Arquivo do mês: dezembro 2021

Vendas

Ontem mesmo comentava de um amigo que tinha uma loja na cidade. Certa vez perguntei a ele qual o produto que mais vendia e ele apontou para um vistoso, no centro da vitrine. “E este produto é bom?”, perguntei com ingenuidade.

Ele respondeu “Uma porcaria. Pelo mesmo valor se compra coisa muito melhor, mas este tem publicidade na TV todo dia”.

Insisti: “E como você se sente?”.

Ele baixou o olhar e respondeu “Não sou eu quem faz as regras. Desculpe”.

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Luis Inácio avisou…

Lula tinha razão; toda a instabilidade política que hoje estamos atravessando poderia ser abortada se os ministros do STF tivessem mantido a espinha ereta. Mas não; estavam empenhados nesse mesmo propósito de criminalizar a esquerda aceitando pela via da mentira e da fraude uma agenda neoliberal. A ação pusilânime da alta corte ofereceu espaço para que a escória autoritária alcançasse o poder. Deltan Dalanhol, Sérgio Moro e o próprio Bolsonaro são o resultado das ações de uma corte que jamais pensa na justiça ou na proteção da constituição, mas nas suas próprias convicções políticas e interesses corporativos.

E o golpe já estava anunciado para 2022; entretanto, as últimas pesquisas (que em 28 de julho prevê a vitória de Lula em primeiro turno) e o “Manifesto da Burguesia” que alcançou números recordes em muito pouco tempo significam um balde de água fria nas intenções golpistas. Bolsonaro não sabe para onde correr. Parece mirar na mobilização popular de 7 de setembro como derradeira tentativa de galvanizar forças para a luta eleitoral. Os números da eleição, todavia, parecem ser tremendamente desfavoráveis para ele. Uma das perguntas feitas era qual a chance de trocar de voto até o final da eleição e, entre os dois candidatos que pontuam a pesquisa, apenas 18% dizem que ainda poderiam trocar de candidato.

Mas vejam: nesta pesquisa a diferença entre Lula e Bolsonaro é de exatamente 18 pontos percentuais, o que significa que para uma reversão eleitoral todos os “indecisos” (em verdade aqueles que ainda poderiam trocar se algo grave ocorresse) precisariam votar no atual presidente, o que é impensável nas condições atuais. Não há dúvida de que a situação de Bolsonaro é dramática, o que aumenta consideravelmente o perigo; sabemos que as bestas acuadas se tornam violentas por acionarem os seus instintos mais básicos de sobrevivência,

Entretanto, mesmo aceitando de forma otimista o melhor dos cenários, ainda teremos algumas tarefas importantes para a reconstrução do Brasil. Existem tarefas urgentes, como a questão militar e a tarefa de enterrar o golpismo das forças armadas, cuja anistia nunca permitiu que se punissem adequadamente os crimes da caserna. Não menos importante é a questão política e a estrutura parlamentar brasileira frágil, que permite o golpismo, como o que foi feito contra a presidente Dilma. Sem a segurança de que não será golpeado – sem provas!! – por um parlamento oportunista e vendido nenhum governante poderá ter tranquilidade para exercer o poder sabendo que o congresso está tramando contra seu governo.

E, por fim, há a questão jurídica e o protagonismo criado pelo STF, que encampou os poderes legislativos em seu rol de ações. A ação do Ministro Alexandre de Moraes contra o PCO vai entrar para a lista dos mais graves ataques à constituição e à própria estrutura ética do Direito. Um ministro que age de ofício numa ação em que ele próprio se considera vítima é uma profunda aberração jurídica, mas que não recebeu o escândalo que merece pela inação da esquerda liberal – que enxerga nesse personagem uma proteção contra as diatribes de Bolsonaro. Os atuais ministros (mas os anteriores não merecem elogio algum) são reconhecidamente covardes, agem conforme os ventos da política e de seus compromissos anteriormente firmados. O próprio STF protagonizou momentos vergonhosos nos últimos anos, e por isso o ex-presidente Lula não titubeou em afirmar que se tratava de um poder “acovardado”.

No Brasil o STF aceita que existam leis para Dilma (pedaladas como crime de responsabilidade), outras exclusivas para Zé Dirceu (“não tenho provas mas a literatura me permite“) e algumas só aplicáveis à Lula (atos de ofício indeterminados, prisão em segunda instância). Manter o Brasil refém de um judiciário pusilânime e reacionário significa oferecer a estes atores sociais, que não são eleitos, um poder superior ao de todos os outros poderes. Sem que se faça uma revisão no judiciário brasileiro – que teve na ação corrupta do ex-juiz Moro apenas a ponta do iceberg – jamais teremos uma justiça isenta. E sem justiça temos o império da barbárie.

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A Essência do Parto

O caso da influencer que teve sua história exposta pela mídia a partir das queixas que ela fez sobre o atendimento grosseiro que recebeu durante o parto dominou os noticiários por algumas semanas e suscitou alguns debates interessantes sobre os limites da atuação médica. Por outro lado também acabou produzindo um efeito catártico, servindo para o deságue de mágoas e ressentimentos de muitas pessoas que reviveram violências sofridas no passado. O fato também possui um aspecto deletério para a cultura do parto: continuamos a mostrar o nascimento como cenário de guerra, local de gritaria, abusos, invasões da privacidade, intervenções descabidas e exercício exagerado de poder. Acredito que o debate sobre estas múltiplas violências – mais do que o ataque a profissionais – deve vir acompanhado de um esclarecimento de que a assistência ao parto não precisa ser assim e que esta não é a essência do parto. Colocar toda a nossa energia em ataques pessoais (mesmo que compreensíveis) ajuda muito pouco, quando é a própria a estrutura viciosa da atenção que produz esse tipo de problema.

O que temos é um problema sistêmico de violência ao parto, e não a sequência de “fatos isolados” que se acumulam. Tal como os tiroteios americanos que se sucedem de forma macabra, não é a caça aos degenerados que fará o problema desaparecer, mas quando a sociedade perceber que eles são consequência, e não origem, do problema estrutural da sociedade capitalista e individualista. Da mesma forma, o que testemunhamos hoje nada mais é do que a “degenerescência da assistência”, causada pela falha do sistema médico das sociedades ocidentais de reconhecer e trabalhar com as necessidades afetivas, emocionais, sociais e espirituais do parto e nascimento. Esse evento foi violentado em nossa cultura, afastado de sua essência de cuidado, jogado na lógica da intervenção e da patologia, controlado por cirurgiões treinados na intervenção e gerenciado por interesses capitalistas. Como poderia um projeto como esse prosperar sem a criação de um clima artificial de pânico a lhe envolver, fazendo desse medo a base ideológica de tanta submissão e – como consequência – tantos abusos?

Praticamente tudo o que se vê na atenção ao parto – do local do parto aos procedimentos, passando pelo local de nascer e pelos acompanhantes – é artificial e ideológico. Quase nada (com raras e notáveis exceções) está baseado em evidências científicas sólidas. Entretanto, a encenação de um nascimento segue um roteiro bem estabelecido de submissão e poder, que obedece a um ordenamento opressivo sobre as mulheres – tratadas como contêineres fetais, e seus bebês – vistos como o produtos da cultura.

Há poucos dias um casal amigo planejou um parto hospitalar, mas o bebê nasceu muito rápido e acabou chegando a este mundo pelas mãos das parteiras que os acompanhavam em casa. Decidiriam ir ao hospital conforme combinado para terminar a avaliação, e lá foram tratados com atitudes típicas de retaliação por alguns profissionais, motivadas pela “ofensa” de permitir a um bebê nascer em sua própria casa. Na saída do hospital o casal me confidenciou: “o saldo foi positivo, pois só uma médica plantonista e uma enfermeira chefe foram “terroristas” conosco. Os outros foram bem gentis e educados”.

Ainda acho que somos demasiado condescendentes com este tipo de violência, tão comum quanto disseminada. Aceitamos um mínimo de dignidade como se fosse um presente e ainda engolimos sapos para não criar confusão. Estamos inseridos em uma sociedade onde questionar o poder abusivo é visto como “desacato”, como atitude de enfrentamento e comportamento não colaborativo. Somos doutrinados a naturalizar ações agressivas por parte de equipes médicas pela crença de que “é para o nosso próprio bem”. Não, não é em nosso benefício; é apenas para manter os pacientes dóceis e submissos às ordenações criadas para facilitar a vida e os ganhos de profissionais e instituições. A própria existência de abusos na indicação de cesarianas é a prova de que existe uma tendência de que as ações nos hospitais sejam conduzidas no sentido de proteger a ação dos profissionais e dos hospitais, e não no benefício primordial de mães e bebês.

Ainda assim, mais do que fazer justiça, é fundamental ampliar o debate sobre os descaminhos da assistência ao parto através das críticas aos seus fundamentos e sua conexão com a visão alienante do modelo patriarcal que visa o controle da sexualidade feminina em todos os seus aspectos. Para revolucionar a assistência ao parto e nascimento é essencial desconstruir a visão centenária do parto como “ato médico” e reconstruí-la através de uma visão transdisciplinar, integrativa e baseada em evidências científicas consistentes.

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Vitrines

Profissionais que mostram uma versão muito bonitinha e cor de rosa de si mesmos(as) atraem uma “energia” muito difícil de lidar: inveja, desdém, fofocas e competição por espaço. Ainda vivemos em uma sociedade de hiper exposição, mas no futuro haverá uma necessária retração, pois a ausência de limites claros entre vida profissional e privada cobrará um preço cada vez maior.

Colocar-se na vitrine, expondo apenas o glamour de seus momentos de sucesso é sempre arriscado; desinstituir-se é o caminho mais seguro. E, acima de tudo, a vida é curta demais para levar a si mesmo tão a sério.

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Fogueira

Vou me repetir mas apenas porque nesses momentos é fundamental ser didático e não perder a oportunidade de educar as pessoas sobre os limites da ação médica e a importância de reforçar a luta pelos direitos dos pacientes.

Existe um fenômeno na escola chamado “eleição do courinho”. É evidentemente uma escolha informal, sem votos expressos, mas consensual. Esse personagem na escola é escolhido para receber a maior carga de bullying por parte dos colegas, geralmente por ter algum tipo de defectividade: são eleitos quase sempre os gordos, os baixinhos, os magricelas, os lentos, os de óculos, os desengonçados, etc. Esse sujeito, a exemplo do “comedor de pecados”, vai atrair para si todas as máculas que carregamos, concentrá-las em si mesmo e sofrê-las, como um Cristo a garantir nossa salvação expiando os pecados do mundo.

Este “courinho” (em quem todos batem) produz um efeito apaziguador de nossas fragilidades. Se eu sou gordinho ninguém vai notar, porque não sou tão gordo quanto o “bola”. Se eu sou baixinho não importa pois ainda sou um pouco maior que o “tampinha”. Se sou feio ainda assim não assusto tanto quanto o “rascunho”. Se uso óculos, pelo menos não uso um “fundo de garrafa” como o meu colega “4 olho”.
Se eu faço uma episiotomia sem indicação, pelo menos não mostro para o marido, como alguns por aí. Sim, eu grito, bastante até, mas não digo “pohaaa” como aquele outro. Se assumo o protagonismo e exproprio o parto das pacientes, pelo menos não posto no Instagram. Se “faço os partos” pelo menos tenho menos cesarianas que aquele outro colega. Se desmereço a capacidade da mulher, pelo menos não falo “viadinha” como fiquei sabendo por aí.

Esses personagens são exaltados para carregar as NOSSAS FALHAS, nossos erros, nossa violência estrutural cotidiana, e acima de tudo para esconder o quanto estamos todos envolvidos em um modelo misógino, que desmerece as capacidades inatas das mulheres de gestar e parir com segurança. Criar um culpado serve para desviar o foco da enfermidade crônica da obstetrícia ocidental.

As coisas que esse doutor fazia, aparentemente com mais de uma paciente – tipo comentar sobre a vagina delas, falar palavras impróprias, mostrar a laceração para o marido, assumir o protagonismo do parto, fazer publicidade exagerada do seu trabalho nas redes sociais – não deveriam ser tratadas como uma “caça às bruxas”, tentando colocar a culpa nessas práticas em apenas um sujeito de comportamento “desviante. Estes erros são, em verdade, um catálogo das falhas cotidianas que estão espalhadas por todos os profissionais, os quais estão imersos em um paradigma de atenção inerentemente violento.

Toda caça às bruxas, todo linchamento e todo julgamento inquisitorial carregam essas características: mostram muito mais quem julga do que quem é julgado. Não se trata de desculpar suas atitudes e falhas, mas penas não se permitir desviar do foco: a mudança profunda no modelo de atenção ao parto.

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Violência

Hoje me mandaram os vídeos e áudios de um caso de atenção violenta ao parto numa grande cidade brasileira. Não acho razoável que o nome do profissional seja citado por nós, e acredito que poderei explicar as razões para essa discrição nas linhas que se seguem abaixo.

Quando eu ouvi os diálogos na sala de parto fiquei espantado, mas talvez de uma forma diferente da maioria das pessoas. Em verdade, eu me senti como o cicerone de um campo de refugiados que mostra aos visitantes as condições precárias do lugar onde os exilados vivem. Para mim, algo banal, para os visitantes um quadro de horror. Assim, as cenas de violência verbal e abusos que eu escutei nada mais eram do que o padrão da assistência ao parto de que eu fui testemunha por tantos anos. Meu espanto não era pelo conteúdo, mas pelo fato de que ainda existem expressões dessa violência na terceira década do terceiro milênio depois de Cristo.

Eu bem sei o quanto o parto é estressante para os profissionais que o atendem. A configuração constrita das famílias contemporâneas produz uma concentração de expectativas e projeções inédita nos poucos filhos que nascem. Alie-se a isso o projeto da obstetrícia – desde sua criação – de produzir sobre o fenômeno fisiológico do parto todo o apavoramento possível, para assim garantir aos médicos – personagens da undécima hora na atenção a esse evento – a garantia do quinhão maior e mais suculento desse corpo esquartejado de mulher. Por estas razões, o parto no mundo ocidental opera sob o signo do medo, de um pânico que ultrapassa o medo natural das mulheres diante de fenômenos especiais que ocorrem em seu corpo. Esse medo atinge o parceiro, a família, a equipe, a instituição e toda a sociedade. Com todo esse estímulo ao pavor que circunda o nascimento é fácil entender porque ele se torna, muitas vezes, um circo de horrores.

Enganam-se aqueles que, com os archotes nas mãos, procuram no linchamento do profissional que usou da violência, da arrogância e do abuso como linguagem a solução punitivista – portanto equivocada – deste tipo de problema. Fazer isso seria tratá-lo como uma “exceção”, o que está longe da verdade. O problema não está com um profissional que perdeu o rumo da atenção, deixando que a sensação de impunidade, a ansiedade e a angústia dominassem seu discurso e contaminassem suas palavras com desdém e prepotência. Seria muito fácil se assim fosse; bastaria obrigá-lo a um processo de reeducação sobre a atenção à mulher, encaminhando-o a uma “reciclagem”. Mas, infelizmente, não é esse o drama que temos de encarar.

A verdadeira tragédia é o fato de que este é o discurso hegemônico da obstetrícia. Esta não é uma exceção. A atenção ao parto, conforme a sua vertente médica, tecnocrática e contemporânea, olha para a mulher como o estorvo do parto. A mulher e seu sistema defectivo e falho de gestar e parir, são os problemas que atrapalham a adequada atuação do médico. A incompetência essencial do organismo feminino é a responsável pelas demoras, falhas, complicações e tragédias, e não a incapacidade dos profissionais de lidar com esse evento.

Recordei agora de uma paciente grávida que me mostrou o vídeo do seu parto prévio. Nos momentos imediatamente anteriores à expulsão do bebê o médico perdeu o foco dos batimentos cardíacos, quando já estava ocorrendo o coroamento – talvez porque o peito do bebê estava atrás do púbis. Apavorado diante da falta de batimentos ele grita para a mãe: “Menina, faça força. Agora você precisa me ajudar!!”. Isto é, até aquele momento ele, o médico, havia trabalhado sozinho, mas a partir da pseudo emergência (o bebê nasceu em perfeitas condições) seria necessário que a mulher também colaborasse no nascimento da criança. Longe de ser um equívoco, tratava-se de um “freudian slip”, um ato falho, que demonstrava qual a posição que ele acreditava se encontrar no cenário do nascimento. Na percepção desse obstetra, ele estava parindo, enquanto a mulher representava as dificuldades que ele tinha a vencer para salvar a ambos, mãe e bebê.

O drama, que agora fica evidenciado pelo escândalo, se estabelece pelo fato de que, ao contrário das outras especialidades médicas – onde os pacientes são objetos inermes sob o controle do profissional – no parto é a mulher quem o faz acontecer. Assim, ela não é uma paciente – o nome “paciente” se refere àqueles que sofrem, que padecem – mas agente ativa do que está ocorrendo com seu corpo e suas reações. Ela não está doente, e nem está padecendo de nenhum mal, mas inobstante esse fato, é tratada pela medicina contemporânea como se assim o fosse, colocada numa posição objetual, negando-se a ela posição ativa no processo, impedindo-a de ser sujeito – e não objeto – de suas ações. Mas, para ser justo com os médicos, como pedir que eles passem anos objetualizando seus clientes para melhor intervir em seus corpos e, na obstetrícia, esta lógica se apresente a eles absolutamente invertida?

Na mentalidade médica contemporânea os insultos e os gritos estão colocados na posição do escalpelo e da tesoura, entendidos como instrumentos para subjugar um corpo que não colabora com os desejos e os tempos do médico e se contrapõem à lógica da medicina. Não deveria causar espanto que a adoção dessa perspectiva centrada nos cirurgiões invariavelmente redundaria na artificialização do nascimento e na expropriação do processo, retirando-o das mulheres e colocando-o nas mãos do médicos. Justo, parece, que eles reclamem quando as mulheres atrapalhem o “seu” trabalho.

Portanto, para que as violências verbais e os abusos contra a autonomia e a dignidade das mulheres deixem de ser o padrão não basta apenas utilizar a lógica serjomorista de “vigiar e punir”, imaginando que a punição, a exclusão e o linchamento público poderão produzir resultados positivos. A vingança é sempre traiçoeira; oferece um suave sabor ao ser consumida, mas uma inexorável indigestão depois de metabolizada. Mais demorado, mais custoso e mais difícil é colocar o dedo na ferida da atenção médica e institucional ao parto normal eutócico, questionando seus alicerces, denunciando suas falhas grotescas e seus resultados pífios. Apesar de mais complexo e demorado, este é o caminho mais seguro para garantir um valor revolucionário ao nascimento que, ao ser transformado (como bem o sabemos), transformará toda a sociedade.

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Deuses gregos

Robbie certa vez me contou de uma amiga cujo marido é um sujeito “out of her league”. Isto é, um sujeito que é exageradamente bonito, muito charmoso e muito além da beleza da sua mulher. Eles fazem um casal díspar: um homem demasiadamente bonito para a beleza “comum” (eu diria, medíocre) da sua companheira de muitos anos. Essas são as palavras com as quais minha amiga descreveu o casal, porque nunca os vi, mas acredito no seu apurado olhar estético.

Em uma oportunidade, durante uma visita que fez com várias amigas a ela, Robbie lhe fez o seguinte comentário:

– Querida, queria lhe falar alguma coisa e não quero que me leve a mal. Por favor, entenda como uma dúvida sincera e sem segundas intenções. Eu acredito que você deve saber o que falam do seu marido, não?

Ela balançou a cabeça sorrindo e disse:

– Sim, eu bem sei. Isso já foi dito para mim de diversas formas, com atitudes, sorrisos, gestos e até palavras – como você está para me dizer. Sei o quanto ele é bonito e também como ele parece estar bem além dos meus tímidos atributos. Não tenho dúvidas disso e até eu me surpreendo. É evidente que uma relação amorosa não se constrói somente por estas capas estéticas, mas bem o sabemos o peso que elas desempenham na escolha de uma parceria. Não fosse isso verdade, que sentido haveria na extrema exaltação da beleza – em especial das mulheres – e porque tanto estranhamento se produz ao nos ver juntos?

Robbie tentou explicar que não havia nenhum julgamento, que ela era também linda, e que se tratava dê um elogio sincero de uma amiga para o “pedaço de homem” que ela tinha em casa e blá, blá, blá. Ela sorriu benevolente e continuou:

– Amiga, acredite, já ouvi isso de muitas formas. Sei o quanto ele é bonito e honestamente não consigo explicar porque ele, podendo ficar com a chefe das “cheerleaders“, escolheu ficar com a menina mediana da escola. A verdade é que devo ter atributos que ainda o encantam depois de mais de 30 anos de casamento, mas estaria mentindo se dissesse que sei quais são. Talvez exista algo na sua fantasia mais recôndita que ele encontra nessa mãe redondinha, com furinhos nas coxas e com rugas charmosas distribuídas pelo rosto.

Deu uma pausa para um novo sorriso e explicou:

– Mas no fundo eu acredito que a razão para ele ser tão simples e continuar comigo apesar de ter uma beleza física tão comentada é algo muito mais simples, que é…

Robbie arregalou o olhos, enquanto ela respondia, sem antes dar uma boa gargalhada…

– … o fato de que ele não sabe o impacto que produz nas mulheres e suas fantasias. Ele desconhece o quanto é bonito. Nunca se julgou assim e nunca apostou em sua vaidade como ferramenta de conquista ou sucesso. Talvez isso seja até uma limitação, um bloqueio de sua autoestima, mas é esse “defeito” que me permitiu ser feliz ao seu lado, e – por que não? – permitiu que ele fosse feliz comigo.

Bebeu mais um gole do chá e concluiu sorrindo:

– Só espero que vocês não tenham vindo me visitar apenas para fazê-lo, por fim, descobrir essa verdade há tanto tempo escondida de si mesmo.

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Dor do Parto

Analise a mensagem no cartaz ao lado e pense em seus significados. Sempre carreguei comigo esta curiosidade: alguém poderia explicar para mim o que exatamente é uma “unidade de dor”. Que aparelho mede isso? Gente, essas medidas são fantasias, uma tentativa ingênua de transformar dados subjetivos em unidades mensuráveis. Medir uma “unidade de dor” é quase tão ingênuo quanto avaliar “unidades de paixão”, “unidades de raiva” ou “nível de te(n)são”. Estas variáveis poderiam no máximo ser avaliadas em um mesmo indivíduo (e ainda assim seriam afetadas pelas emoções, contextos, circunstâncias, etc.), porém jamais entre duas pessoas diferentes em sua história e estrutura psíquica.

Essas medidas são pura imaginação descontrolada. Não deveríamos disseminar esse tipo de informação distorcida. Dor é um valor subjetivo, pessoal, único e não mensurável. Não há como comparar a dor de alguém com a dor de outro indivíduo, ou um tipo específico de dor com outra dor. As dores são sentimentos, envolvidos com fatores emocionais, e não apenas sensações químicas e neurais. Não existem dores puras em corpos simbólicos e erotizados.

Além disso, o parto pode ser um evento absolutamente INDOLOR para algumas mulheres. Em populações originárias o que chamamos de “dor de parto” sequer leva esse nome. E digo mais: as mulheres tem valor por serem humanas, dignas e respeitáveis tanto quanto os homens o são. Comparar dor de parto – algo tão subjetivo quanto gostos e preferências pessoais – não ajuda as mulheres e apenas sacraliza preconceitos e mitos.

E não garante nem biscoitos…

Este tipo de ideia, na cabeça de uma menina, pode produzir a imagem de que o parto só ocorre através de dores insuportáveis, dilacerantes e desumanas, deixando claro que apenas masoquistas e heroínas deveriam se submeter a elas. Será que é essa a ideia que desejamos transmitir às garotas sobre os desafios do parto?

A comparação da dor do parto com ossos quebrados e a mensuração da dor por “unidades de dor” é puro delírio e prejudica a compreensão que temos do parto e as leis que o regulam.

Fundamentalismo, em verdade, é acreditar no “mito da dor sobre-humana”, do “sacrifício”, da fantasia do “sofrimento insuportável para dar a vida aos seus filhos”. Isso sim é um fundamentalismo cultural baseado no “mito do amor maternal”, e está baseado num essencialismo que deve ser evitado e combatido. Uma mulher que não teve filhos – por escolha ou contingências – ao ler esse texto pode se achar menos digna, porque nunca passou pelo teste de coragem e de sacrifício das outras. Isso é cruel e injusto.

Não é correto acreditar que o questionamento e a visão crítica de mitos e ideias errôneas significa ser extremista. Não… Eu sou RADICAL, palavra derivada de “raiz”, na medida em que questiono os fundamentos, as raízes desses modelos patriarcais impostos às mulheres para garantir a elas posições estanques na sociedade, impedindo-as de questionar as outras inúmeras posturas e lugares que podem ocupar.

Entendam… esse texto DEPÕE contra as mães. Falseia a realidade, cria pânico em meninas, produz confusão conceitual e deseduca quem quer se aproximar do tema do parto e do nascimento.

Não há desculpa para usar medidas falsas ou as fantasiosas “unidades de dor”. Não duvido que a intenção do texto seja valorizar as mulheres, mas tal escolha não é correta pois se assenta em dados absurdos que não valorizam as mulheres pelo que verdadeiramente são: seres completos, dignos e complexos, cujo valor não pode ser medido tão somente pelo suposto sacrifício de suportar dores acima dos limites humanos. Depois de trabalhar 40 anos com gestantes não é possível olhar para este tipo de informação e ficar impassível.

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Diferenças

Pensamentos aleatórios…

Basear a procura amorosa por alguém “parecido conosco”, ou oposto a nós, com base na ideia de sintonia para o primeiro e complementaridade para o segundo pode ser apenas uma meia verdade. Uma pessoa muito parecida tira o gosto do desconhecido, mas uma muito diferente assusta pela imprevisibilidade.

Mas… no fundo eu creio que essa busca por elementos racionais para explicar ou direcionar as ligações amorosas acaba sucumbindo à evidência de que os determinantes são sempre ligados ao desejo e certamente inconscientes, portanto, irracionais. Tentar racionalizar esse encontro atrapalha a brincadeira.

E tem mais um detalhe. Diferente no quê? Parecido em quais detalhes? O que a gente vê no exterior é uma pálida imagem os conteúdos internos de uma pessoa. Você pode ser profundamente diferente por uma avaliação externa, mas cultivar os mesmos valores, traumas, fantasias e experiências em sua alma, o que os conecta de forma invisível. A ideia de “semelhante” ou “diferente” se faz por uma miragem, um engodo performático, uma ilusão de conteúdo.

Não?

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Bloqueios

A dificuldade de interpretação continua sendo a tragédia das redes sociais. Um drama que parece não ter sido ainda controlado pois se assenta sobre um fato inconteste, e talvez insolúvel: só lemos o que nosso desejo permite e apenas o que se adapta ao molde previamente determinado por nós na fala do outro.

Criamos espantalhos cujas palavras não tememos (dis)torcer, desde que, assim construídos por nós mesmos, sejam mais facilmente atacados pela fúria de nossas crenças.

No fim acabamos debatendo solitariamente, gritando contra nossas próprias contradições e fragilidades. Solilóquios que se multiplicam em milhões de respostas agressivas e “lacrações”, navegando no cyberspaço a milhões de bytes por segundo.

Todos os dias, em toda parte…

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