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Drogas

A paixão das pessoas por drogas – ilegais ou prescritas – é algo que me assombra. Não se trata apenas dos efeitos da “propaganda” e a pressão capitalista da indústria; para além disso se trata de uma vinculação muito mais profunda, inconsciente e, por isso mesmo, muito mais violenta. As pesquisas apontam que nos Estados Unidos a geração “Y” – os “millenials”, nascidos dos anos 80 até o início dos anos 90 – usa em média uma droga prescrita por dia. Isso é um contingente gigantesco de pessoas literalmente drogadas, que financiam uma indústria cada vez mais poderosa. Sem falar da epidemia de metanfetamina, onde ocorreu um aumento de 170% de 2015 para 2019. No ano de 2001 o número de mortes associadas ao uso de Metanfetamina e Fentanyl ultrapassaram a faixa de 110 mil por ano. A maioria dessas mortes está entre os jovens.

Hoje em dia, no que diz respeito à saúde, a atitude mais desafiadora e poderosa que as pessoas podem ter é fugir do modelo drogal e aditivo da medicina contemporânea. Isso não significa desprezar médicos e medicamentos, mas estabelecer limites bem restritivos para seu uso. Para mudar essa tendência será necessário fazermos uma reeducação das pessoas, uma reformatação das nossas atitudes diárias e uma mudança radical em nossos valores. Para isso sugiro algumas atitudes simples iniciais:

Não use nenhuma droga, a não ser que seu uso seja a única solução possível para sua cura ou para a melhora de um sintoma considerado insuportável. Não cite nome de drogas em casa. Não comente sobre remédios, em especial na frente dos seus filhos pequenos. Combata diariamente a normalização do uso de remédios. Diga não à banalização dos medicamentos, consumidos como se fossem balas ou biscoitos. Dissemine a ideia de que não existem drogas 100% seguras (mais de 3 mil pessoas morrem por ano nos Estados Unidos pelo uso contínuo de…. aspirina). Não crie a expectativa de que a solução dos seus problemas se encontra no uso de substâncias químicas; na maioria das vezes o enfrentamento dos problemas de forma adulta e madura é muito mais consistente. Questione a origem dos seus males: da sua pressão alta, da sua dor de cabeça, de suas dores lombares, dos seus transtornos digestivos, da sua falta de ar. Muitas vezes existem hábitos inadequados que precisam ser modificados, e quase sempre há um desarranjo emocional e afetivo atrás do sofrimento físico que experimentamos “Doença se forma a partir de algo que não foi dito”, já diziam os analistas.

Romper o vício da drogadição não é tão somente uma tarefa pessoal, mas igualmente social. É preciso romper o estímulo à alienação que as drogas (legais e ilegais) produzem no sujeito. É necessário igualmente combater os desencadeantes que existem no capitalismo que induzem ao uso abusivo de medicamentos. Por fim, é urgente a criação de uma sociedade nova, regenerada, que não acredite em solução embaladas e prescritas, mas que lute por solução pessoais e coletivas para os nossos sofrimentos.

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O Ocaso do Parto Normal

Foto de Amanda Vargas para Bebê Abril

Vejo, com certo desânimo, que se fortaleceu o discurso que suaviza as cesarianas, tratando-as como cirurgias que podem ser “humanizadas”. Essas coisas já me incomodaram muito no passado; hoje só me entristecem. Durante anos sustentei a tese de que a humanização só pode existir aliada ao protagonismo. Todavia, na cesariana o protagonismo é entregue ao médico e, portanto, não há como “humanizar” aquilo sobre o qual não temos controle, somente exigir que seja feita de forma respeitosa e suave. “Humanização do nascimento é a garantia do protagonismo à mulher; o resto é sofisticação de tutela”.

Eu às vezes acredito que a “cultura do parto normal” é um projeto falido, algo como tentar evitar que as crianças usem o celular em excesso. Existe uma conexão violenta com estas tecnologias em ambos os casos, e as tentativas de “discipliná-las” fracassa diante do desejo incontrolável que leva ao seu uso. Lutamos contra condicionantes culturais extremamente poderosos, em especial porque o próprio parto normal atua contra os princípios fundamentais do capitalismo e nos faz pensar nos limites da tecnologia. “Os tempos do parto agridem a roda do capital”.

A ideia de que a forma de nascer é constituinte da formação do sujeito que está nascendo, tanto quanto da mulher que surge de seus escombros, é tão sofisticada e sutil que as pessoas comuns simplesmente não conseguem captar essa proposta. “Ora, para que sofrer horas à fio se posso resolver esse drama em 20 minutos? Riscos? No jornal e nos tribunais só aparecem casos desastrosos de parto, jamais de cesarianas. Por que deveria eu me submeter a um modelo de nascimento fracassado, antigo, cruel, sacrificial e ultrapassado?”

Como convencer mulheres do contrário? Um dos sinais desse fracasso é exatamente a proposta sutil de “humanizar” a cesariana, tirando dela sua aura de “intervenção” ou “alienação”. Para isso usamos a palavra “humanizada” para qualificá-la descrevendo o cuidado, a atenção, o carinho e o afeto que podem ser usados nesta cirurgia – apesar de que, por esse critério, até uma apendicectomia pode ser “humanizada”. Esse movimento – a troca de termos – sugere uma lenta e gradual capitulação. “Já que é impossível convencer que os sacrifícios (sacro ofício) de um parto normal produzem benefícios que se multiplicam para toda a vida, vamos pintar de dourado sua alternativa, mostrando a cesariana como algo igualmente belo e empoderador, “humanizando” a abertura de sete camadas de tecidos e transformando a extração fetal em um gesto de amor”. A frase que segue é sempre “não sinta vergonha por suas decisões”.

Pois não há vergonha alguma em admitir que talvez a luta pela humanização do nascimento venha a fracassar. Talvez mesmo as mulheres não queiram mais passar por este processo, mesmo com décadas de pesquisa científica mostrando a superioridade do parto normal, em todos os níveis, sobre a cirurgia para a retirada de bebês. É necessário ser maduro o suficiente para aceitar a possibilidade de que o futuro do nascimento humano será totalmente artificial, sem qualquer participação ativa das próprias mulheres, a quem – ainda – será reservada a nutrição e o desenvolvimento dos bebês em seus corpos. Com o tempo até este peso será retirado delas, e os novos integrantes da sociedade serão nutridos e criados em chocadeiras humanas. Um alívio, uma libertação, uma evolução – dirão muitos.

Não estou sendo irônico. Quando vejo obstetras usando a expressão “cesariana humanizada” eu percebo o início da estrada cujo destino final é a lenta extinção de um capacidade fisiológica. A atrofia sistemática das capacidades de parir, acrescida do extermínio lento e gradual de profissionais que cuidam do parto normal – habilidades desenvolvidas por milhões de anos em nosso gênero – me obrigam a uma visão pessimista do futuro do parto. O resgate do parto é a busca por nossa essência, entretanto a suprema alienação das mulheres desse processo e a expropriação definitiva do nascimento pela tecnologia são realidades que não surgirão por decreto, mas por passos quase imperceptíveis, os quais só podem ser captados por quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir.

Por certo que não se trata de um destino já determinado. Cabe às mulheres decidir sobre algo que, em última análise, é o grande diferencial em sua função planetária. Entretanto, quando nenhuma criança mais surgir através do esforço e da dedicação de uma mulher, quando o grito primal for substituído pelos ruídos metálicos da mesa cirúrgica e quando a voz embargada do pai der lugar aos gracejos dos médicos no campo operatório, a estrutura psíquica que nos constitui estará radicalmente alterada e a sociedade como a conhecemos será radicalmente outra. Se existe amor, este é o amor de uma mãe pelo seu filho, sendo todos os outros amores dele derivados. A maior função de uma mãe é ensinar seu filho a amar. O que será da humanidade quando for suprimida do cotidiano de todos os seus habitantes nossa primeira e majestosa lição?


Veo, con cierta consternación, que se ha fortalecido el discurso que suaviza las cesáreas, tratándolas como cirugías que se pueden “humanizar”. Estas cosas me han molestado mucho en el pasado; hoy solo me entristecen. Durante años sostuve la tesis de que la humanización sólo puede existir en conjunción con el protagonismo. Sin embargo, en la cesárea, el papel principal lo tiene el médico y, por lo tanto, no hay forma de “humanizar” lo que no tenemos control, solo para exigir que se haga de manera respetuosa y gentil. “La humanización del nacimiento es la garantía del protagonismo de la mujer; el resto es sofisticación de la tutela”.

A veces creo que la “cultura del nacimiento normal” es un proyecto fallido, algo así como tratar de evitar que los niños usen en exceso sus teléfonos celulares. Hay una conexión violenta con estas tecnologías en ambos casos, y los intentos de “disciplinarlas” fracasan ante el deseo incontrolable que impulsa su uso. Luchamos contra restricciones culturales extremadamente poderosas, especialmente porque el nacimiento normal en sí mismo actúa en contra de los principios fundamentales del capitalismo y nos hace pensar en los límites de la tecnología. “Los tiempos del parto atacan la rueda del capital”.

La idea de que la forma de nacer es un constitutivo de la formación del sujeto que nace, así como de la mujer que emerge de sus escombros, es tan sofisticada y sutil que la gente común simplemente no puede captar esta propuesta. “Bueno, ¿para qué sufrir horas y horas si puedo resolver este drama en 20 minutos? ¿Riesgos? En el periódico y en los tribunales solo aparecen casos desastrosos de parto, nunca cesáreas. nacimiento, cruel, sacrificial y anticuado?”

¿Cómo convencer a las mujeres de lo contrario? Uno de los signos de este fracaso es precisamente la sutil propuesta de “humanizar” la cesárea, quitándole su aura de “intervención” o “alienación”. Por eso, usamos la palabra “humanizado” para calificarlo describiendo el cuidado, la atención y el afecto que se pueden usar en esta cirugía, aunque, según este criterio, incluso una apendicectomía puede ser “humanizada”. Este movimiento -el intercambio de términos- sugiere una capitulación lenta y gradual. “Como es imposible convencer que los sacrificios (oficio sagrado) de un parto normal producen beneficios que se multiplican de por vida, pintemos de oro su alternativa, mostrando la cesárea como algo igualmente hermoso y empoderador, “humanizando” la apertura de siete capas de tejido y convirtiendo la extracción fetal en un gesto de amor”. La frase que sigue es siempre “no te avergüences de tus decisiones”.

No hay vergüenza en admitir que tal vez fracase la lucha por la humanización del nacimiento. Quizás incluso las mujeres ya no quieran pasar por este proceso, incluso con décadas de investigación científica que muestran la superioridad del parto normal, en todos los niveles, sobre la cirugía para dar a luz. Es necesario ser lo suficientemente maduro para aceptar la posibilidad de que el futuro del nacimiento humano sea completamente artificial, sin ninguna participación activa de las propias mujeres, a quienes – aún – les estará reservada la nutrición y el desarrollo de los bebés en sus cuerpos. Con el tiempo, incluso se les quitará este peso de encima, y ​​los nuevos miembros de la sociedad serán nutridos y criados en incubadoras humanas. Un alivio, una liberación, una evolución – dirán muchos.

No estoy siendo irónico. Cuando veo a los obstetras utilizar la expresión “cesárea humanizada” percibo el inicio de un camino cuyo destino final es la lenta extinción de una capacidad fisiológica. La atrofia sistemática de la capacidad de dar a luz, sumada al lento y paulatino exterminio de los profesionales que atienden el parto normal – habilidades desarrolladas durante millones de años en nuestro género – me obligan a tener una visión pesimista del futuro del parto. El rescate del parto es la búsqueda de nuestra esencia, sin embargo la alienación suprema de la mujer de este proceso y la expropiación definitiva del nacimiento por parte de la tecnología son realidades que no emergerán por decreto, sino por pasos casi imperceptibles, que sólo podrán ser captados por aquellos que tienen ojos para ver y oídos para oír.

Ciertamente, este no es un destino predeterminado. Corresponde a las mujeres decidir sobre algo que, en definitiva, es el gran diferencial en su rol planetario. Sin embargo, cuando ya no surgen más hijos gracias al esfuerzo y dedicación de una mujer, cuando el “grito primal” es reemplazado por los ruidos metálicos de la mesa de operaciones y cuando la voz quebrada del padre da paso a las bromas de los médicos en el campo de operaciones, la estructura psíquica que nos constituye será radicalmente alterada y la sociedad tal como la conocemos será radicalmente diferente.

Si hay amor, es el amor de una madre por su hijo, todos los demás amores se derivan de él, y la mayor función de una madre es enseñar a su hijo a amar. ¿Qué será de la humanidad cuando nuestra primera y majestuosa lección sea suprimida de la vida cotidiana de todos sus habitantes?

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Bêbado e equilibrista

A questão do surto opiniático da sociedade contemporânea é equilibrar-se sobre a fina lâmina que separa a compulsão pelas opiniões e a mais improdutiva alienação. Colocar-se de forma equidistante entre estes dois polos é tarefa complexa e, invariavelmente, pendemos para um dos lados.

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Medicina e Medo

”The Doctor”, 1891; Samuel Luke Fields (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate – Londres. (*)

Qual a razão da crescente insatisfação de tantos pacientes com os abusos cometidos por uma medicina cada vez mais alienante, técnica, fria e desumana, onde a intervenção e o uso de drogas assumem a característica mais marcante dessa atuação? Hoje em dia a cena ancestral do médico compassivo, atencioso, dedicado e atento que, ao lado do leito, anota em silêncio as queixas e sinais dos enfermos, dá lugar aos exames, as cirurgias e as drogas, alienando progressivamente o paciente de sua própria cura.

Quando os médicos atuam de forma abusiva – em especial no parto, onde a intervenção se tornou a regra e a fisiologia ocorrência rara – assim o fazem para garantir a sua proteção, e não por serem pérfidos, interesseiros ou ignorantes. Se um médico resolve esperar diante de um impasse clínico e algo inadequado ocorre a culpa será invariavelmente considerada sua e, a partir de então, sua vida se tornará um inferno com os ataques que surgirão da própria corporação. Por outro lado, se ele intervém e o paciente – como resultado da intervenção – tem algum problema grave (ou mesmo vem a óbito) a responsabilidade se dilui, e a perspectiva que sobressai é de que o resultado funesto foi devido ao risco natural e inexorável de qualquer procedimento, o qual ocorreu apesar do tratamento médico adequado. Isso porque a tecnologia é um mito, e por isso não pode ser jamais questionada.

A isto costuma-se chamar de “imperativo tecnocrático”, que determina que a existência de tecnologia para tratar um determinado caso obriga a sua utilização, mesmo que os resultados desta intervenção não sejam comprovadamente melhores, e aqui a cesarianas ocupam um lugar de destaque como grande exemplo deste tipo de tendência. Muito mais do que evidências científicas, a profissão é levada a agir por defesa, aumentando gravemente os riscos para os pacientes – mesmo que os diminua para os médicos.

Ou seja, o uso de tecnologia vai sempre blindar o médico, dar-lhe segurança e oferecer a ele proteção profissional. Na obstetrícia, as cesarianas são “salvo condutos” para garantir segurança aos profissionais. Raríssimos médicos são processados por cesarianas abusivas mas qualquer um que ouse atender partos, mesmo quando dentro de parâmetros reconhecidos no mundo inteiro, incorre em sério risco profissional. A escolha pelo tratamento mais seguro para si é compreensível em qualquer profissão – médicos não são kamikazes – apesar de não ser justificável sob qualquer parâmetro ético; médicos atuam sob o signo do medo e sabem o quanto um mau resultado pode destruir uma carreira tão arduamente construída.

Desta forma, não são os médicos que precisam mudar; é a própria sociedade, seus valores, seu sistema jurídico, sua mídia, seu sistema de saúde e os próprios pacientes, que invariavelmente não vão titubear em deslocar a dor e a frustração de uma perda para a pessoa do médico, em especial quando a postura deste é contra-hegemônica e agride o modelo tecnocrático e intervencionista da medicina capitalista. Imaginar que a mudança na atenção é uma responsabilidade dos médicos é injusto e inútil; eles apenas fazem a Medicina que a sociedade lhes solicita e autoriza. Para mudar a atenção à saúde é necessário suplantar o capitalismo e transformar a Medicina, para que ela deixe de ser mercantilista e baseada no lucro das grandes corporações, e passe a ser um sistema de cuidados centrado na pessoa, e não nos ganhos obtidos com a doença.

Só então poderemos constatar que, quando a sociedade se transforma, os médicos (juízes, advogados, políticos, policiais, bombeiros, militares, etc) se transmutam como consequência. Porém, essa mudança é dialética, pois que o exemplo de alguns profissionais também vai moldar a forma como a sociedade enxerga os evento da atenção à saúde, gerando assim mais consciência, que por sua vez será agente de transformação. Não existe, portanto, justificativa para que os médicos não se mobilizem para que a sua ação médica seja impulsionadora da mudança.

A prática médica é a síntese dos valores da sociedade onde atua, não sua causa precípua. Sociedades violentas produzem uma medicina truculenta e intervencionista; nas sociedades baseadas na paz e na democracia a Medicina vai fomentar uma saúde centrada na pessoa e na responsabilidade compartilhada entre cuidador e paciente. Entretanto, sempre devemos cobrar dos médicos que compreendam a verdadeira amplitude de sua ação social, e não se permitam sucumbir às pressões desumanizantes a que são submetidos.

(*) O quadro nos remete a um momento dramático na vida do pintor Samuel Fields. Nele está retratada a morte de seu filho na noite de Natal do ano de 1877, mas também está expressa a homenagem ao médico, atento, circunspecto e prestativo, que assistiu seu filho até o derradeiro momento quando, por fim, a vida do menino evadiu-se do corpo. Na imagem podemos ver seu estúdio, os móveis, o ambiente lúgubre que aguardava o desfecho mórbido, o desespero da mãe e o olhar apático do pai – o próprio Samuel. Apesar de ser uma imagem que nos remete ao dramático e trágico da existência ela igualmente nos mostra que a função do médico não é “curar os doentes”, mas estar ao seu lado, aliviando as dores e sofrimentos, curando quando for possível, mas sendo sempre a mão fraterna a oferecer o cuidado – o elemento ancestral que nos transformou em humanos.

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Pedra de tropeço

Durante muitos anos assisti espíritas explicando a “necessidade” da exploração, da iniquidade e da injustiça social como “campo de expiação” para a humanidade. Em outras palavras, tratavam o mal, a ignorância, o erro, a iniquidade e a dor como ações benfazejas do Criador para que, através delas, pudesse o ser humano evoluir e depurar suas falhas e erros. Assim, a “pedra de tropeço” da desigualdade seria “adequada” para as experiências humanas, oferecendo um desnível que, para a trajetória evolutiva, seria essencialmente pedagógico.

Por esta razão (entre tantas outras) é fundamental a crítica incessante contra o conservadorismo inerente às religiões. É preciso colocar o dedo na ferida das posturas alienantes que negam a importância crucial da luta de classes. É inadmissível que uma corrente de pensamento inerentemente progressista como o espiritismo seja vista como um dos principais focos de conservadorismo do cenário religioso brasileiro. A ação humana é sempre propositiva, jamais passiva e alienada. Teremos o futuro que for por nós construído, e não aquele oferecido por Deus ou pelo “andar da humanidade”. Sem esse contraponto, as religiões ocuparão a linha de frente das posições mais reacionárias, impedindo o desenvolvimento social e travando a luta por igualdade. Exatamente o que vemos entre os adeptos do neopentecostalismo.

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Kardec e o conservadorismo

Um pouco antes de desencarnar meu pai expressou uma evidente preocupação em relação ao futuro do espiritismo, projeto no qual militou durante toda sua vida. Depois de sua morte voltei a me ocupar das ideias espíritas, em especial os estudos sobre imortalidade da alma e sobre a reencarnação. Acabei encontrando no Facebook grupos de debates espíritas, do Brasil e do exterior. Percebi, então, que os fóruns espíritas estão lotados de reacionários.

Eu percebo isso há 40 anos, e basta olhar para o meu círculo de amigos da juventude espírita para constatar essa obviedade: quase todos são adultos de direita, a imensa maioria conservadores e moralistas e uma parcela menor – porém ativa – de reacionários e protofascistas. Muitos garotos maravilhosos da juventude espírita hoje estão nesse último grupo e desfilaram com a camisa da seleção fazendo coro aos gritos misóginos contra Dilma, aplaudindo os paladinos Moro e Dalanhol, e agora apoiando Bolsonaro e sua milícia.

Desta forma, o espiritismo, em que pese sua visão reencarnacionista e teoricamente progressista, em nada difere dos evangélicos, pentecostais, dos protestantes e dos católicos. São todos um grande grupo de conservadores cheios de culpa cristã, direitistas e muitos deles francamente alienados. O espiritismo jamais conseguiu produzir em seus seguidores uma mentalidade progressista, socialista, anticapitalista, mesmo quando as sociedades espirituais descritas em livros espíritas muito se assemelhassem a sociedades de caráter comunista – como Nosso Lar.

Entretanto, no meu modesto ver, o espiritismo se baseia em três premissas básicas e inalienáveis, sem as quais perde sua essência:

1- A existência de Deus
2- Pré-existência e sobrevivência da alma
3- Reencarnação.

É só isso, nada mais. O espiritismo não tem nada a dizer sobre modelos econômicos, sobre aborto, sobre feminismo, sobre ditaduras, sobre economia, sobre sexo, sobre casamento gay ou sobre quaisquer questões mundanas. O espiritismo pretende provar a existência de sentido universal (Deus), que a alma é imortal, que precede a vida e se mantém depois dela. Mais ainda, que a reencarnação é um método pedagógico de crescimento intelectual de um espírito entendido como imortal. Nada além disso.

Os postulados espíritas apenas muito indiretamente influenciam a “moral”, e eles seriam apenas acessórios de uma solução que pode ser buscada mais facilmente nesse mundo, sem precisar de recursos transcendentais.

Sim, a sobrevivência da alma nos deveria fazer abandonar as posturas punitivistas por entender que não existem espíritos cujos erros seriam imperdoáveis. No grande cenário, ninguém está livre de cometer crimes terríveis. Dou mais um exemplo: a ideia das múltiplas encarnações em gêneros diferentes poderia nos oferecer uma complacência maior com as opções de orientação e identidade sexuais. Todavia, os espíritas conservadores usam o argumento de que a orientação “desviante da norma” e a identidade “diversa da biologia” são provas e expiações que o espírito deve enfrentar para “vencer as provações”, suplantando suas “más inclinações”. Acreditem, escutei muito isso em casas espíritas, onde a “sublimação do pecado” era a tônica.

Desta forma, até a perspectiva progressista evidente dos gêneros vicariantes sucumbe diante do moralismo conservador e cafona inexorável do espiritismo cristão.

A ideia de Deus no espiritismo está expressa nos escritos de Kardec, e recebe do professor Hippolyte a questão primeira do “Livro dos Espíritos”, obra principal que funda o espiritismo. Todavia, seria lícito imaginar um espiritismo fiel à ideia de sobrevivência da alma e da reencarnação – entendidas como leis naturais, como a lei da gravidade e a reprodução – mas que fosse independente da ideia de um Criador?

Eu acho que sim, mas creio que isso produziria um conflito lógico complexo ao se perguntar “Ok, mas para quê? Por qual razão manter o espírito imortal? Por que voltar a nascer? Qual o sentido último da reencarnação se não houver um objetivo, qual seja, a depuração de nossas falhas?” Desta forma, para que a reencarnação e a imortalidade da alma fizessem sentido, seria fundamental dotá-las de propósito e direção, que a ideia de uma “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” é capaz de oferecer.

O resto que vemos do espiritismo contemporâneo emerge da impregnação religiosa que nos foi deixada como legado pelo sincretismo, o que tornou o espiritismo (lamentavelmente) uma seita cristã, repleta de códigos de condutas morais e cheio de culpas e remorsos – como de resto todo o cristianismo. Por isso a obra de Chico Xavier é cheia dessas referências moralistas – em especial quanto à expressão da sexualidade – e hoje profundamente defasada. Também por essa razão as casas espiritas são tão marcadamente conservadoras.

Todavia, esse torniquete comportamental não é a função do espiritismo, que deveria ser tão somente uma ciência e uma filosofia que considera a experiência material que vivemos como uma das muitas etapas de transformação do sujeito espiritual.

Por isso eu me incomodo há tantos anos com o conservadorismo e o moralismo dos espíritas, em especial porque os palestrantes e figuras exponenciais adoram ditar regra sobre a moral alheia, em especial a sexualidade. Infelizmente o espiritismo teve em seu criador (sem essa de “codificador”) um católico austero e severo do século XIX, que impregnou de cristianismo seu trabalho. Essa opção por Jesus, ao mesmo tempo que disseminou sua obra na carona das palavras do Cristo, hoje cobra um alto pedágio, pois o espiritismo estaria muito melhor enquanto ciência e filosofia sem a presença incomoda da cristolatria.

Já escrevi muito sobre o conservadorismo das personalidades espíritas – do Chico Xavier apoiador da ditadura ao Divaldo Franco que exaltou publicamente a “República de Curitiba” et caterva – mas acredito que esse é um traço dos espíritas (pelo viés da religião e da moral cristã) e não do espiritismo enquanto doutrina. Este, na minha modesta visão, não deve se ocupar das coisas da Terra, seus costumes e suas regras. O verdadeiro espírita se preocupa apenas com a tríade de sustentação da doutrina: Deus, imortalidade da alma e reencarnação. O resto é debate mundano; fundamental, por certo, mas que cabe aos encarnados resolverem, e não aos espíritos.

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Elogio à alienação

Eu não tenho problema com o uso de vacinas. Se houver ciência de qualidade com fontes seguras e isentas e com resultados positivos, por que não? Entretanto, acho terrível – e inaceitável – a lógica frequentemente usada para defendê-las. Agora mesmo vi uma:

“Seu filho tomou 24 vacinas logo depois de nascer e só agora você resolveu perguntar do que esta última é feita? Confie na ciência!! Vacinas salvam vidas!!”

Quer dizer que agora – depois de anos ensinando as pessoas a pensarem por si mesmas e a tomarem decisões informadas sobre sua saúde e a dos seus filhos – estamos estimulando que não se façam mais perguntas e que nenhum questionamento incômodo seja feito? Querem nos convencer que é preciso acreditar cegamente nas drogas que nos indicam? Mais ainda, confundem prescrição de drogas com “ciência”, quando muitas vezes a ciência se expressa exatamente pelo combate ao mau uso das drogas!! Se Isso não é um retrocesso, não sei como chamar.

Pensem apenas o que se conquistou até agora na humanização do nascimento. Achariam justo dizer às mulheres para interromperem os questionamentos e passarem a ter fé nas decisões dos médicos?

“Nessa cidade milhares de pessoas vem ao mundo por cesariana e usamos cirurgias e internações para os bebês nascerem. Por que só agora você resolveu perguntar por qual razão queremos lhe operar?? Confie na ciência!! Confie nos médicos!! Cesarianas salvam vidas!!”

Se os médicos tem responsabilidade pelo descalabro das cesarianas no Brasil, por que deveríamos ter fé cega na decisão de um grupo de cientistas, em detrimento de outros? Qual o problema em perguntar os efeitos que as drogas potencialmente têm sobre as pessoas e, em especial, as crianças?

É para esse mundo que penaliza a autonomia e as perguntas indiscretas que estamos rumando?

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Lugares

Certa vez uma amiga publicou uma foto “agressiva” em seu Facebook e recebeu imediatamente uma chuva de críticas. Eu achei que a foto era mesmo desnecessária, e que a reação das pessoas – embora grosseira e machista – era esperada diante do contexto preconceituoso em que vivemos. Seria como chegar na frente de uma comunidade pobre e começar a xingar e ofender os chefões da milícia e do tráfico. Um tiro seria uma consequência óbvia, mesmo sendo um crime.

Expliquei minha perspectiva para ela, que é basicamente essa: quando você se posiciona de forma contundente precisa estar preparado(a) para a reação. É pura ingenuidade imaginar que vai questionar poderes estabelecidos e as pessoas vão assistir impávidas. Não; a reação – inclusive violenta – é a REGRA e quem produz vanguarda precisa estar fortalecido ANTES de se aventurar. Os xingamentos que ela recebeu não poderiam produzir surpresa, mas deveriam ser absorvidos e reciclados.

Ela não aceitou a minha ponderação e ficou profundamente ofendida por não tê-la “defendido” e feito coro contra os que debochavam dela. Eu achei apenas que defendê-la seria infantilizá-la, ao estilo “Eu faço isso porque depois meu irmão mais velho vem aqui distribuir porrada em vocês”. Achei que ela estava preparada para o “backlash” que eu sabia ser inevitável. Não estava….

Depois disso ela passou a ser minha inimiga expressa, disparando rancor e ressentimento em todos os lugares que escrevia. Mais de uma vez recebi avisos de amigos em comum mandando prints e dizendo que eu deveria abrir um processo. Não, não me interesso por isso, até porque eu me acho razoavelmente preparado para dizer coisas sabendo que alguns (ou muitos) não vão gostar. Espero, sinceramente, que ela esteja em paz e que um dia possa me perdoar.

Foi este fato que me fez (re)pensar em Jiddu Krishnamurti e sua importante perspectiva sobre os mestres, as autoridades superiores e os gurus:

“Esta é uma das questões mais importantes. Invariavelmente, desejamos achar um instrutor, um guia, para moldar a conduta de nossa vida; e, no momento em que vamos pedir a outrem uma norma de conduta, uma maneira de viver, criamos uma autoridade e a ela ficamos escravizados. Atribuímos a tal pessoa uma alta sabedoria, extraordinária ciência. E com essa atitude gera-se, invariavelmente, o medo. E ela não determina também o disciplinamento de nós mesmos, de acordo com a autoridade de uma ideia ou pessoa?

Ora, não vos parece de todo fútil essa busca? Estar-se cativo na gaiola de uma disciplina, o ser impelido de uma gaiola (…) para outra, isso, evidentemente, não tem significação alguma. Assim sendo, devemos investigar por que buscamos. A busca pode ser um “processo” totalmente errôneo. Pode ser justamente um desperdício de energia.

Nenhum guru nem sistema pode ajudá-los a se compreenderem a si mesmos. Sem a compreensão de si mesmos, não tem razão de ser o descobrir aquilo que constitui a ação correta na vida que é a verdade.” (Jiddu Krishnamurti)

Buscar um “mestre” é procurar escravidão voluntária. Aceitar a posição de Guru é uma postura perversa que viola a autonomia alheia. “A mão que afaga é a mesma que apedreja”, como dizia Augusto dos Anjos, e assim ocorre porque o pupilo cobra do guru a absoluta fidelidade. No momento em que essa fidelidade é quebrada – quando se afasta de um ideal imaginário – ocorre a queda. A partir daí surge o ódio, a raiva, os ataques e o cancelamento. Em verdade, o pupilo exige o pagamento que considera devido pelo amor devotado. E o guru, envolto em um manto ilusório de saber, aceita essa relação movido pela vaidade e pelo poder sobre seus seguidores.

A regra, em minha opinião, é a permanente “desinstituição“. É a prática diária de fugir da posição de mestre, de guru, de professor, de proprietário de um “saber superior” ou de uma pretensa infalibilidade. É acostumar-se a falar o que pensa, em sintonia com sua consciência, a despeito do que as pessoas vão pensar, inobstante sua concordância, cultivando os inimigos e desafetos que naturalmente surgem quando se toca nos poderes sacramentados de uma sociedade.

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Cultura da dor

Nossa cultura sempre tenta associar parto a dor, sofrimento e angústia. Essa é uma forma fácil de apavorar as mulheres diante de sua própria fisiologia. Quanto mais apavorada, mais fácil lhe vender a alienação do cuidado médico. Mulheres com medo são presas fáceis de uma cultura de afastamento, onde são controladas e destituídas de autonomia.

Não compare parto com sofrimento; compare com êxtase.

Uma conhecida minha foi ao Cabo Kennedy assistir o lançamento de um foguete da NASA. Quando o descreveu para mim disse assim: “Foi espetacular, maravilhoso e lindo. Parecia um…. parto”.

Achei justo. Aliás, escrever pode ser difícil e ao mesmo tempo prazeroso. Como um parto.

Uma vez fui dar aula na turma da Odontologia e um aluno desculpou-se por ter chegado atrasado informando que ficou preso no consultório por causa da extração de um siso que mais pareceu “um parto”. Disse a ele que não era justo comparar um ato tão prazeroso como parir uma criança com o ato brutal de arrancar um dente. Além disso, parto é algo que uma mulher faz, e um dente é algo que arrancam dela.

Autonomia é o conceito chave para dar sentido às dores de um nascimento.

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Pugilato no C.O.

– Eu vou quebrar a sua cara, safado!!

– Então venha, seu mau caráter!!

Há muitos anos eu era residente no hospital escola onde estudei e me formei. O plantão havia sido intenso, com muitos partos, atendimentos e cirurgias, mas já havia passado uma hora do último parto, o que oferecia ao nosso setor uma benfazeja calmaria. Eu fazia o trabalho mais pesado, enquanto os R2 faziam as atividades que precisavam mais responsabilidade e experiência. Depois de alguns poucos minutos de descanso no “estar médico” esta tranquilidade foi quebrada com gritos – na verdade uma gritaria recheada de palavrões e ameaças – vindo da entrada do centro obstétrico. Corri para o local e quando lá cheguei vi meu colega de plantão pronto para bater num cidadão que estava ao lado de sua esposa, a qual iniciava seu trabalho de parto. Ambos estavam com os pulsos ao alto, prontos para socar um ao outro. Algo havia acontecido momentos antes que havia escalado para uma altercação física.

Eu imediatamente me coloquei entre os dois, enquanto faíscas de ódio passavam por cima dos meus braços e cabeça. A agitação de ambos era limítrofe: os rostos pálidos cheios de adrenalina indicavam que estavam prontos a se engalfinhar. Depois de alguns momentos, e com muita calma e paciência, consegui convencer meu colega a sair e deixar a questão para que eu cuidasse.

Quando a poeira sentou escutei o que o casal tinha a contar. Disseram que o médico estava “negando” a internação. Disseram também que moravam longe, que não tinham como voltar e só lhes restava chamar as rádios populares, fazer uma queixa, depois chamar a polícia e todas aquelas ameaças que os trabalhadores da linha de frente da assistência à saúde já escutaram alguma vez na vida.

Pedi para ver a ficha do atendimento que meu colega havia acabado de registrar. Os batimentos estavam ótimos, mas o toque revelava duas contrações cada 10 minutos, fracas, e a dilatação era de meros dois centímetros. Ficou fácil entender porque meu colega havia “negado” a internação.

– Ele disse que o hospital está lotado!!! Isso é uma mentira!! Olhe em volta!!

Ficava fácil perceber que o centro obstétrico estava vazio, mas o meu colega havia transmitido apenas a recomendação do setor de neonatologia (do andar de baixo) para não internar ninguém pois eles estavam sem leitos disponíveis. Foi o que ele tentou fazer, talvez sem a necessária delicadeza.

Expliquei ao casal o que havia acontecido, pelo menos do nosso ponto de vista. Relatei a eles sobre a lotação da neonatologia e eles pareceram entender, mesmo sem se convencer. Pedi, então, para que fizessem um acordo comigo. Que saíssem do hospital e ficassem dando voltas na quadra. Ou que fossem ao parque – que fica uns 50 metros distante – e que tomassem um sorvete. Pedi que se tranquilizassem e esperassem sem medo a chegada das contrações do trabalho de parto.

– Aguardem a chegada das contrações fortes. O sol está se pondo, alguns recém-nascidos terão alta. Vão sobrar lugares depois disso. Quando voltarem aqui com muitas contrações eu me responsabilizo por atendê-los. Fiquem tranquilos, eu dou minha palavra. Eu garanto a internação.

Com essas garantias eles se acalmaram e saíram da sala. Voltei para a sala e encontrei meu colega ainda alterado. Eu sabia que, se tivesse internado a paciente (sem nenhuma justificativa), os socos e pontapés poderiam ser transferidos para mim, por isso fui rapidamente dizendo que confirmei sua decisão. Porém, isso não foi suficiente para acalmá-lo. Ainda descontrolado, explodiu em palavras de indignação e raiva.

– Quem eles pensam que são para me dar ordens? Como ousam dizer como devo fazer meu trabalho? São uns ignorantes sem preparo algum!!!

Pedi em vão que se acalmasse. Ele continuou esbravejando, com os olhos injetados de inconformidade.

– Pois eu te digo o que vai acontecer. Eles voltarão aqui por volta das 4 da manhã, durante o meu turno de trabalho. Você sabe o que eu vou fazer? Vou colocá-la na última sala de pré-parto, no fundo do corredor, sem acompanhante algum. Vou escutar daqui os seus gritos e não vou ajudar. Deixarei que ganhe seu filho sozinha para ver seu períneo se arrebentar!!! Só então ela vai entender o nosso trabalho!!

É evidente que meu colega, um sujeito brincalhão e boa praça, jamais faria isso. Não se pode analisar este tipo de arroubo de forma literal. Retirar essa explosão de raiva do contexto seria um crime imperdoável. Ele nunca cometeria um ato tão odioso quanto esse e a tudo isso entendi como uma explosão de indignação, dita para dois ou três de seus colegas imediatamente após uma cena de quase pugilato.

Entretanto, sua frase nunca saiu de minha cabeça. Ela continha, de forma sintética, a quintessência do pensamento médico obstétrico e todos os ensinamentos da antropologia do nascimento que eu ainda viria a conhecer.

“Vou escutar daqui os seus gritos e não vou ajudar. Deixarei que ganhe seu filho sozinho para ver seu períneo se arrebentar. Só então vai entender nosso trabalho.”

Com esta frase ele queria mostrar que a única forma de uma mulher parir com segurança e dignidade é submetendo-se à ordenação médica e deixando-se cortar, abrindo-se e tendo seu filho sacado do seu ventre para entrar nesse mundo – “por baixo ou por cima”. A alienação era a ÚNICA via que poderia lhe garantir segurança; inobstante a via de nascimento, ela seria controlada por forças externas a ela, já que, em essência, era vista como incompetente para dar conta dessa tarefa.

A episiotomia entrava, em seu breve discurso, como um processo civilizatório, uma marca da cultura em seu corpo a lhe lembrar de sua posição social, como uma cicatriz de guerra, uma escarificação, uma tatuagem a lhe dizer eternamente que, para dar conta de suas tarefas femininas, precisou da ajuda de alguém representando o mundo masculino. Mesmo sendo um ato violento, a episiotomia se justificava como uma forma de pedagogia. “É para o seu bem, mãezinha”.

“Eu sou o caminho à verdade e à Vida, e só parirás se for por mim”, já me avisava Max nos primórdios da minha conversão.

Nenhuma “humanização do nascimento” vai prosperar e vicejar sem que esses elementos da cultura sejam lentamente eliminados dos nossos ouvidos como a narrativa condutora e hegemônica. Nenhum avanço será feito se continuarmos a acreditar na defectividade feminina, em sua incompetência essencial e no direito inquestionável da tecnologia de lhes expropriar deste momento especial.

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