinado gênero e condição seja “justo” em função de questões dramáticas que vivenciamos no cotidiano acaba por legitimar os ataques às raças, às orientações sexuais e às identidades, ao invés de produzir um arrefecimento dessas ações. Aceitar que homens sejam tratados como “malévolos e inferiores”, “estúpidos e grosseiros” baseando-se na experiência pessoal com eles é o mesmo que tratar negros, gays, mulheres, imigrantes e qualquer outra minoria de forma violenta ou diminutiva baseando-se em generalizações ou em sua experiência pessoal negativa.

Eu não tolero preconceitos que colocam gênero, classe, raça, origem, orientação sexual etc. em uma escala de valores, dos mais nobres aos mais perversos. Não acredito que nossos genes produzem diferenças no que diz respeito às condições morais e intelectuais. Diante disso deixo bem claro que qualquer pessoa que escreve a frase sexista “Nem todo homem, mas sempre um homem”, está convidado a me cancelar peremptoriamente; não precisa sequer se despedir. Lutei contra todos aqueles que tratavam pequenos deslizes naturais de mulheres em ambiente de trabalho dizendo coisas parecidas com isso (“tinha que ser mulher”, por exemplo), portanto não vejo porque deveria aceitar que este tipo de manifestação abjeta, asquerosa, nojenta e que atenta contra metade da população do mundo possa ser válida.

A criação de um mundo de equidade não vai passar por derrubar o poder dos homens para a criação de uma opressão por outro gênero, mas através da abolição de qualquer opressão baseada no sexo, na cor da pele, na classe social, na origem e na identidade sexual dos sujeitos que coabitam conosco neste planeta. Atacar os homens e o masculino, creditando a eles todo o mal do mundo (e fazendo vista grossa para as perversões cometidas por mulheres) é um dos mais importantes fatores para a manutenção dos preconceitos, pois que ataca a essência imutável de todos nós – nossa estrutura de sujeito – algo que não pode ser modificado e elaborado.

Quem ataca os homens e o masculino, tratando-os como inferiores e tolos, não honra seu pai, seus irmãos, seu marido, seus filhos homens e tudo o que o masculino criou na humanidade. Quem faz o mesmo com as mulheres, desonra todas aquelas que lutaram e se sacrificaram para que estivéssemos aqui.

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Meras empregadas

Sabe qual a semelhança nessas propagandas? A ideia de que os comportamentos são determinados pelo gênero. Assim, o comportamento inadequado (ou anacrônico) de um homem seria um modo de ser “dos homens”, enquanto as falhas de uma mulher representariam “as mulheres”. Apesar do gênero ainda condicionar de forma marcante a vida humana, tanto quanto a classe social ou a “raça”, dizer como os homens, as mulheres, os pobres e os brancos pensam e desejam é sempre uma homogeneização apressada e injusta, usada para atacar os sujeitos e seus grupos, ao invés de criticar suas ações.

Em relação à pergunta feita na publicidade cor-de-rosa, como então as mulheres descreveriam um “bom homem”? Já que a brincadeira é generalizar e olhar a humanidade inteira como um rebanho com comportamentos determinísticos, qual seroa a visão que as mulheres teriam de um “bom homem”? Seria ele amoroso e gentil? Ou seria um provedor que a protegesse? Será mesmo que vão aparecer descrições baseadas na diferença moral entre os gêneros, onde um deles é nobre e amoroso e o outro egoísta e utilitarista?

Estes são textos cíclicos nas redes sociais. Faz pouco tempo circulava uma monstruosidade sexista que afirmava que os homens (não alguns, mas o gênero masculino) odiava as mulheres, que não passavam de seres usados para o seu prazer, enquanto o verdadeiro amor masculino era devotado somente aos outros homens. Agora circula este, onde fica implícito que os homens não oferecem às mulheres amor e cuidado, e delas apenas desejam um bom serviço doméstico.

Este tipo de preconceito, e essa campanha anti-masculina, que floresce na seara da misandria e circula entre aquelas mulheres cuja vida afetiva foi insatisfatória ou mesmo traumática, está na raiz do surgimento do seu contraponto: os Red Pill, tolos masculinistas que usam da mesma retórica excludente e preconceituosa – mas de sinal trocado – de característica misógina e agressiva, causada por suas más experiências afetivas.

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Mentes Limitadas

Quer saber como funcionam as mentes limitadas? Basta saber que para estas, todas as ideias que fogem à sua compreensão ou sua experiência estão erradas ou são perigosas. Mais ainda: tudo fazem para proibi-las, pois interditadas não ameaçam sua pequena caixa de saberes. Assim agem os maus cientistas e os fundamentalistas.

Já as mentes abertas não descartam ideias por parecerem absurdas. Pelo contrário, se deixam seduzir pelo desafio de entendê-las, dissecá-las e traduzi-las. Mesmo quando delas discordam, não as tratam com desprezo pois sabem que somente as ideias aparentemente bizarras podem trazer algo de novo ao conhecimento. Quem precisa de verdades e de certezas deveria se dedicar às religiões, jamais às ciências.

Antoine de Saint Etiénne, “La Disparition du Cygne Noir”, ed. Hachette, pág. 135

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Etarismo

Muitos casos tem nos mostrado um dilema evidente no nosso cotidiano: a proteção às pessoas de um determinado grupo supostamente oprimido (pessoas mais velhas, trans, gays, negros, etc) fatalmente as transforma em “pessoas especiais”, o que, ao meu ver, retira delas o protagonismo. Como já foi dito centenas de vezes, quem é vítima não pode ser protagonista; o primeiro é objeto enquanto o segundo é sujeito. Em diversas oportunidades vemos pessoas de mais idade tornando-se (ou sendo tratados como) sujeitos que precisam de “cuidado” e, portanto, incapazes de cuidar de si mesmos. Entretanto, existem muitas pessoas nesta faixa etária que se rebelam contra esse tipo de atitude, que em verdade dissimula uma perspectiva diminutiva fantasiada de “atenção”. Lembro muito bem do meu pai em férias que se negava a fazer “ginástica na praia” por medo de ser cuidado e tratado de forma carinhosa pelos professores, como se ele fosse um bebê incapaz de fazer os exercícios sem supervisão.

A proteção excessiva é a face cor de rosa da exclusão. Por isso a proteção abjeta à estudante de 44 anos fui um exemplo pedagógico de “suco de etarismo concentrado”. Lembrem apenas das crianças que recém aprenderam uma habilidade (amarrar os sapatos, por exemplo) e da sua reação indignada e saudável em direção à autonomia quando tentamos fazer isso por elas. “Eu não sou mais bebê”, dizem eles.

Estas ações também me fazem questionar a proteção oferecida às gestantes que, assim que acessam o hospital, são colocadas em cadeiras de rodas. Muitas são tratadas como “princesas”, sem se dar conta que esse tratamento de exceção apenas revela o (pré)conceito que temos delas. No hospital são vistas como deficientes, dotadas de “fraqueza”, “fragilidade”, e incompetência, algo que elas carregam pela sua essência feminina – fraca e dependente. Ou seja, não é possível empoderar e fortalecer a maternagem se continuarmos a tratar as mulheres – e em especial as gestantes – como bonecas frágeis que demandam cuidados especiais.

Michael Klein, um colega médico do Canadá 🍁 cuja esposa sofreu um grave acidente automobilístico, certa feita me contou sobre a trajetória de recuperação de sua esposa. Depois de se recuperar do acidente, e sabendo da sua condição de deficiência pelo resto da vida (ela ficou paraplégica), pediu ao marido que a deixasse sozinha por duas semanas na sua casa de campo. Disse a ele para não aparecer por lá em nenhuma circunstância. Garantiu a ele que tinha um sistema de emergência que seria acionado caso necessário, mas que não tinha interesse em usar. Precisava usar este período para provar para si mesma que era capaz de continuar a viver apesar de suas óbvias condições de dependência. Não desejava se colocar na posição cômoda de cobrar do mundo um cuidado especial. Seu objetivo era fugir da atitude sedutora “agora sou deficiente e mereço ser cuidada”. Não aceitava ser objeto de cuidado dos outros, mas conquistar autonomia para cuidar de si mesma. Ou seja, assumir a posição de sujeito, com limitações e dificuldades, mas sem desistir de alcançar autonomia e protagonismo em sua vida.

Eu fiquei indignado e triste com a atitude da estudante “velha”. Sim, velha, pois foi assim que ela mesma se reconheceu. Sua ação foi um desserviço para todas as outras mulheres maduras que chegam ao ensino superior, que a partir de agora serão tratadas como deficientes, incapazes de suportar as dificuldades que qualquer outro estudante precisa encarar. Fosse ela a esposa do meu colega e iria conversar com as meninas, explicar sua vida, mostrar suas conquistas, apresentar a família, convidar para um café, mostrar onde mora e criar proximidade com as garotas. Ou responderia de forma desaforada para as “pirralhas”, mas não se fecharia como uma ostra. Mostraria sua força e o quanto é forte para suportar por si mesma as críticas e gracejos inevitáveis na vida social. Infelizmente ela preferiu ser a princesa frágil que chamou o príncipe (o Estado, a Justiça burguesa) para resolver o problema por ela.

Para ver como esta questão pode ser vista com os olhos do humor, veja aqui

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Misoneísmo

Existe um preconceito que, apesar de ser bastante prevalente, muitas vezes é escamoteado no discurso cotidiano. Ele se refere às pessoas que produzem uma rejeição ao novo, às novas propostas, ideias, conceitos e perspectivas. A isto chama-se “misoneísmo”, palavra de raiz grega que provém de “mysos” (aversão) e “neos” (novo). Pode ser chamado também de “neofobia”.

Ultimamente eu tenho testemunhado muitas manifestações desta natureza, mas me espanta sempre quando elas surgem de pessoas que se consideram progressistas. Uma das características desse preconceito na área da medicina é a crítica violenta – e até persecutória – contra formas alternativas de pensar e agir com relação a diagnósticos e tratamentos. Estas pessoas – na maioria das vezes integrantes da Academia – gastam um tempo enorme no ataque às medicinas complementares ou mesmo de algumas novidades nos tratamentos de doenças crônicas. Mais do que alertar para a falta de provas consistentes de sua eficácia (quando elas são frágeis ou inexistentes), travestem-se de cruzados da “medicina certa” a atacar os “inimigos” que usam métodos heterodoxos para a cura de seus pacientes.

É curioso este tipo de manifestação porque todos os conhecimentos que hoje consideramos verdades inquestionáveis já foram, em seu tempo de aparição, considerados heresias. Muitos homens de gênio já foram acusados pelos mais variados tribunais, ou condenados à morte por várias formas, apenas por mostrar seu pensamento, o qual diferia da ortodoxia hegemônica de seu tempo. Basta lembrar de Galileu (i pur si muove), de Freud e os ataques que sofreu da Ordem Médica, de Darwin e sua vida reclusa pela violência eclesiástica, entre tantos outros pioneiros para entender que os desafios de enfrentar uma “verdade estabelecida” são tão complexos e sacrificiais quanto absolutamente necessários para o progresso das ideias.

Também é útil lembrar dos inúmeros profissionais da humanização do nascimento no mundo inteiro que lutaram pelos direitos das gestantes e por práticas simples – que hoje são corriqueiras – como a abolição das episiotomias de rotina, presença do pai e/ou do acompanhante, trabalho das doulas, contato pele a pele, amamentação na hora dourada, parto de cócoras, parto domiciliar etc., ações que há poucos anos eram consideradas anátemas e atitudes criminosas, levando muitos destes profissionais ao ostracismo e aos tribunais.

Causa espanto que tal sanha “oficialista” ocorra entre profissionais da saúde que se consideram “humanizados”, os quais se empenham na destruição de linhas de pensamento, filosofias e estratégias de tratamento que são diversas da forma com a qual se associam. Os ataques são inclusive de ordem moral, tentando reforçar a suposta imoralidade dos criadores de uma determinada terapêutica, usando o conhecido “linchamento de reputação”, “ad hominem” e “cancelamentos” de sujeitos “não alinhados”, o que é uma verdadeiro absurdo. Seria como descobrir que Fleming teve uma amante (só um exemplo, nem sei se Fleming um dia foi casado) e abandonou os filhos e, por isso, seria necessário “cancelar” o uso da penicilina.

Lembro bem de uma aula no meu curso de preparação de oficiais, logo após o fim da ditadura, quando um oficial veio nos dar uma “aula” sobre comunismo. Suas palavras iniciais foram “Marx foi um homem muito inteligente, não há como negar, mas foi um péssimo pai de família”. A ideia – que o bolsonarismo elevou à máxima potência – é fazer as versões fantasiosas da moralidade eclipsarem o trabalho, o brilho e a luta de um adversário no campo ideológico.

De certo temos que a necessidade premente de desmerecer as propostas alternativas no campo da saúde demonstram a imensa fragilidade que algumas pessoas têm nas suas crenças sobre a superioridade do modelo hegemônico da medicina intervencionista, medicamentosa, exógena e bioquímica. Sua visão sobre a teleologia da medicina – o sujeito à mercê dos tratamentos médicos e a intervenção drogal e cirúrgica como ferramentas por excelência de cura – não pode ser questionada, e os contraditórios a ela precisam ser violentamente atacados.

Guardadas as proporções, é o mesmo movimento das pessoas que atacam as “formas alternativas de expressão sexual”. Não basta apenas exercer sua sexualidade da forma como deseja; é preciso atacar a ideia de que a sexualidade tem uma gama infinita de manifestações, gozos e prazeres diferentes do padrão social. É preciso destruir as outras formas de encontro como “ameaças” à sexualidade “correta”. Na verdade, esse ataque na maioria das vezes é a tentativa desesperada de destruir as dúvidas que o sujeito nutre sobre sua própria sexualidade, frágil, insegura e cambaleante.

“Segundo o Ministério da Saúde do Brasil as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) são recursos terapêuticos que buscam a prevenção de doenças e a recuperação da saúde, com ênfase na escuta acolhedora, no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade.” Destaco aqui a ênfase no “vínculo terapêutico” e na visão “integrativa” do sujeito, corpo e alma. Esse é o espírito da maioria dessas modalidades que, afastando-se do rigor cartesiano, escapam da concepção de máquina para buscar o tratamento do organismo complexo que adoece.

Nunca tive dúvida alguma que o progresso da medicina só poderia ocorrer através das visões que se distanciassem da “humani corporis fábrica” vesaliana para uma visão do adoecimento que compreenda o ser humano como uma unidade reagente bio, psico, social e espiritual. Portanto, as terapias que buscam esta perspectiva integrativa deveriam ser estimuladas, jamais atacadas, pois é delas que poderá surgir uma nova forma de pensar medicina.

Ainda segundo o Ministério da Saúde, o número de municípios que ofertaram atendimentos individuais em PICS (práticas integrativas e complementares) é de 3.024, estando presente em 100% das capitais. Já houve 2 milhões de atendimentos em UBS, sendo 1 milhão em medicina tradicional chinesa, 85 mil em fitoterapia, 13 mil em homeopatia e 926 mil em outras formas de atenção que ainda não haviam sido catalogadas. A atenção Básica teve 78%. desses atendimentos, mas 18% ocorreram em casos de média complexidade e 4% naqueles de alta complexidade.

Andreas Vesalius

Para concluir, eu creio que atacar as novidades na área da medicina de forma violenta, acusatória e irracional desnuda muito mais os medos e temores de quem faz tais ataques do que as propensas fragilidades dos tratamentos alvos de críticas. Não se faz ciência com o fígado. O verdadeiro cientista é respeitoso com as visões discordantes e está sempre aberto para o que é novo. As certezas, sejam positivas ou negativas, são elementos necessários nas religiões, jamais no espírito científico, o qual se nutre essencialmente da dúvida. Manter o espírito aberto e a cabeça arejada nos oferece uma janela maravilhosa para o descobrimento, a surpresa e a esperança das novidades.

(Capa de “De Humanis Corporis Fabrica” do médico belga Andreas Vesalius, publicado em 1543, considerado um dos livros científicos mais influentes da história da humanidade, em especial pelas suas ilustrações, xilogravuras de altíssima qualidade. Aliás, Andreas Vesalius também foi duramente perseguido por ousar desafiar as ideias correntes e oferecer uma nova forma de abordagem da medicina à humanidade. Ele foi condenado à morte pela Inquisição sob a alegação de que tinha dissecado corpos humanos. Para escapar à fogueira, sua pena foi substituída por uma peregrinação à Jerusalém. Na viagem de volta, adoeceu e morreu na ilha de Zante (ou Zacyn) na então República de Veneza, na costa da Grécia).

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Censura

Eu me acostumei a ver os humoristas brasileiros – em especial os stand-up da última geração – sendo acusados de fazer bullying contra grupos oprimidos. Com o tempo, a partir da vigência do “politicamente correto”, criaram-se lugares fechados, vedados ao humor, ambientes proibidos às piadas, pois que tais espaços estariam ligados ao sofrimento de grupos tradicionalmente oprimidos por sua etnia, orientação sexual, identidade de gênero, deficiências físicas, etc. O humor a partir de tal imposição cultural transformou-se. Através de um patrulhamento feroz do que era dito o humorismo amansou-se, tornou-se civilizado e domesticado. A censura não ocorria mais por parte de “escolhidos” pelo estado para filtrar o que era adequado para os ouvidos sensíveis de nossa população cristã e conservadora, mas por mecanismos culturais descentralizados. Fazer graça se tornou perigoso, mas o humor perdeu uma de suas principais funções: a crítica social mordaz, ferina.

Segundo David L. Paletz, a sátira é uma forma de humor em que as instituições sociais e políticas, os indivíduos são ridicularizados e humanizados. Isso pode nos levar a liberar a tensões e, assim, levar a mudanças no sistema. Dado que a frustração é uma das principais causas da agressão, não surpreende que as pessoas que frustram nossos objetivos e prazeres sejam os principais alvos do humor (como reis, rainhas, políticos, médicos, policiais, clérigos, professores, mandatários, etc.). Com a introdução do humor “controlado”, que evitaria ofender, criou-se um humorismo contido, uma comédia amordaçada, que serviria ao impedimento da segregação desses grupos. Aliás, praticamente todos os programas de humor dos anos 80 e 90 seriam proibidos atualmente. Pense em Chavez, Trapalhões, Viva o Gordo, Zorra Total etc. Nada disso seria aceitável no mundo de hoje.

É compreensível esse movimento. A empatia nos impulsiona a tentar proteger essas pessoas mais fracas de um determinado espaço social, como uma mãe faria com seus filhos. Este para mim é o padrão “maternal”, que abriga criando uma cápsula da amor protetivo, impedindo as agressões que vem de fora. Por esta perspectiva, a censura poderia ser aplicada a qualquer um que estivesse fazendo zombarias sobre esses grupos. Seria uma “censura do bem”, para proteger sujeitos fragilizados dos ataques de uma cultura degenerada e excludente.

Apesar de entender as razões pelas quais se adotam estas medidas na cultura, sempre me posicionei de forma absolutamente contrária a esta proposta. Não acredito que, em médio e longo prazos, qualquer censura possa ser benéfica. A censura sempre é a imposição de força de um grupo sobre a liberdade de expressão de um sujeito ou de coletivos. Baseada em critérios morais ou políticos, julga a conveniência da publicação ou divulgação de uma obra humana impedindo sua liberação à exibição pública. A censura se baseia na ideia autoritária de que existem sujeitos em uma sociedade capazes de julgar o que devemos ou podemos escutar, ver ou admirar. Todavia, da mesma forma como não existe “ditador do bem”, a censura falha em seu intento principal de livrar a sociedade de uma ideia que tenta se expressar; com o tempo – por melhores que sejam suas intenções – ela apenas mantém essa ideia prisioneira no inconsciente social, onde se nutre e cresce.

O que é recalcado não desaparece, e fatalmente se fortalece.

Danilo Gentili foi um dos principais comediantes atacados por grupos identitários. Sofreu processos, ataques e violências por contar piadas sobre mulheres, crianças, nutrizes e muitos outros grupos. Apesar de ele se situar no ponto oposto ao meu no espectro político, creio que ele está correto em sua perspectiva sobre o humor. Ele é vítima da censura que uma parte da esquerda faz e se tornou incansavelmente perseguido pelos identitários e pelas patrulhas de costumes, algo absolutamente medieval. A “hegemonia da ofensa” – onde as piadas são inadequadas apenas a partir de uma escolha política – que ele denuncia é real. Nela se condena por preconceito alguns grupos, enquanto outros são liberados. Fazer piadas com gays, afirma ele, é errado, mas com a pretensa homossexualidade do filho de um presidente de direita, está liberado.

As punições que os stand-up receberam nos últimos anos são a imagem mais clara da absoluta falta de respeito com a liberdade de expressão que existe no Brasil. Acreditar que uma piada possa ser proibida daria arrepios na espinha de qualquer liberal que aceita as liberdades individuais como elemento fundador da democracia, mas no Brasil recebe aplausos até daqueles que repudiam o fascismo e se se acreditam democratas. Censurar uma música do Chico Buarque ou uma piada tosca do Rafinha Bastos tem o mesmo peso, pois na censura não há debate sobre o mérito e a qualidade da obra, apenas sua conveniência moral ou política. Portanto, deveríamos reagir com a mesma energia contra qualquer uma destas arbitrariedades.

O grande problema com a proteção aos grupos “frágeis” é que a blindagem destes grupos – mulheres, gays, negros, deficientes, trans, etc, sobre o que se pode – ou não – dizer gera mais exclusão do que algum efeito pedagógico. Uma pessoa cujas falhas não podemos apontar e zoar (como fazemos todos os dias com nossos amigos) é alguém diferente de nós; frágil e intocável. Estes grupos passam a carregar o status de crianças, fracas demais, demandantes de proteção. Existe um preço a ser pago se alguém se considera (ou é considerado) acima das críticas – ou abaixo delas. Se você não pode brincar com suas características, não vai conseguir proximidade. Entre os próprios protegidos existe reação, pois que o preço da proteção é a eterna imaturidade.

“Ahhh, mas negros, gays, loiras etc eram humilhados com piadas que os diminuíam”. Isso é verdade, mas a maneira de lidar com esse problema não pode ser a repressão, que só piora a exclusão – como bem nos ensinou Freud. A forma mais justa é, diante de um ataque contra estes grupos, valorizar o fato de alguém ser mulher, ser gay, ser negro, ser loira ou ter alguma deficiência e não excluí-los das piadas, pois estas auxiliam na criação de um fator especial nas comunidades humanas: a intimidade. Além disso, todos nós aprendemos desde muito cedo a diferenciar as piadas e seus contextos, em especial reconhecer quando a piada é um simples veículo usado para um ataque preconceituoso. Esta sim é deletéria, mas não passa de uma falsa piada, um gracejo que apenas dissimula uma agressão. Entretanto, mesmo ela não se extermina com censura, apenas com educação e convivência. Aliás, o grande elixir para curar o preconceito é esse: jamais segregar e sempre estimular o convívio dos diferentes; esta sempre foi grande arma para derrubar os muros entre nós.

Tenho profunda admiração por humoristas que rompem essa barreira. Danilo Gentili tem meu total repúdio por sua postura política, mas minha solidariedade pelo direito de fazer e contar piadas sem a ameaça de ser censurado. Muitos outros humoristas enfrentam o bombardeio da “correção política” e se colocam como linha de frente da ampla e irrestrita liberdade de expressão. Entre eles, Rick Gervais e Dave Chappelle são os melhores exemplos de humoristas do politicamente incorreto, e por isso merecem minha admiração e respeito.

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