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Entre Marx e Freud

Nossa herança animal nos oferece uma característica peculiar na história da vida no Planeta. Carregando a herança de milhões de anos de processo evolutivo, mas subitamente dotados de razão, caminhamos sobre a fina lâmina que divide a mais instintual animalidade das características angelicais de quem pensa e raciocina. Inobstante a grandeza do nosso avanço tecnológico, somos governados por um núcleo de medos coberto por uma camada de crenças irracionais. Estas crenças nos oferecem a falsa certeza de termos controle sobre a natureza e o caos do universo, e nos protegem das sombras da desesperança. Sobre nossas crenças se assenta uma fina e translúcida camada de racionalidade, quase insignificante, mas que nos oferece a ilusão de termos suplantado nossos atávicos temores.

A psicanálise nos mostra, em essência, a fragilidade de nossas escolhas, não apenas em termos subjetivos, mas também no que diz respeito às opções sociais e políticas. Por mais que tentemos entender de forma racional os diferentes modelos e sistemas políticos, haverá sempre dentro de cada sujeito um choque interno determinado pelos nossos valores, os quais dominam e direcionam nossas escolhas. Para o pai da psicanálise, “Não há sujeito sem cultura e nem cultura sem sujeito”. Freud deixou claro, desde o surgimento da psicanálise, que o sujeito é inseparável da cultura; a vida subjetiva implica, inexoravelmente, na referência do sujeito ao Outro – objeto de amor e de ódio – e à linguagem. A psicanálise atua na sutileza, na delicadeza, nas filigranas do discurso; sua busca é pela imbricação de afetos, o conflito dos amores, a disputa de desejos e o desatar destes nós que carregamos.

Desta forma, quando o sujeito se situa à direita ou à esquerda do espectro político, existe nesta definição uma série de elementos psíquicos intangíveis, escondidos nos porões úmidos do inconsciente, agindo sobre suas ações. E assim o fazem escondidos atrás de discursos lógicos e racionais, mesmo que a opção por uma perspectiva ou outra seja determinada por questões inconscientes. O inconsciente controla, sem que o próprio sujeito se aperceba. O verniz de intelecto que cobre nossas crenças nos impede, à primeira vista, de entender as verdadeiras e profundas razões pelas quais escolhemos um caminho em detrimento do outro.

A escolha pelo marxismo como modelo de compreensão da realidade e organização política das sociedades se faz através dessa complexa rede de interações entre elementos racionais e questões afetivas e psíquicas – como qualquer outra decisão em nossas vidas. Todavia, a perspectiva socialista é ainda pequena em nossa cultura, colocando aqueles que ousam aceitá-la como minoritários, sofrendo todos os reveses possíveis dentro de uma sociedade capitalista organizada em classes. Mais do que isto, estes que abraçam as teses marxistas foram historicamente perseguidos, caçados, calados, censurados, torturados e até mortos, o que confere aos socialistas uma perspectiva emocional peculiar e significativa. É por estas circunstâncias que é necessário ter suporte emocional e conhecimento dos elementos constitutivos do psiquismo humano para empreender a tarefa de construção de uma sociedade que pretende abolir as classes que nos separam, transformando um mundo marcado pela desigualdade em um que seja baseado na equidade e na justiça social. Compreender o funcionamento da alma humana é tarefa precípua de todo aquele que se aventura pelo socialismo.

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Ciência

Como já dizia Albert Einstein, “nem tudo que conta se conta e nem tudo que se conta, conta”. Portanto, nem todas as coisas passam a ser valiosas apenas a partir do momento em que podem ser contabilizadas, mensuradas e aquilatadas. O amor, a saudade, os afetos, as tristezas são bons exemplos de emoções que não cabem nas perspectivas experimentais. Entretanto, sem surpresa recebi nos últimos dias a notícia de que uma pesquisadora (cuja fama foi catapultada durante a pandemia de Covid) escreveu um livro denunciando “pseudociências”, entre as quais estavam incluídas duas vertentes de saberes que conheço de perto: a psicanálise e a homeopatia.

Escuto esse tipo de visão positivista sobre o conhecimento científico há mais de 30 anos e acho cansativo contra-argumentar; na maioria das vezes os acusadores agem como cruzados furiosos, montados em seus conceitos rígidos sobre ciência experimental e não aceitam escutar o idioma confuso e sem respostas exatas da linguagem do simbólico e do subjetivo. É simples entender que a ninguém parece viável analisar uma neurose “in vitro”, ou entender uma fobia despregada da história de quem a produziu; também não há como entender as diáteses homeopáticas fora dos conceitos de unicidade e suscetibilidade. Portanto, os limites da pesquisa experimental não são complexos para entender, e a ideia de analisar a realidade apenas pela metodologia que existe – desprezando aquilo que ainda não entendemos – se mostra sempre como uma forma muito arrogante de decodificá-la. No fundo esta propensão a “achar feio o que não é espelho” esconde o medo do novo, do não sabido e o pânico de relativizar o conhecimento que julgam ter conquistado. É mais fácil limitar o universo ao nosso entorno próximo do que admitir que somos apenas poeira de algo infinitamente maior.

Sempre é bom ter a mente aberta para entender as questões da saúde e da doença de forma complexa e criativa. Para algumas práticas – como a psicanálise e a homeopatia, entre outras – imaginar que é possível analisar a efetividade de uma terapêutica sem levar em conta a subjetividade e a suscetibilidade individual é desmerecer o fato de que somos seres de linguagem e vivemos envoltos em um campo simbólico que diante dos mesmos “inputs” estabelece “outputs” muito mais sofisticados e diversos.

Para além desse debate não conheço nenhum analista que tenha o real interesse de chamar psicanálise de “ciência”; a castração envolvida no processo de análise bloqueia em parte o pedantismo de enxergar-se de forma superlativa. Todavia, fica muito claro que o cientificismo contemporâneo trata tudo que não considera ciência (pelos seus critérios) como conhecimento menor. Para alguns pensadores da homeopatia, ela ainda se reivindica como ciência (por suas históricas conexões com a medicina institucional), mas não vejo muito sentido em tratá-la assim. Para mim ela se aproxima muito mais da psicanálise e suas investigações de caráter pessoal e único, por sua vinculação inexorável com a subjetividade e pelas manifestações raras, estranhas e peculiares do processo mórbido no sujeito.

Para finalizar vamos esclarecer algo que me parece importante: a autora dessa publicação foi tratada como sumidade da área médica (apesar de ser bióloga) durante o período da pandemia. Essa notoriedade foi resultado dos ataques que fez às teses bolsonaristas relacionadas à emergência da pandemia da Covid. Dissipada a nuvem que nos obliterava a percepção mais clara dos personagens da crise de saúde, hoje já é possível perceber que se trata de uma fundamentalista que está surfando na fama para levar adiante seu ideário. É também importante ressaltar que ela é consultora de uma gigante multinacional de drogas, a Janssen-Cilag, conforme consta em seu currículo. Isso deixa claro o quanto existe de interesses econômicos muito fortes por trás dessa personagem. Para além disso, trata-se de um clichê muito conhecido na área médica: o “cientista soldado da Verdade que combate a pseudociência”. Na realidade são tão somente clérigos de uma religião positivista, carentes da mais essencial virtude de um cientista: a imaginação criativa. No fundo temem descobrir a imensidão do que desconhecem, e como todos os religiosos, mais do que exaltar sua crença, sentem que é preciso destruir tudo que a questiona e desafia.

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Psicanalista

Lembro de quando me perguntavam qual o perfil ideal para um psicanalista e minha resposta era: “Procure alguém que seja o mais parecido possível com uma pessoa comum. Fuja de qualquer terapeuta que se apega a certezas – elas são o “prêmio de consolação de Deus às mentes fracas”. Encontre alguém que consiga parir por sua voz a mais gorducha das frases: “eu não sei”. Não aceite afirmações peremptórias e se afaste de qualquer selvageria. O resto você constrói no discurso”.

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Doulas e Psicanalistas

Sobre a polêmica de cursos de graduação em psicanálise creio que esta discussão é a EXATA reprise de um debate que eu iniciei há mais de 10 anos sobre “cursos de formação de Doulas”, os quais pretendiam sua transformação em profissão regulamentada e desejavam tornar a doula uma “profissional da saúde” – como médicos, enfermeiras, fisioterapeutas, etc.

Quando me posicionei sobre o tema – fazendo oposição à tentativa de encaixar as doulas no nosso modelo acadêmico e trabalhista – fui atacado, xingando, cancelado e tratado como “traidor”. Claro, ainda tive que escutar o famoso “lugar de fala”, mesmo que eu estivesse presente desde os primeiros cursos de capacitação de doulas no Brasil. Mas isso não foi suficiente para me fazer mudar de opinião.

Agora o debate é sobre um ramo centenário do conhecimento humano, a psicanálise. Entretanto, percebi que os argumentos que sustentam a ideia dos “Cursos de Graduação em Psicanálise” visando uma formação acadêmica na área tem os mesmo problemas estruturais que eu questionava na formação de Doulas. Tomo aqui emprestadas as palavras de Diogo Fagundes em um texto que circula na internet sobre a “domesticação” da psicanálise, mudando apenas o campo ao qual ele se refere.

“Graduação em Doulagem oferecida pelo Estado – ou pior, empresas de educação privada visando lucro – é algo análogo à possibilidade hipotética de graduação em marxismo. Faz sentido haver escolas de doulas (aliás, desejo muito isto) associadas a organizações ligadas à humanização do nascimento, grupos de mulheres ou clubes de mães, mas não cursos de graduação estabelecidos pelo Estado ou proprietários privados em busca de dinheiro fácil.

Ambos – doulas e psicanalistas – são formas de pensamento implicados na construção de um sujeito não necessariamente ligados ao que Lacan chama de “discurso da universidade” – não à toa o francês recusou chefiar o departamento de psicanálise (o primeiro da França) quando convidado por Foucault na criação da Paris VIII.

Na prática, vai haver um monte de biboca de esquina transformando o trabalho das doulas em “coaching de gestação”, autoajuda e coisas do gênero. Entretanto, a formação não pode prescindir de habilidades humanas e acompanhamento pessoal, uma experiência subjetiva complexa não balizada por prazos e exercícios determinados burocraticamente.”

Como pode ser visto, a mesma ideia de criar cursos de formação em psicanálise ou formação de doulas esbarra no fato de que ambas as funções sociais não são aprendidas exclusivamente nos bancos escolares mas pressupõe uma vivência no trabalho direto com os clientes, um mergulho na subjetividade destes, um aprendizado que surge do atrito com a infinita diversidade dos clientes, a alegria e o sofrimento com as vitórias e frustrações que esta função nos impõe. A academia e seus diplomas são incapazes de fornecer este tipo de construção, o qual não pode ser delimitada no tempo ou na carga teórica de conhecimento oferecida.

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Observações a partir de um texto de Zizek

Observações pessoais, sujeitas à críticas:

Sim, a ideia (ou o clichê) de que “Freud está ultrapassado” é muito comum em alguns grupos. Algumas feministas ficam enfurecidas quando o mestre austríaco é citado em qualquer contexto. Muitas vezes li e ouvi de forma bem clara que a queixa contra Freud ultrapassava suas concepções sobre a mulher e o feminino, e invadia a própria essência da mensagem freudiana, ou seja, a existência de uma dimensão do inconsciente. Nestes momentos eu vejo claramente a imagem do discurso pré freudiano, onde a negação do inconsciente leva a uma arrogância racionalista.

Eu também acho pura arrogância a ideia de ser “fiel a si mesmo”, no sentido de obedecer as suas vontades e desejos. Via de regra ignoramos por completo o que verdadeiramente desejamos. Quando eu vejo relatos de pessoas sobre o que são, como pensam, seus valores, suas virtudes eu chamo de “síndrome de pocanálise”, pois os relatos nunca falam da verdade do sujeito, que lhe é interditada. Por isso precisamos de Freud mais do que nunca. O mundo não vai ultrapassar Freud até que surja algo tão revolucionário quanto sua obra para compreender a alma humana, o inconsciente e a sexualidade.

A ideia do jogo, da ficção, sempre foi uma estratégia que usei em consultas, baseada no fato de que pedir que alguém fale (a verdade) sobre si mesmo é ingênuo e inútil, e produz apenas alegorias, fantasias e auto enganos. Assim, eu pedia para que os pacientes descrevessem os outros, seus amores e seus desafetos, ou pedia que vestissem uma máscara qualquer, ao estilo “no lugar dele, o que você faria”, e escutava atentamente o paciente descrevendo seu personagem como em um jogo de RPG. Somente nesses momentos era possível que alguma verdade surgisse, desviando do retrato enganoso que sempre fazemos de nós mesmos.

Concordo que a repressão do desejo leva ao desejo da repressão. Essa característica fica muito fácil de ser percebida no proibicionismo. Pode ter certeza que aqueles que mais querem punir, castigar e proibir são os que mais sofrem pela repressão de seus desejos. Vemos isso com facilidade na legião de fascistas que querem a repressão a todo custo, que desejam prender o Lula, fechar o STF, diminuir a idade penal, a volta da ditadura, prisão, encarceramento, pena de morte ou que apoiam linchamentos de toda sorte. Estes, que tanto querem proibir e punir, são os que mais se martirizam como o bloqueio da expressão de seus desejos.

Por certo que todo o jogo da sexualidade está em jogar com os obstáculos. O segredo do desejo é a proibição, e por isso tanto desconforto ou desinteresse na sexualidade ocorre na medida em que os seus obstáculos desaparecem ou são suprimidos pela cultura. No filme “O Piano” de Jane Campion, aparece a bela metáfora do “furo na meia” que, ao meu ver, simboliza o gozo de brincar de driblar os obstáculos. Por isso eu gosto tanto do pudor: ele é exatamente essa proibição, esse bloqueio, o muro, que produz a vontade constante de brincar com os véus que se interpõem entre nós e o objeto de desejo.

Uma vez reclamei da facilitação que pais faziam para o exercício da atividade sexual de seus filhos adolescente. Fui atacado exatamente por entender que nenhuma sexualidade madura vai se estabelecer sem que ela esteja associada à suplantação de barreiras e muros – quanto mais alto mais será a significativa a conquista. Há ajudas que são profundamente destrutivas.

Por fim, concordo com Zizek que a sexualidade se baseia na possibilidade de manter um espaço de impossibilidade.

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Pouca mesmo

Meu caríssimo amigo Maximilian, depois de meses sem dar as caras, ligou esta manhã para um longo choramingo a respeito de figuras pouco iluminadas que atravessam seu caminho. Lá pelas tantas, depois de gastar sua artilharia de adjetivos, soltou essa pérola:

– … e depois, sem mais delongas, voltou a vomitar platitudes, escorregando em sua verborragia viscosa, demonstrando não passar de mais uma vítima da pocanálise, que a tantos incautos ataca…

Perguntei porque ela seria uma vítima da “psicanálise”, pois jamais me ocorrera que ela um dia tivesse se embrenhado na escuridão solitária e fria desta aventura pelo discurso. Ele me respondeu:

– Você ouviu errado, ela é vítima da “pocanálise”, mesmo, um escasso ou insuficiente transcurso pela escuta de si mesma, o que a faz repetir autoelogios e a torna cega para as reais motivações que guiam sua vida.

Ahh, entendi. E acho que sim; uma análise faria maravilhas naquele corpitcho

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Mentira

Creio ser necessário lembrar que não haveria vida civilizada sem as verdades escondidas. Digo mais, creio que não haveria sequer a multiplicação das células no caldo primitivo não fosse a mentira, a dissimulação, a hipocrisia e a falsidade. A vida humana se construiu a partir do falseamento do verbo, a troca maldosa dos sentidos, a mudança sorrateira da direção das palavras à sorrelfa da própria realidade, a qual desaparece diante do gigantismo implacável da linguagem. Como diria Lacan, “a palavra matou o Real”, mas quem lamenta? Ou alguém um dia experimentou alegria e genuíno prazer ao abraçar um feixe de nervos e tendões, suores e lágrimas, só para sentir junto ao peito as contrações rítmicas de uma bomba de sangue?

Jean B. Laviolette “L’art de mentir”, ed. Parole, pág. 135

Jean Benoit Laviolette é um psicanalista francês, nascido em Marseille em 1952. Fez formação na Sorbonne e formou-se em psicologia em 1978. Escreveu inúmeros artigos para a “Gazette Psychanalytique” quando morava em Paris e estudava com seu mestre, Jacques Lacan. Depois disso, já nos anos 80, passou a atender em sua clínica em Strassbourg, quando conheceu Madeleine Truffaut, escritora e poetisa, com quem se casou e teve 3 filhos. Escreveu três livros da área da psicologia, que poderiam ser entendidos como uma trilogia, apesar do autor negar que tivesse a intenção de continuidade para qualquer um dos seus livros. O primeiro foi “A Palavra Escondida”, seguida de “Ouvidos de Pedra”. Em 1995 escreveu “L’art de Mentir”, que, segundo ele, lhe ofereceu uma inesperada popularidade. Mora em Strassbourg com esposa e filhos.

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Homossexualidade

Muito se tem debatido nas últimas décadas a respeito dos condicionantes para orientações ou mesmo para a identidade sexual nas sociedades humanas. As explicações variam daquelas vinculadas à biologia e a exposição a substâncias intrauterinas, passando pelas teorias comportamentais da psicanálise ou mesmo a ausência total de qualquer explicação, diante da ausência de condicionantes claros e evidenciáveis. Ainda resta muito a ser descoberto especial no que se refere à sexualidade humana e tantas outras questões imateriais que nos cercam.

Em relação às definições de homossexualidade (ou heterossexualidade) minha posição continua inalterada: só consigo entender a “origem” dessas orientações inseridas na constituição do sujeito, na sua subjetividade, na sua unicidade e na sua delicada estrutura psíquica, indissociável de sua história. O que a impressão simplista nos informa é frequentemente errôneo, e essas simplificações nos fazem perder a dimensão complexa do fenômeno. Para a questão complexa do desejo sexual, só posso admitir uma resposta igualmente complexa e que tem a ver com a intrincada construção de nossa personalidade.

Lembro bem de uma paciente que atendi há muitos anos e que me procurou por questões ginecológicas simples. Separada, tinha uma filha adolescente. Perguntei sobre anticoncepção e ela me contou não usar nenhum método porque tinha uma parceira; estava namorando outra mulher. Ok, nada de mais simples do que atender uma pessoa homossexual, mas o que ela me disse depois foi interessante.

Relatou que jamais se interessou por mulheres durante toda sua vida, mas tão somente por aquela mulher específica. E se viesse a se separar dela (o que achava que ia ocorrer em breve) não se imaginava procurando outra mulher para namorar. Portanto, a construção da sua “homossexualidade” – ou bissexualidade – era absolutamente única, pessoal e específica, e qualquer rótulo que se colocasse sobre ela seria limitante e não contemplaria a verdadeira dimensão do seu desejo.

Uma resposta, que me foi oferecida por uma amiga psicanalista, seria que “sua resposta poderia ser tão somente uma justificativa pra se permitir viver um amor lésbico que ela, de outra forma, não se permitiria viver. Isso porque ela acha que sabe de si mesma, acredita se conhecer, tem uma imagem e uma história de si mas, de repente, se encontra amando alguém que não se encaixa nessa narrativa. Aí cria-se um problema. Dizer “só ela” abre uma possibilidade sem, necessariamente, arranhar essa imagem de si, essa narrativa construída de si mesmo, o que ela pensa e aceita ser. Quase um passe, uma carta que a gente mostra, uma autorização: olha, é isso, é só isso, não precisa se preocupar.”

Claro que pode ser esta a resposta, mas um olhar exterior teria dificuldade para interpretá-la ou classificá-la sem embarcar numa viagem ao seu inconsciente e seus significantes para descobrir este espaço único e subjetivo que ela construiu para o seu desejo. Qualquer interpretação que não percorra esse caminho único será pura selvageria.

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Maturidade

Baruch (Benedictus, depois da excomunhão judaica) Espinosa foi um pensador holandês do século XVII de extrema relevância, fazendo parte do grupo dos grandes racionalistas, onde constam Leibniz e René Descartes. Ocupou-se da teologia e da política, tendo abordado ambos os temas em seu grande livro “Ética”.

Espinosa, entretanto, morreu aos 44 anos de idade, vítima de tuberculose. Homem simples, sobrevivia como relojoeiro e polidor de vidros. Renunciou aos prazeres da vida em nome das virtudes do conhecimento, em especial depois de sua trágica e injusta excomunhão da vida judaica.

Eu ainda me lembro muito bem dos meus 44 anos, e nem faz tanto tempo. Entretanto, não recordo dessa idade com saudade, pois percebo o quanto minha mente amadureceu nos últimos 15 anos. Quando penso em sua partida prematura, às vezes me pergunto o que Espinosa teria escrito aos 60 ou 70 anos. Se aos 44 conseguiu deixar sua marca de excelência no mundo do pensamento, o que mais poderia ter feito se mais tempo estivesse entre nós?

Normalmente a obra “Interpretação de Sonhos”, de Sigmund Freud, escrita em 1900, é reconhecida e apontada como o divisor de águas de um período pré-psicanalítico anterior à sua obra centrada na psicanálise. Quando a escreveu Freud tinha…. 44 anos.

Assim, toda a construção da teoria psicanalítica, feita por um dos maiores gênios da humanidade, surgiu após sua maturidade, alcançada depois dos 44 anos, idade com a qual outro gênio, algumas centenas de anos antes, nos abandonava.

O que teria escrito um velho Espinosa? Nunca saberemos, mas certamente seria ainda mais profundo e maduro.

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Há na lista


Quando eu conto que fiz quase 30 anos de análise as pessoas geralmente se espantam e me perguntam, com genuína estupefação: “Mas afinal, o que foi que você descobriu?”

Eu acho que essa curiosidade é legítima, mas sempre fico com dificuldade em dar uma resposta objetiva, baseada em fatos claros para este questionamento. Parece que todo mundo aguarda uma réplica ao estilo: “Descobri que sempre odiei meu pai e amei a minha mãe” (ou vice versa), “durante a gestação minha mãe me rejeitou”, “sempre quiseram um(a) menino(a)” ou então aquela tradicional “nunca me recuperei do fato da minha mãe ter me esquecido no portão da escola”.

Tenho uma regra básica para os eventos marcantes da nossa vida: se eles podem ser resgatados com essa facilidade, emergindo ao consciente como uma bola que largamos no fundo da piscina, então é porque se trata de uma “falsa explicação”, provavelmente algo que usamos no lugar do conflito verdadeiro. Mesmo que eu acredite na dor que cerca tais eventos, eles apenas existem como intensificadores de sofrimentos mais antigos, recônditos e não-sabidos. Estes, por serem violentos e estruturadores de nossa neurose, estão, via de regra, escondidos nos porões úmidos e frios do nosso inconsciente.

Imaginar que uma análise se presta a descobrir estes fatos catastróficos é desmerecer a importância dos pequenos eventos na formação do sujeito. Lembro de uma conversa como uma amiga psicanalista a respeito de um quadro psíquico muito pesado, e a pergunta que lhe fiz: “Que evento escondido em seu passado pode ter ocasionado tamanha repercussão?”, ao que ela respondeu: “as vezes um olhar, uma palavra, ou a falta de ambos”.

A psicanálise atua na sutileza, na delicadeza, nas filigranas do discurso. Sua busca é pela imbricação de afetos, o conflito dos amores, a disputa de desejos e o desatar destes nós que carregamos. Não aguarde de uma sessão o espetáculo ilusório dos “insights” maravilhosos, uma sucessão de epifanias, um “ah-rá!!” a nos confirmar antigas suspeitas ou para abrir “as portas da esperança”. Não, uma análise é algo que se faz até mesmo depois de terminada a sessão, quando nossas próprias palavras fazem eco em nossa mente, ao voltarmos para casa enquanto nossas lembranças dominam a paisagem. A boa análise é paciente e silenciosa, muda a nossa percepção oferecendo um conceito muito mais humilde de nós mesmos. Assim, quando a pergunta “o que você descobriu” me atinge os ouvidos, minha resposta invariavelmente é: “milhares de coisas, mas nenhuma que eu me lembre no momento“.

PS: quando fiz minha primeira sessão de análise eu disse: “Pensava em fazer esta consulta a mais tempo, e tentei lhe ligar faz alguns meses, mas descobri que “telefone de analista não há na lista.” É inacreditável que uma análise tenha se estabelecido depois de um trocadalho miserável desses…

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