Pensa numa contradição…. Um cara escreve um texto denunciando a “geração cristal”, frágil e fraca, que não suporta contradições. Você discorda, Ele te bloqueia….
Mesmo sites espíritas que se dizem progressistas acabam escorregando para o conservadorismo, a essencialização dos gêneros a muitas vezes descambam para uma misoginia escancarada.
Acabei de ler um texto sobre a velha tese da “geração de cristal” que diz que os jovens de hoje não suportam críticas ou frustrações. Eu mesmo creio que existe verdade nesta perspectiva, e temos legiões de jovens “flocos de neve” cujos sentimentos ficam abalados por qualquer contradição. Entretanto o texto apelava para um saudosismo tosco quando afirma textualmente:
“A geração que nos ensinou a viver sem medo está morrendo ….as pessoas que ensinavam aos homens o valor de uma mulher …. e às mulheres o respeito pelos homens.”
Quer dizer então que “antes sim os homens sabiam valorizar uma mulher”?
Sério? Há 100 anos quando elas não votavam? Há 43 anos quando não podiam se divorciar? Quando se matava em nome da honra? Quando não tinham liberdade sexual? Quando eram apêndices dos homens? Quando não podiam trabalhar? As mulheres não respeitavam os homens; tinham medo deles. E os homens – como regra – viam nas mulheres valores maternais, e quase nada mais.
Ora, quanta verve reacionária. Apesar do nosso atraso civilizatório não será no passado que vamos encontrar solução para os problemas de gênero. Achar que o “cavalheirismo” é a resposta é um brutal desrespeito com as lutas das mulheres. Acreditar que no passado havia respeito é ignorância. Achar possível um passo atrás é absurdo.
É triste ver posturas reacionárias dentro de um movimento que se propõe progressista, aberto e livre pensador.
O que sobra nos dias de hoje dos ensinamentos do obstetra francês Fernand Lamaze? O controle consciente do processo de nascimento por parte da gestante ainda possui espaço na atenção ao parto de hoje? E seu pendor autoritário, ainda encontra defensores entre os pensadores do nascimento humano?
Eu creio que alguns modelos aplicados ao nascimento são – na perspectiva atual – completamente anacrônicos no que diz respeito às suas propostas.
Este é o caso dos modelos baseados na visão de Fernand Lamaze e seus sucessores, como Pierre Vellay, Achiles Economides, Robert Merger e outros, os quais estão conectados aos criadores da psicoprofilaxia do parto, originária da Rússia por Velvovsky que por sua vez se apoiava nos estudos de reflexos condicionados de Pavlov. O modelo de Lamaze se baseia na sugestão e no princípio do “awaken and alert” do “parto sem dor”, da respiração alotrópica e de tantos outros conceitos hoje completamente superados. Vale como documento histórico, mas é bom ressaltar que os “Grupos Lamaze” de educação perinatal de hoje em dia não tem mais conexão com as ideias do seu criador.
Aliás, a visão contemporânea do parto humanizado é exatamente OPOSTA à visão de Lamaze. A visão de atenção ao nascimento de hoje prescreve o apagamento neocortical, e não sua ativação.
De qualquer modo estas perspectivas de meados do século passado tem um grande valor histórico. Nos anos 60 o “parto sem dor” era a grande moda. Todos as cenas de parto do cinema, em especial americano, das décadas 60 e 70 mostravam a mulher “soprando” enquanto conversava com seu marido. A função deste era estimular a ela um contato visual, pedindo-lhe que se mantivesse alerta e desperta. Aos maridos era solicitado que servissem como “ajudantes de ordens” do obstetra.
Nesse modelo o médico seria o “capitão”, o marido seu imediato e a mulher a força da natureza contra a qual ambos agiriam. Isto é: um poder masculino reforçado (médico + marido) enfrentando a mulher e sua fisiologia caótica e indômita. Um choque entre razão e natureza, numa perspectiva patriarcal. Para isso ser efetivado, Lamaze inclusive admitia que “pacientes infantilizadas fossem tratadas de forma autoritária”.
Segundo a Wikipedia, “Lamaze foi criticado por ser excessivamente disciplinador e antifeminista A natureza disciplinar da abordagem de Lamaze para o parto é evidente na descrição de Sheila Kitzinger dos métodos que ele empregou enquanto trabalhava em uma clínica de Paris durante os anos 1950. De acordo com Sheila Kitzinger, Lamaze consistentemente classificou o desempenho das mulheres no parto como ‘excelente’ ao ‘fracasso total’ com base em sua ‘inquietação e gritos’. Aquelas que ‘falhavam’ eram, de acordo com Lamaze, ‘elas próprias responsáveis, porque nutriam dúvidas ou não haviam praticado o suficiente’ e, previsivelmente, mulheres ‘intelectuais’ que ‘faziam muitas perguntas’ eram consideradas por Lamaze como as mais propensas a falhar.“
Mas é bem interessante que a mudança da compreensão do parto tenha ocorrido em perfeita sintonia com a troca de percepção da própria mulher na sociedade, numa dança dialética onde um fator reforça o outro e é por ele intensificado.
Alguns ataques pelas redes sociais a personagens ligados ao movimento do parto humanizado se referem a um velho ranço da turma da humanização do nascimento com a presença de homens nas suas fileiras. Essa mescla contemporânea de humanização + feminismo abriu as portas para esse tipo de rejeição. Sofri isso de forma velada desde o primeiro post que publiquei na Internet há mais de 20 anos, e vejo isso até hoje (o que me garantiu o recorde mundial de blocks: mais de mil). Evidentemente que eu não posso dizer que tal circunstância é “culpa” do feminismo, assim como as cruzadas não foram culpa do cristianismo – muito menos do próprio Cristo. Entretanto, o uso inadequado do feminismo como projeto de silenciamento do masculino – em todos os níveis – é o parefeito de um projeto que, por sua origem, deveria promover a escuta de todas as vozes, sobrepujando em definitivo as barreiras de gênero.
A rejeição aos homens no debate sobre o nascimento sempre foi um fato muito evidente para mim, expressando-se através de uma constante desautorização e pelo desmerecimento de falas. Essa questão deveria ser abertamente debatida, se é que o movimento de humanização se deseja plural e aberto, e não um mero braço do movimento feminista mais radical.
Se é verdade que os homens estão alijados de falar DE parto, pois que anatomicamente estão impedidos a isso, (e aqui não vou tratar da questão trans), nada os impede de falar SOBRE o parto e por cima de suas experiências profissionais e/ou pessoais com o evento. Calar a voz de especialistas em parto como se sua masculinidade fosse um defeito é um ato criminoso.
Acho também que essa é uma questão menor, por certo, mas que vejo como importante de ser tratada nesse ambiente restrito. O mais importante no atual momento é o estrelismo, que mais uma vez nos acomete. A exaltação de egos, dos Messias da ciência, de salvadores e de “mensageiros da verdade científica” está produzindo uma autofagia absolutamente inútil e desnecessária. Ao invés de reconhecermos a nossa fragilidade diante de uma pandemia sobre a qual MUITO POUCO OU QUASE NADA sabemos ficamos destruindo reputações on line, atacando colegas e mandando “indiretas” como adolescentes.
Sei que essa minha opinião não é compartilhada por muitas pessoas, e boa parte chamará esse desabafo de “mimimi“, curiosamente a mesma expressão usada secularmente para as ilustrar queixas justas das mulheres a respeito dos abusos sobre elas cometidos. Não esqueçam que os ataques misóginos contra a presidenta Dilma foram tratados com o mesmo desdém, chamados de puro chororô de perdedor. Entretanto, também é importante olhar com os olhos dos milhares de homens que trabalham com o parto, de enfermeiros, obstetras, parteiros e pediatras que gostariam de participar desse debate, mas que são afastados dele pelos constantes ataques – por vezes sutis, muitas vezes indiretos – mas que na emergência de crises como a de agora se tornam explícitos, duros, incoercíveis e até cruéis.
TODAS as religiões abrahâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), surgidas da mesma fonte na Palestina, foram criadas para espelhar o PATRIARCADO nascente. Por isso mesmo o Deus era homem, guerreiro, duro, inexorável e cruel; não por acaso chamado de “O Senhor dos Exércitos”. Isto é: as religiões CRIARAM um Deus homem para refletir a mudança substancial na estrutura da sociedade, que passou a ser marcadamente patriarcal, falocêntrica, baseada nos valores do masculino, na invasão, na conquista e – acima de tudo – na proteção da propriedade e das identidades. Veja como as deusas da antiguidade foram todas suprimidas e deixadas de lado para que o Deus masculino e fálico fosse colocado no posto máximo entre as divindades. Leia “As Brumas de Avalon”, por exemplo, para ver o destino das deidades femininas.
O patriarcado, para se impor como a estrutura básica da sociedade, precisava se apoderar de todos os símbolos e mitos, e assim o fez.Desta forma, jamais seria possível criar um modelo patriarcal – para defesa dos territórios, surgidos com a agricultura e a pecuária – e fazer com que a divindade superior fosse uma mulher!! Precisava ser homem, pois só assim seria temido e exaltado pelos exércitos. Ele seria a imagem mais fiel do espírito dos guerreiros e – num mundo agora patriarcal – era necessário que esse Deus mimetizasse os valores dos líderes humanos que guiariam seus povos. O patriarcado se espalhou desta forma pelo planeta inteiro exatamente porque produzia uma sociedade forte e bem protegida. Hoje pode ser questionado, mas há 10 mil anos pensar diferente significava a aniquilação.
Ao dizer que, uma sociedade que elege uma Deusa como figura máxima JAMAIS poderia ser patriarcal, digo apenas que o sistema de domínio seria “matriarcal”. Teríamos uma cultura invertida, nem pior e nem melhor do que a que temos hoje, e talvez nesse mundo imaginário os homens é que deveriam ser protegidos de um “matriarcado opressor”.
Quem acredita que as mulheres são MORALMENTE superiores, ou estão espiritualmente acima dos homens é tão sexista como o pior dos machistas, e só não está matando e estuprando por falta de coragem ou força. Como já foi escrito de diversas formas e em inúmeras línguas, “feminismo é busca por equidade, e não por supremacia”.
Quem acredita nisso – que homens e mulheres são intelectualmente e moralmente iguais em essência – deveria entender as coisas simples expressadas acima. Colocar um gênero abaixo OU ACIMA de outro é tão asqueroso quanto colocar uma raça, uma religião ou uma orientação sexual acima ou abaixo das demais. Sexismos e racismo são filhos do mesmo pai: o preconceito.
Acabo de ler a nota do governo brasileiro – claramente inspirada pela
corporação médica – que tenta impedir o uso do termo “violência
obstétrica”, curiosamente na mesma semana em que o presidente, usando a
mesma lógica, diz que “racismo é algo raro de ocorrer no Brasil”. A
mesma tentativa tola de tirar o sofá da sala imaginando que assim o
problema deixaria de existir.
O problema não é o termo utilizado,
mas a “misoginia essencial” que permeia a atenção ao parto e
nascimento, resultado de 100 séculos de modelo patriarcal a conduzir
nossas vidas. Violência obstétrica existe sim – e dói.
Creio que
não resta nenhuma dúvida dos interesses por trás dessa manobra; elas
visam, em essência, a mudança de narrativa através da supressão de
expressões consagradas. Estas são atitudes muito coerentes com o modelo
revisionista que se pretende implantar no Brasil de hoje. Assim, não
tivemos golpe em 64, mas “governos militares”. Dilma sofreu um
“Impeachment” e não outro golpe patrocinado por grupos ressentidos, o
que abriu caminho para outras aberrações jurídicas como prender o ex
presidente Lula sem apresentar provas.
Desta forma sorrateira o
Brasil inaugura oficialmente o uso da “novilingua” acreditando que
assim fazendo exterminará como por encanto a violência física e moral a
que são submetidas milhões de mulheres no país, algo que o termo – agora
suprimido – sempre pretendeu denunciar.
Sabemos que tais
iniciativas grosseiras e ofensivas fazem parte da cobrança da dívida que
o bolsonarismo tem com a corporação médica. Esta corporação foi
parceira de primeira hora nas manifestações golpistas de 2013-16, que
culminaram com a queda de Dilma e a prisão de Lula, e posteriormente na
eleição de Bolsonaro. Aqui mesmo no sul o sindicato médico já se
apressou em mandar uma nota e um vídeo parabenizando o governo Bolsonaro
pela proibição. Nenhuma surpresa.
Nada disso deveria nos
espantar: a corporação médica mostra seu caráter reacionário de forma
explícita desde o surgimento de canais na internet como Dignidade
Médica, que disseminam todo o racismo, classismo, preconceitos de cor,
raça e orientação sexual há muitos anos. Antes das redes sociais este
fenômeno ficava restrito às salas acarpetadas de cafezinho dos
hospitais. Agora… os monstros estão todos à solta.
Cabe a nós,
ativistas da humanização, mostrar que o combate à violência obstétrica
não é obra de “hippies”, “radicais comunistas” ou outras promotoras de
“balburdia”, mas de um coletivo de pensadores e ativistas que se
debruçam há muitos anos sobre o tema da violência de gênero no Brasil e
no mundo. É digno de nota que inclusive elementos progressistas da
própria corporação médica reconhecem a justeza do termo – além de sua
consagração pelo uso – e entendem a necessidade de fazer algo a respeito
dentro da prática cotidiana da obstetrícia, num exercício saudável de
autocrítica e visão de futuro..
É importante que os ativistas, que sempre foram a locomotiva a puxar os movimentos articulados pela dignidade no parto e contra a violência obstétrica, se posicionem de forma vigorosa e contundente contra este tipo de iniciativa, denunciando o atraso em conquistas históricas por uma maternidade digna e segura que tal manifestação oficial significa.
-Ah, você é obstetra? Tive dois partos. O primeiro foi normal mas sofri demais e no segundo já marquei uma cesariana para não passar de novo por tudo aquilo. Resolvi ligar as trompas quando fiz a cesárea.
Quando eu pedia para me contar o que significava “tudo aquilo” que sofreu para parir vemos que a dor das contrações era apenas uma parcela minoritária do que descreviam como o sofrimento que atravessaram para dar a luz. Mesmo reconhecendo que uma sociedade hedonista não entende mais a dor – física ou psíquica – como aceitável, eu ainda me espanto com o fato de que as descrições dos “horrores” apontam para um modelo “misógino” de atenção, centrado na eficiência médica de resolver o “problema do tumor fetal abdominal” dentro de um tempo adequado para não atrapalhar a vida do médico e o funcionamento do centro obstétrico.
-Então, doutor, deixa eu lhe contar como foi…
“E aí fiquei sozinha com minhas dores, e não deixaram meu marido entrar que homem desmaia e teriam que costurar a cabeça dele se caísse no chão e a luz era forte e não havia chuveiro, a sala estava gelada e me mandaram para outra sala e entrou um grupo de jovens e o professor explicou minha situação para os alunos e não para mim, e eles fizeram exames, um após o outro, e saiu sangue e eu me apavorei e foi a moça da limpeza que me tranquilizou e chamei o médico e ele não veio e eu gritei e aí disseram para eu calar a boca que isso assustava as mulheres e disseram que na hora de fazer não foi assim que voltaria no próximo ano e não podia andar porque estava no soro e pedi para tirarem e disseram que era preciso e pedi a presença do médico e de novo ele não veio pois estava atendendo e levantei sozinha para ir no banheiro e fui xingada pela enfermeira e senti vontade de evacuar e não deixaram e fizeram um outro exame e começaram a gritar e correr e me colocaram na maca e fui para uma sala muito clara com uma mesa de parto no meio e diziam de novo para não fazer força que o médico não estava pronto mas eu não podia controlar e um médico apareceu e perguntou meu nome mas estava de máscaras e luvas e não vi quem era e me deitaram mas eu queria levantar e amarraram minhas pernas e passaram um líquido gelado na minha vagina e depois senti uma fincada e uma ardência forte e de novo eu gritei para ser novamente criticada pela enfermeira e ela pulou na minha barriga e fiquei sem respirar e eu estava tremendo de nervosa e suava mesmo na sala gelada e o médico gritava que o bebê estava preso que se eu não o ajudasse o bebê não ia sobreviver e de novo veio aqueles pensamentos de morte e pensei em nossa senhora com o menino Jesus e lembrei da minha mãe que é nervosa e a enfermeira subiu de novo com o cotovelo na minha barriga e eu senti o médico cortando minha vagina graças a Deus não senti muita dor – devia ser o pique – e senti o sangue escorrer pelas coxas e a cabeça do meu filho fazia um volume na vagina mas eu não tinha as forças e eu chorava e pedia ajuda a Deus e o tempo não passava e ele estava preso e a enfermeira passou um pano na minha testa e eu só gemia e daí veio a força e eles gritaram todos e contaram até 10 e força comprida não-para-não-para e segura o ar e disseram que eu estava fazendo a força errada e empurraram minha cabeça e o queixo tocou o peito e os olhos se fecharam e parei de respirar por horas e eu fiz aquela força mais forte, mais forte.
Ficou tudo escuro e o silêncio foi quebrado por um choro fino que foi diminuindo até desaparecer como se tivesse se afastado por uns 100 metros e a enfermeira disse tudo bem e o médico reclamou de alguma coisa que não entendi e outra enfermeira viu minha pressão e o médico falou do Botafogo e a enfermeira ao meu lado deu uma gargalhada ao ver que a injeção que aplicou no meu soro havia atravessado a borracha e molhado o lençol.
Quando perguntei do meu bebê me disseram já vem e na verdade não veio e eu conheci meu filho uma hora depois mas pensei que foi melhor que o meu marido que só viu muito tempo depois ainda acho que eles foram muito bons comigo e pediram um lanche e depois me deram uma coberta porque a sala estava gelada e deram banho no meu filho e tiraram aquelas sujeirinhas, vérnix que fala?”
E aí, depois de 20, 30 ou 40 anos ela volta a chorar e lembra que o momento mais lindo de sua feminilidade foi cercado de violências e humilhações.
Durante meus 30 anos de medicina algumas pacientes me traziam à consulta uma pergunta curiosa e reveladora após uma cirurgia ginecológica abdominal: “Doutor, me conte: como estou por dentro?“. A pergunta desvelava o desejo de conhecer algo que era dela, estava dentro de si, produzia ruídos, barulhos e alguns dissabores, mas que ela não conseguia ver com clareza. Minha resposta era algo como “está tudo bem“, seguida de um sorriso.
Bolsonaro filho é o deputado mais votado da história do Brasil. Gostaria de dizer que ele foi votado desta forma apesar de ter um histórico de ameaças contra a vida de sua namorada e de inúmeras demonstrações de machismo, racismo e lgbtfobia. Entretanto, isso não é verdade; ele foi eleito PORQUE é um fascista, racista e misógino. Ele foi escolhido PORQUE disse que as mulheres de direita são mais higiênicas. Ele foi eleito desta forma consagradora PORQUE exalta a violência e as soluções simplistas para a criminalidade. Ele foi eleito PORQUE debocha do assassinato de Marielle. Ele foi eleito PORQUE é filho do homem que representa o fascismo na sua forma mais crua e corrosiva, a reprise aterradora de uma história de horror e violência
Essa eleição nos deu a oportunidade de olhar para o ventre do Brasil. Vimos a cidadania em pedaços como carne dilacerada, a humanidade escorregando pelos nossos dedos feito nossas tripas. O respeito pelo semelhante se esvaindo como o sangre escuro de uma hemorragia. Vimos também as manchas do machismo, as úlceras do desrespeito às minorias, os nódulos necrosados do racismo, as gangrenas e os infartos da exclusão e do arbítrio. O que antes estava escondido hoje fica evidente aos olhos; o paciente jaz à nossa frente, o ventre aberto e as vísceras expostas e não conseguimos conter a lágrima que escorre pela dor de tanta aflição.
O pulso ainda pulsa, o coração frágil ainda bate, a face lívida, de onde brotam dois olhos esbugalhados, nos fuzila e o paciente – entre atônito e desesperado – pergunta: “Como estou por dentro“, e só posso dizer que a nossa esperança se manterá, mesmo que este corpo se esfacele, se consuma e se despedace pelos tumores que cresceram longe dos nossos olhos. Entretanto, enquanto houver força, seguiremos com esperança; enquanto houver certeza do raiar de um novo dia lutaremos em pé.
Uma comunidade de direita apareceu na minha TL com a mensagem conhecida de que não existe racismo, mas indivíduos de diversas etnias que escolhem caminhos certos ou errados.
A retórica é a conhecida exaltação da meritocracia. Os negros não se esforçam tanto quanto os brancos, por isso estão em condições menos favoráveis na economia. Se os negros parassem de reclamar e se esforçassem mais esta distância acabaria. Chamam os movimentos sociais contra o racismo de movimentos “vitimistas”.
O vitimismo é o uso da condição de vítima para obter vantagens. Todo mundo sabe o que é isso, e todo mundo que teve irmãos na infância já usou das táticas vitimistas. Dito isso, é óbvio que existe vitimismo no movimento negro, no movimento LGBT e no feminismo. É impossível existir vitimas que não se seduzam pelo vitimismo e as vantagens que ele oferece. Ele funciona como um bypass, um atalho para conseguir alguma vantagem usando sua condição política e economicamente inferior. Não há como não se deixar levar, mesmo que temporariamente, por esta sedução.
Entretanto, existe racismo, homofobia e misoginia na nossa cultura. Essa evidência pode ser facilmente extraída das estatísticas e dos dados governamentais, assim como dos relatos dos negros, dos homossexuais e das mulheres que sofrem atos racistas lgbtfóbicos ou machistas. Minha experiência com o parto me permitiu testemunhar milhares de atos, atitudes e comportamentos claramente sexistas contra as gestantes nas instituições que trabalhei, acima de qualquer dúvida. Com os negros e homossexuais certamente é o mesmo.
Não se trata, portanto, de contrapor vitimismo com preconceito. O vitimismo é absolutamente minoritário nesses movimentos, que se estabelecem sobre a crueza dos fatos do cotidiano, onde negros, mulheres e homossexuais são desconsiderados em função de sua cor, gênero e orientação sexual. Não há como desmerecer a luta contra o machismo, o racismo ou a homofobia pela existência, francamente minoritária, de discursos vitimistas no seio desses importantes movimentos sociais.
A tentativa de desqualificar a luta contra o racismo, a homofobia e o machismo apenas demonstra que os avanços alcançados por estes grupos incomodam os poderosos, e por isso mesmo precisam continuar.
A questão é que o “vitimismo” funciona como uma capa encobridora, fazendo com que todas as reivindicações dos grupos oprimidos desapareçam por serem deslegitimadas. Se existe ou não vitimismo em alguns setores destes movimentos é o menos importante. O que tem valor é reconhecer a legitimidade das lutas e respeitar seus pressupostos.
Nivelar, em que topografia for, é fazer justiça. Mas sequer é esse o problema. A “discriminação positiva” é uma etapa de readaptação, um processo de “aceleração da equidade”. É usada para tornar mais célere a justiça social, e por isso ela um dia acabará, como aconteceu em muitos lugares onde foi implementada (Flórida, por exemplo). No Brasil podemos constatar a olho nu como ela está produzindo frutos: uma quantidade crescente de negros tendo acesso às universidades e, mais ainda, aos cobiçados cursos de Medicina, Direito, Computação etc…
Quando os efeitos sociais da escravidão tiverem, por fim, evanescido o suficiente para não serem notados nas filigranas do cotidiano eu serei o primeiro a reivindicar pela extinção do sistema de cotas.
Por ora a inconformidade de uma parcela da classe média – ressentida e meritocrática – é a melhor medida para avaliar o sucesso do programa.
Sobre as grosserias em ambientes de trabalho, em especial nos hospitais, e que colocam em risco o resultado das intervenções e a própria saúde dos pacientes…
Eu sou do tempo em que a violência e a grosseria eram o padrão dentro de blocos cirúrgicos. Tais atitudes era “elogiáveis” e bem vistas pelos estudantes, que acreditavam na sua necessidade para manter claras e transparentes as hierarquias solidamente construídas na assistência aos doentes.
Havia dois elementos preponderantes nas condutas agressivas dos médicos: o viés de gênero e o de classe social, ou “casta”. Os médicos – em especial os cirurgiões – faziam de sua prática um festival de grosserias com subalternos (estudantes, enfermeiras, auxiliares de enfermagem e limpeza) e um exercício explícito de sexismo e misoginia. Eram comuns os “chiliques” do doutor quando havia um problema qualquer durante os momentos tensos de uma cirurgia. Tesouras, pinças e afastadores voavam pela sala, assim como gritos eram disparados contra indefesas instrumentadoras e circulantes. A humilhação era conduta banalizada. As funcionárias, via de regra, se resignavam, pois qualquer reclamação era vista como insubordinação. Eu fui testemunha de suspensões e punições de técnicas de enfermagem que reclamaram quando a grosseria atingiu a sua própria honra, mas a cena comum e previsível era o choro solitário no vestiário e o silêncio mortificante.
A misoginia dos ambientes hospitalares sempre foi uma marca característica, semelhante demais com outros ambientes de confinamento social (como exército, igrejas e presídios) para não a entendermos como um elemento fundamental na criação de hierarquias rígidas e sistemas de poder baseados no gênero.
Alguns médicos mais antigos (lembrem que falo de uma realidade de três décadas atrás) justificavam sua crueldade e comportamento violento justificando que era essencial que “cada um soubesse seu lugar” ou ainda que “se elas tiverem medo de mim vão cuidar para não cometer erros“. Essa “tática de terror” sabidamente funciona em curtíssimo prazo, mas é uma tragédia quando se torna padrão de atitudes, pois fatalmente gera medo, seguido de raiva, ressentimento, rancor e mágoa. E isso pode ser trágico para o trabalho a ser realizado.
Cultivar um ambiente limpo de sentimentos negativos é tarefa muito difícil, mas as pesquisas comprovam que ele se associa a resultados melhores. Hoje em dia não vejo mais tais violências em hospital, mesmo sabendo que elas ainda existem, e fico esperançoso ao perceber que as mulheres que trabalham junto aos cirurgiões não precisam mais se esconder para chorar no escuro e podem usar de outros instrumentos para exigir o merecido respeito e consideração.
Com o tempo vamos limpando os ranços machistas e preconceituosos do trabalho sagrado de cuidar de quem sofre.
Recebi de uma querida amiga paulistana (cujo nome não direi para não causar constrangimentos a ela) um link para ver partes de um livro recém-lançado sobre as mulheres e suas “doidices”. Eu imaginei, no primeiro momento, que se tratava de uma visão masculina sobre o misterioso mundo feminino, e as maravilhosas “loucuras” que as mulheres fazem na sua passagem pela Terra. Entretanto me deparei com uma torrente de preconceito, desinformação e grosseria que me chocou, a ponto de resolver escrever a respeito. O capítulo 10 deste livro (cujo nome não direi para não dar publicidade a um material tão ruim) chama-se “Parto em Casa”, que foi escrito em função da experiência que o autor (Sr W.) teve ao vislumbrar a Marcha de Mulheres que ocorreu em 32 cidades brasileiras em defesa do direito de escolha, do Parto em Casa e do nosso colega Jorge, injustamente acusado pelo órgão de classe do Rio de Janeiro. Não li o livro todo, porque este capítulo já é suficiente para demonstrar a grosseria do julgamento que o autor faz das mulheres e do feminino. Tomo a liberdade de transcrever apenas um parágrafo para que tenham uma ideia do que se trata:
“(…) Os outros benefícios [do parto domiciliar] não merecem nem ser citados por tamanha incoerência e esdrúxulas afirmações. Se perceber, verá que não batem bem da bola, são normalmente aquelas que não se apegam ao batente, como sabemos. Quando a mulher trabalha, ajuda no sustento da família e tem responsabilidades para continuar a vida como ela é, não tem tempo para essas “frescuras” [a Marcha e o ativismo]. Tem o filho na maternidade mesmo e após alguns dias volta à luta. Isso, sim, é mulher de verdade (…).”
Pelo trecho acima pode-se avaliar a qualidade do resto do livro. Por esta razão eu resolvi escrever a primeira resenha desta publicação, e que constará no Google Livros. Aqui está ela:
“Sobre o Livro XXXX do senhor W. tenho a dizer que o capítulo sobre o “Parto em Casa” é lamentável, triste, preconceituoso e chauvinista. Poderia escrever sobre o resto do livro, mas se ele contém algo semelhante a este capítulo ele certamente não vale a leitura. Eu acreditei (pelo título) que o livro era bem humorado e que tratasse das coisas lindas e até incompreensíveis (ao olhar masculino) da epopeia feminina na terra, mas é provavelmente (pela amostra que tive) um aglomerado de grosserias contra as mulheres, e uma torrente de preconceitos sem cabimento.
No texto sobre o parto domiciliar ele chega a dizer que isso é “coisa de mulher desocupada” (vide acima), usando as MESMAS PALAVRAS que os homens proferiam para debochar e desmerecer os interesses intelectuais femininos, como estudar, adiar um casamento, fazer uma faculdade ou decidir-se a não ter filhos nos anos 60. Um texto triste, lamentável, infeliz e inaceitável para uma sociedade que se propõe plural e justa. Desafortunadamente este senhor não passa de um fóssil vivo, um exemplar do “homo ignobilis” do início do século, que resiste em tratar as mulheres com um misto de compaixão arrogante (pobres delas, loucas, são apenas mulheres…) e desconhecimento total do ser feminino. Se eu fosse mulher e lesse isso, realmente ficaria LOUCA, e faria parte dos 90% que ele acusa. Por outro lado eu informaria a ele que só quando 100% das mulheres se indignarem com tanta ignorância e preconceito é que esse mundo oferecerá mais dignidade para elas no momento de fazer escolhas informadas sobre como parir.
E, por favor… eu li o capítulo (as partes que o Google permitia) e ficou CLARO que não se tratava de uma “brincadeira”, ou de uma espécie de “humor machista”. Não vou aceitar ser chamado de mal-humorado: ele expressou uma opinião séria, desconsiderando e debochando de gestantes que lutam por liberdade de escolhas. Não, não se trata de uma comédia ou de uma caricatura.
É preciso que cidadãos como o Sr W. permaneçam no mundo apenas pendurados em paredes de museu, para mostrar como eram os homens na pré-história da cidadania, quando as mulheres eram obrigadas a ter seus filhos da forma como os homens determinavam, e não da maneira como a ciência comprova como seguras, e as mulheres desejam.
Entretanto, é minha opinião de que o ponto de vista do Sr. W está cada dia se tornando mais cafona, démodé, ultrapassado e velho. Essa já foi a opinião consensual na cultura ocidental, mas hoje é apenas a hegemônica. Já existe, principalmente por força da Internet e das redes sociais, uma consciência muito maior dos direitos das mulheres, assim como informações idôneas sobre a segurança no parto domiciliar (e não o amontoado de opiniões e visões enviesadas deste senhor). Com o passar do tempo esta postura retrógrada e ofensiva com as mulheres será vista apenas uma visão antiquada e sem embasamento, e a história verá este texto como um resquício do preconceito que ainda recaía sobre as mulheres na cultura ocidental nos umbrais do século XXI.”