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Macartismo obstétrico

Estamos diante de um dilema crucial para o futuro da assistência ao parto neste país. A sinalização recente aponta para a criminalização do parto normal e a percepção da humanização do nascimento como uma “ideologia exótica”, o que se configura um desastre não apenas para os profissionais que procuram respeitar os direitos reprodutivos e sexuais de suas pacientes, mas também uma tragédia para as próprias mulheres, impedidas definitivamente de exercer o protagonismo sobre seus corpos. O objetivo inconfesso por trás das perseguições aos profissionais do parto humanizado é impedir que as mulheres tenham voz e que possam tomar decisões sobre seus partos; a forma de levar essa ideia adiante é penalizar – até encarcerar – os profissionais do parto que aceitam respeitar os desejos e escolhas de suas clientes.

O resultado imediato será um incremento das cesarianas, que já ultrapassaram 60% do total de nascimentos no Brasil, pois os médicos sempre se protegem usando como escudo a ideologia hegemônica. A longo prazo veremos a absoluta artificialização do nascimento, que transformará as mulheres em “contêineres fetais“, alienadas em definitivo de qualquer decisão sobre seus filhos e como eles chegam ao mundo. Percebam que nenhum médico é processado por (ab)usar de cesarianas, inobstante os resultados – até mesmo desfechos fatais; a tecnologia, mesmo quando sem indicação e sem qualquer justificativa, os protege. Nesse contexto de “macartismo obstétrico”, a paciência, o respeito aos tempos e às subjetividades e a vinculação com as evidências científicas são defeitos, não virtudes. Agir conforme as determinações da OMS e mesmo do Ministério da Saúde do Brasil não é algo a ser elogiado; é uma atitude que coloca médicos em risco.

Para evitar perder sua profissão, ser processado, perder seu patrimônio e até ser preso, o profissional deverá ser incoercível e violento e deverá agir com a mão pesada, sem levar em conta qualquer questão subjetiva. Deverá objetualizar ao extremo suas pacientes, enxergá-la como uma ameaça, e se esconder atrás de práticas ultrapassadas, violentas e perigosas, mas que garantem a satisfação das corporações e das instituições que lucram com a alienação das mulheres e o controle absoluto sobre seus corpos. A lógica é a mesma da polícia: quem reclamar da violência aplicada contra o cidadão é “a favor de bandidos”; quem questionar a violência obstétrica e os abusos das cesarianas está “contra a tecnologia” e estimulando mortes evitáveis. Por trás desses discurso, a “carta-branca” para que médicos e policiais atuem da forma que mais lhes beneficia; a moeda circulante é o medo.

Não se trata apenas de restaurar a justiça, de analisar os fatos, de aceitar os limites da medicina, mas também de compreender que esta injustiça contra os médicos e parteiras que abraçam as propostas da humanização levará a um aumento considerável da morbidade e mortalidade maternas, além de consequências terríveis para os bebês nascidos sob o controle da tecnocracia sem limites. O ataque ao parto normal cobrará um preço alto em vidas humanas.

Este debate não se encerra no julgamento dos profissionais, na sua prisão ou liberdade e na justiça que se fará. O resultado da reação aos avanços da humanização apontará para onde desejamos que se situe o futuro da assistência ao parto. Se apostamos na alienação das mulheres e a penalização da medicina baseada em evidências, o resultado será o pior possível. Julgar médicos que defendem o parto normal e as escolhas informadas de seus pacientes como criminosos que agem dolosamente é uma aberração jurídica inédita, cujas consequências serão sentidas por toda a sociedade.

A escolha precisa ser feita. Que parto desejamos para nossos netos?

Crucial choice

We are facing a crucial dilemma for the future of childbirth care in this country. Recent signs point to the criminalization of natural childbirth and the perception of humanization of childbirth as an “exotic ideology”, and that is a disaster not only for professionals who seek to respect the reproductive and sexual rights of their patients, but also a tragedy for women themselves, who are permanently prevented from exercising agency over their bodies. The unspoken objective behind the persecution of natural childbirth professionals is to prevent women from having a voice and from being able to make decisions about their births; the way to carry this idea forward is to penalize – even imprison – birth professionals who agree to respect their clients’ wishes and choices.

The immediate result will be an increase in Cesarean rates, which have already exceeded 60% of all births in Brazil, as doctors always protect themselves by using hegemonic ideology as a shield. In the long term, we will see the absolute artificialization of birth, which will transform women into “fetal containers”, permanently alienated from any decision about their children and how they come into the world. Note that no doctor is prosecuted for (ab)using c-sections, regardless of the results – even fatal outcomes; technology, even when not indicated and without any justification, protects them. In this context of “obstetric McCarthyism”, patience, respect for time and subjectivity and connection with scientific evidence are defects, not virtues. Acting in accordance with the determinations of the WHO and even the Brazilian Ministry of Health is not something to be praised; it is an attitude that puts doctors at risk.

To avoid losing their profession, being sued, losing their assets and even being arrested, professionals must be uncontrollable and violent and must act with a heavy hand, without taking into account any subjective issues. They must objectify their patients to the extreme, seeing them as a threat, and hide behind outdated, violent and dangerous practices, but which guarantee the satisfaction of corporations and institutions that profit from the alienation of women and absolute control over their bodies. The logic is the same as that of the police: anyone who complains about violence against citizens is “in favor of criminals”; anyone who questions obstetric violence and the abuse of cesarean sections is “against technology” and encouraging preventable deaths. Behind this discourse is the “carte blanche” for doctors and police officers to act in the way that best benefits them; the official language in childbirth is fear.

It is not just about restoring justice, analyzing the facts, and accepting the limits of medicine, but also about understanding that this injustice against doctors and midwives who embrace the proposals of humanization will lead to a considerable increase in maternal morbidity and mortality, as well as terrible consequences for babies born under the control of an unlimited technocracy. The attack on natural childbirth will exact a high price in human lives.

This debate does not end with the trial of professionals, their imprisonment or release, and the justice that will be served. The outcome of the reaction to advances in humanization will indicate where we want the future of childbirth care to be. If we bet on the alienation of women and the penalization of evidence-based medicine, the result will be the worst possible. Judging doctors who defend natural childbirth and the informed choices of their patients as criminals who act intentionally is an unprecedented legal aberration, the consequences of which will be felt by the entire society.

The choice needs to be made. What kind of childbirth do we want for our grandchildren?

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Leah

O indicador no canto inferior direito do computador apontava 31 de dezembro, anunciando os estertores do ano que se preparava para findar. Solitária em sua casa, Leah terminara as tarefas de limpeza e se preparava para uma noite solitária na frente da TV. Resolveu como última ação, olhar sua caixa de e-mails. No meio de uma lista infindável de “promoções imperdíveis”, encontrou a mensagem de Karen, uma amiga de muitos anos. Abriu o e-mail e leu a curta mensagem.

Terminou de ler o e-mail e manteve os olhos parados na fissura entre o marco da porta e a parede descascada de seu velho apartamento. Sentada à frente da tela do computador e tendo a janela mais ao lado, podia ver os carros desviando uns dos outros na sua frenética busca por espaço, tentando chegar em casa para a ceia de ano novo. Nada naquela tarde prenunciava o que ocorreria a seguir. A notícia a pegou de surpresa, como uma tempestade de turbulências e tremores que aparece no meio de um dia normal de verão.

“Patrick está morrendo”, dizia o texto curto que ainda jazia parado na tela do computador. Karen obteve informações de seu estado por intermédio de amigos comuns. “Leucemia, estágio final”, continuava o texto, que terminava com um “achei que você gostaria de saber”. Os sentimentos dentro de Leah estavam em ebulição, num profundo contraste com sua face inexpressiva e o olhar que teimava em se manter fixado na pequena rachadura ao lado do marco da janela, como se a procurar algo, escondido ali, que pudesse lhe dizer como deveria reagir.

“Patrick sempre foi um covarde, um traidor”. Era só o que podia pensar. “Não havia em seu ser nenhuma fibra de virtude, nenhuma célula capaz de metabolizar honra e respeito. Todos os humanos recebem, pelo menos uma vez na vida, um teste para provar seu caráter. Patrick teve em suas mãos o grande desafio, e falhou miseravelmente. Diante do júri, sabendo que seu depoimento seria fundamental para estabelecer a verdade, escondeu-se, mentiu com seu silêncio, deixou-se covardemente silenciar, por medo de que a verdade o pudesse comprometer”. Leah ainda tentou fixar em seus olhos, enquanto lhe faziam a pergunta que mudaria o destino dela, mas ele baixou a cabeça diante do seu olhar. “Um covarde, cuja mentira flui por todos os poros”.

Depois de alguns instantes tentando descobrir o que pensar e fazer, abriu sua bolsa e dela retirou o celular. Com rápidos golpes na tela descobriu o nome de seu ex-amigo, que depois desses anos todos ainda dormia na sua lista de números. Ficou olhando para os dígitos à sua frente por alguns momentos até que seu dedo pressionou a combinação numérica. Não era justo que ele morresse sem que fosse possível dizer do desprezo profundo que sentia por ele. Era preciso dizer que seu silêncio, sua mentira muda, sua covardia a haviam marcado por todos esses anos. Queria lhe dizer o quanto de mal havia lhe causado, não apenas com sua separação e os danos financeiros, mas também por sua autoestima destruída, sua descrença na justiça e sua falta de fé na humanidade. Patrick simbolizava o que de pior houvera em sua vida. Uma amizade destroçada pela fraqueza de caráter e a falta de escrúpulos. Uma vida cheia de projetos jogada no lixo, desperdiçada como um papel sujo.

Depois de alguns segundos, ouviu o sinal de chamada. Alguém atendeu do outro lado, uma mulher. Uma namorada, enfermeira, familiar; já não tinha nenhuma importância. Leah disse que era uma “velha amiga” e desejava falar com Patrick. A mulher disse que ele estava muito fraco, mas colocaria o telefone em seu ouvido. Ouviu o som do telefone tocar o ouvido de Patrick e sua voz, mais grave do que se acostumara a ouvir.

– Olá, quem é?

Leah manteve-se em silêncio por instantes, tentando entender seus sentimentos. Do outro lado da linha estava o homem que mais odiou em toda sua vida, um amigo cuja amizade foi degenerada por acontecimentos desastrosos, mas que traiu sua confiança e sua amizade, deixando caírem sobre ela as culpas que, na verdade, lhe pertenciam. Por isso Leah teve a vida destroçada e os seus sonhos sepultados. Era o momento de dizer a ele o quanto de dor ainda carregava, e o quanto a morte prematura que ele enfrentava iluminaria seu espírito. Com voz quase sussurrava, ela respondeu:

– Sou eu, Leah.

Ele ficou em silêncio, talvez chocado pela surpresa. Um tempo depois, respondeu.

– O que deseja Leah?

Agora as lágrimas tomavam conta do seu rosto, correndo livremente pelas suas bochechas rosadas e caindo como uma fina cachoeira de ressentimento sobre o teclado do computador. Suas mãos tremiam e seus dentes crispavam, mas não conseguia dizer palavra alguma. Finalmente, após respirar profundamente, respondeu…

– Apenas desejar um feliz ano novo. Boa sorte.

Não esperou sua resposta e desligou. Colocou as mãos na cabeça e chorou profusamente. Talvez, seu desejo de um ano novo feliz tenha sido a mais sofisticada forma de crueldade que foi capaz de formular. Uma vingança dura e quase tão silenciosa quanto aquela da qual foi vítima.

Edgar Kensington Moore, “Happy New Year” da coletânea “Tales from the Fireplace” (Contos da Lareira), Ed. Rutherford, pag. 135

Edgar Kensington Moore foi um escritor britânico nascido em Sheffield em 1937. Estudou artes cênicas na Escola de Teatro William Shakespeare, na sua cidade natal, ainda quando cursava o ensino médio. Aos 21 anos casou-se com Melinda Fergusson e foram morar em Manchester, onde criaram seus três filhos. Foi em Manchester que Edgar produziu seus livros, em especial seus contos sobre a classe operária inglesa. Em “Tales from the Fireplace”, seu último livro publicado, ele mostra uma coletânea de contos relacionados à solidão das grandes cidades, sendo cada capítulo dedicado aos pequenos dramas cotidianos que surpreendem os solitários, desde o anúncio da morte de um desafeto, um bolo de aniversário para tia Betsy e até um acidente doméstico com o gato “Sparky”. Em todos os contos a temática é a dor e a angústia que se encontram acompanhadas da solitude, a dolorosa falta de um ombro para apoiar nossa cabeça ou para secar as inevitáveis lágrimas. Todas as suas personagens são mulheres, desde adolescentes até as idosas que apenas esperam a morte. É possível que este livro tenha como inspiração sua própria mãe, cujo marido faleceu na Batalha da Inglaterra em 1940, fazendo da viuvez precoce que testemunhou em sua mãe uma cicatriz em sua própria vida. Sua mãe criou seus dois filhos (Edgar e seu irmão mais velho George) solitariamente e jamais se envolveu novamente com homem algum. Pouco antes de morrer em 2020, Edgar contou que ver sua mãe sozinha escutando o rádio, costurando e ajeitando os filhos para a escola o marcou profundamente, em todos os sentidos, e talvez tenha sido por isso que escolheu o ofício da escrita, onde a solidão é a companheira mais constante. Edgar faleceu em 2020 de pneumonia, aos 83 anos, em sua casa em Manchester. Deixou a mulher Melinda e os filhos Harvey, Jeffrey e Andrew.

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Cassação

Precisamos parar com essa mania de pedir cassação de parlamentares por qualquer motivo. Há que se respeitar a vontade do povo. Colocar a democracia nas mãos da justiça burguesa será sempre uma tragédia para a classe operária – mesmo que as vezes pareça nos favorecer. Para usar esse instituto (a mais grave das punições) é preciso provas contundentes de crimes gravíssimos, não o simples uso de perucas, palavrões ou o deboche. É inaceitável entregar o poder popular do voto para ser usado de forma arbitrária pelos membros do judiciário. Repito: quem paga por isso sempre serão os partidos populares e de esquerda. Não é necessário lembrar que a lei de ficha limpa, que parecia um avanço, foi manipulada até o limite e usada como instrumento para impedir a candidatura de Lula.

Os partidos da esquerda precisam aprender que pedir cassação dos inimigos todos os dias tentando aplicar censura da palavra sobre os adversários é um expediente que um dia se voltaria contra si mesmos. A esquerda precisa abandonar imediatamente a ideia de que censura e justiça burguesa podem resolver nossos problemas. Assumam a liberdade de expressão como princípio básico e combatam as mentiras com a devida responsabilização e com o contraponto da verdade.

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Nós e eles

No Facebook ninguém jamais foi egoísta, sacana, maldoso ou ruim. Todo mundo sofreu bullying, ninguém jamais o cometeu. Todos foram injustiçados, mas ninguém foi autor de grosseiras injustiças. Todos guiaram sua conduta pela bondade e pela solidariedade, mas foram vítimas contumazes da maldade alheia. A ninguém jamais ocorreu agir em causa própria para obter vantagens; as ações sempre foram direcionadas para o bem comum. Todos são merecedores de erguer a mão e responder à pergunta de Jesus, afirmando impávidos “Eu, mestre. Sim, eu sou isento de pecado e posso atirar a primeira pedra. Façavor de me alcançar o paralelepípedo”. As redes sociais são pródigas em mostrar estes vestais, seres isentos de pecado, candidatos a atirar as primeiras pedras.

Ao lado da consciência de classe precisamos também aprender a calçar as “sandálias da humildade”. Ou ao menos aprender com o dramaturgo romano Publius Terentius Afer (Terêncio) que dizia “Sou humano, e nada do que é humano me é estanho”. Sem muito esforço consigo perceber toda a gama infinita de maldades humanas dentro de mim mesmo, das mais perversas às mais banais e imperceptíveis. A diferença entre mim e os criminosos que ocupam as prisões é pequena demais para que eu possa reconhecer uma essência distinta entre nós. Muitas vezes circunstância e contextos produzem estas distâncias enganosas, muito mais do que o caráter.

O apontar de dedos e o punitivismo inexorável das redes sociais não cansam de me surpreender pelo seu vigor e resistência. É a sanha punitivista que me espanta, em especial quando surge no seio da esquerda. Por que desacreditamos tão facilmente no perdão e na compreensão das falhas? Por que tanto sentimento de vingança que tanto nos aproxima dos verdugos e algozes da classe média? Qual o sentido de nos colocarmos tão acima daqueles que erram? Por acaso somos feitos de uma matéria distinta? Acreditamos mesmo em diferenças tão marcantes de caráter entre nós e o mar de pecadores que nos cerca? Que retrocesso espiritual é esse que nos faz gozar com a punição e a vingança?

A ideia de colocar-se acima dos outros – inclusive dos reais criminosos – é um erro que eu não tenho coragem de cometer. De novo trago as palavras dos antigos: “Nunca diga que dessa água não bebereis”. Sabe-se lá qual a sede que te consome. Tivesse eu bebido a mesma água que tantos beberam, passado pelas agruras de suas vidas e sofrido na carne o que sofreram e só assim seria possível dizer que jamais cometeria seus erros. Qualquer julgamento feito sem ter calçado os seus sapatos é injusto. E, mais uma vez, a impossibilidade de julgar as pessoas não significa a impossibilidade de julgar suas ações e seus crimes, assim como impor as punições que sejam necessárias.

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Xerifismo do STF

Três perguntas:

1Quantos anos de cadeia cada cidadão brasileiro se arriscaria a pegar caso o ministro Alexandre de Morais tivesse a mesma rigidez que teve com o bombadão fascista a respeito das postagens nas suas redes

2O que impediria a justiça de fazer isso com qualquer pessoa, na dependência apenas do humor de um super poderoso juiz que não gosta das suas palavras?

3Desde quando está valendo o crime de opinião no Brasil?

Realmente poucos teriam a coragem enfrentar um STF acovardado, que deveria mesmo ser suprimido, exterminado, pois que é um poder abusivo que age autoritariamente sobre os outros poderes democraticamente constituídos e que atua politicamente, de forma descarada, para fazer valer a vontade das elites e da pequena burguesia.

Só não vale reclamar quando o STF prender um amigo ou quando impedir o seu presidente predileto de concorrer; claro, nosso apoio só vai se expressar quando esses velhos medíocres atacarem um bombadão idiotizado pelos anabolizantes por dizer tolices em rede social. Nove anos de prisão por fazer gracinhas em redes sociais – e vamos deixar bem claro que “atacar” um poder constituído é um conceito bem diferente do que foi dito pelo réu, de que tinha “um sonho”. Ora, esse sonho de acabar com o STF até eu tenho, pois que esta instância é uma mistura de autoritarismo e xerifismo com o mais abjeto punitivismo.

Estamos cavando nossa própria cova. Esses julgamentos são absurdos, ou no mínimo exagerados e o caso do Daniel é emblemático. Quem agora comemora deve pensar que muito em breve este tipo de ação autoritária dos Ministros que julgam em causa própria vai se voltar contra um parlamentar da esquerda. Ontem, milhares de votos foram cancelados, e de novo através do autoritarismo do STF.

Aplaudir o ministros punitivistas, que agem como perfeitos xerifes de um filme de bang-bang, é pura estupidez, comparável a ficar feliz com os editoriais lidos pelo Bonner contra Bolsonaro. Não importa que o personagem da bolha fascista de agora seja um perfeito idiota, fascista e golpista, estamos abrindo uma porta que não seremos capazes de fechar. Anotem…

Precisamos com urgência de um órgão mais democrático, não vitalício e com pessoas realmente comprometidas com o cumprimento da constituição. Uma suprema corte que diz “O STF precisa escutar a voz do povo” (e não das leis!!!) deveria ser extinto no dia seguinte. Mas quando o STF faz algo que, circunstancialmente nos agrada, muita gente (inclusive da esquerda liberal) coloca a cara do Ministro Alexandre como wallpaper do celular e o transforma em herói da nação. Realmente, muitos preferem ser complacentes e servis com as diatribes de cortadores de pé de maconha e evitam críticas aos venais que agem como se a constituição fosse algo que pudesse ser criada a todo momento, na dependência de suas vontades, dos momentos e das oportunidades propícias para a autoproteção e a defesa dos interesse do mercado.

Cito aqui 5 exemplos de abuso obsceno de poder bem recentes protagonizados pela suprema corte:

1) golpe de 64 sancionado pela suprema corte, tratado como algo feito para o “bem da democracia”;
2) impedimento de Lula assumir como ministro de Dilma (o que poderia obstaculizar o golpe em marcha);
2) prisão inconstitucional de Lula,
prisão violando o artigo 5o da constituição, impedindo-o de concorrer; talvez para estes a prisão de Lula “era do jogo”, mesmo…
3) “impeachment” da presidente Dilma sem crime de responsabilidade – conforme amplamente comprovado, e até aceito por Temer, que reconheceu que o impeachment foi deflagrado porque Dilma não quis aceitar a “ponte para o futuro”. Pois também esse crime foi validado pelo STF;
5) a prisão arbitrária e absurda por 9 anos de um idiota que teve atitude de fanfarrão e boquirroto em rede social.

Uma breve pesquisa adicional e seria fácil achar outras centenas de atos autoritários para se somarem a estes. Com a adoção do “crime de opinião” ninguém está livre de ser perseguido por ter expressado sua opinião e sua perspectiva política sobre o país.

Muitos argumentam como se as leis fossem feitas de ferro, e bastaria se apoiar nelas para fazer valer o que é justo, ético e correto. Não… a lei não é feita de ferro, talvez de uma borracha maleável. Pensando bem, esta não é a melhor imagem; as leis são feitas de “slyme” e o STF faz o que quer com elas, moldando-as de acordo com os seus interesses intestinos e espúrios. Não apenas as leis regulares, mas a própria constituição, que é usada de acordo com as vontades desse colegiado medíocre. “Não tenho prova cabal contra José Dirceu, mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite” lembram dessa pérola da ministra Rosa Weber? Sabe quando uma aberração como essas seria aceita num tribunal europeu? Jamais…. mas por que continuamos a aceitar estes absurdos jurídicos por aqui?

A resposta é óbvia, porém triste: é porque esse país é cheio, repleto, transbordante….. de gente comportada.

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O Menino

Sim, eu tenho pena da desgraça destes personagens para quem um fosso enorme se abre sob os pés, de onde se podem ver as labaredas do Hades. Não me sinto bem associado à enorme energia destrutiva que se forma como resposta à condenação de seus atos. Talvez seja uma reminiscência de outras tantas fogueiras que presenciei, onde sempre imperam os sentimentos mais primitivos.

Esclareço apenas que sofrer por condescendência e empatia não significa aceitar ou concordar, muito menos absolver. Todavia, quando vejo o peso de tanto ressentimento acumulado recaindo sobre estas cabeças eu me associo à tragédia destes que caem. Digo também que olhar desta forma não é uma escolha racional, é um impulso. Também não significa que não devam pagar por seus delitos.

Existe uma circunstância que me é inevitável nestas passagens: eu sempre penso que poderia ser um filho meu. Tenho filhos da idade destes pobres personagens que agora se encaminham ao calvário. Mas já vi mães chorando no pronto-socorro a morte de seu filho bandido. Elas diziam “Ele sempre foi um bom menino. Foram as companhias e a maldita da droga”. Como não entender que, para uma mãe, este filho – por mais degenerado que seja – será sempre seu guri, que

“Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar”

Eu prefiro não cultuar o ódio por essas figuras, todas elas. Quando vejo se disseminar o gozo da vingança sinto um gosto de fel, que sempre me assusta e angustia.

Eu já fui alvo de ataques desse tipo, em especial na internet, por ter opiniões que ofendiam algumas pessoas. Vi gente fazendo discursos enormes carregados de ódio e que sequer me conheciam. Percebi que nestes momentos eu era colocado em um lugar e ocupava um posto. Não exatamente o que eu era, mas o que queriam que eu fosse. Nessa topografia eu podia ser atacado sem dó ou piedade. Eu era a “coisa” a ser destruída, e para isso não havia problema algum em me arrancar a humanidade.

A última vez que expressei meu sentimento com esses linchamentos fui vítima – que surpresa – de um pequeno linchamento por parte de uma antiga companheira. Defender que estas pessoas em desgraça sejam tratadas com alguma humanidade soa ofensivo para quem já sentiu algumas das dores que eles disseminam. Mas, para mim, passada a raiva inicial – quando me esforço por nada dizer – me assombra a imagem de um menino, sua face surpresa diante do mundo, suas dúvidas, seus projetos, suas paixões e seus sonhos. Ao lado dele um homem de túnica branca e barba sobre a pele escura, o dramaturgo cartaginês Publius Terentius Afer, o africano. Ele me olha e balbucia palavras que acompanho de memória. “Homo sum: humani nihil a me alienum puto”.

“Sou humano e nada do que é humano me é estranho”. Aquele menino poderia ser eu, se o meu caminho tivesse o mesmo rumo que o dele.

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O Cipó

Eu já vi esse filme, e acho que podemos estar errando de novo. O supremo empoderamento da voz das pacientes e o descrédito da versão dos médicos pode eventualmente se voltar contra os próprios profissionais humanizados. A mão que afaga é a mesma que apedreja. Criar demônios, desumanizando-os, não é certo nem justo. Criamos personagens sem matiz, a vítima e o carrasco, o bom e o mau, e isso raramente conta toda a história.

Hoje o foco das acusações é um intervencionista que muitos dizem ser arrogante, alguém que debochava da humanização e do parto no modelo de parteria. Espero que ele receba um julgamento justo por seus erros. Todavia, essa mesma energia vingativa que muitos lançam para ele pode voltar, como cipó de aroeira no lombo daqueles que agora apontam dedos. Já vi esse fenômeno, e sei como ocorre.

Eu recomendo cuidado com essas narrativas. No fundo não existe nenhuma diferença essencial entre médicos e pacientes; todos são gente, com suas falhas, erros, virtudes e acertos. Um certo cuidado com a história que se forma seria uma boa atitude.

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Positivismo e Medicina

A ideia de uma medicina monolítica é anticientífica e totalitária

O positivismo defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma verdadeira de conhecimento verdadeiro, desconsiderando todas as outras formas de aquisição de conhecimento que não estejam subjugadas ao método aplicado pela ciência. Estes outros saberes serão, desta forma, considerados como domínio teológico-metafísico, que se caracteriza pelas crendices, mitos e superstições. Para o início do século XIX, estas ideias de Auguste Conte e John Stuart Mill seriam, por certo, muito avançadas. Todavia, com o surgimento do capitalismo transnacional e, em especial, a explosão da indústria químico-farmacêutica do pós guerra, as descobertas científicas no campo da medicina farmacológica adentraram o grande mercado dos lucros e das concorrências, fazendo com que as descobertas destas gigantes industriais sejam mais pautadas pelo seu sucesso em vendas do que pela real capacidade de tratar e curar doenças.

Hoje em dia, em função da pervasividade dos medicamentos na cultura ocidental, temos a ideia de que as inovações medicamentosas e farmacêuticas são elementos propulsores do progresso, oferecendo a estas empresas uma confiança muito além do que seria justo. Entretanto, a história recente nos mostra que a “BigPharma” – conjunto de empresas multinacionais de drogas – é por certo um dos conglomerados mais corruptos já criados pelo capitalismo moderno. Mesmo assim, ainda confundimos remédios com tecnologia e ciência; pior ainda, acreditamos que a saúde é algo que se conquista com a adição de drogas.

As pessoas ainda não perceberam o preço que ainda vamos pagar por estas crenças, que mais se assemelham ao crédito que historicamente demos às religiões. Ao criar uma “medicina certa”, positivista, correta e acima de qualquer questionamento, perdemos de perspectiva a subjetividade, marca indelével da “nouvelle vague” das ciências humanas. A ideia de uma medicina monolítica me traz à mente a sombra do totalitarismo do século XX, e entender que a busca pela saúde estará na alienação que o sujeito sofre sobre seu corpo e sua alma, oferecendo esta tarefa às drogas, é um erro que pode ser mensurado indiretamente pela epidemia de opiáceos nos Estados Unidos ou pelo consumo absurdo de antibióticos e psicotrópicos pelas populações ocidentais.

Não me refiro apenas a estes tratamentos experimentais recentemente utilizados para doenças contemporâneas, mas sei exatamente que agora como nunca esta questão está à flor da pele. Afinal, qual a saída para a humanidade que paulatinamente se desvia da sua natureza mais íntima e ruma célere à mais absoluta “ciborguificação”, tendo a vida regulada por uma lógica protética e artificial? A ideia que por muitos anos foi dominante é de que existe uma forma certa, infalível e correta de tratar as pessoas – a biomedicina tecnológica e intervencionista – como se os pacientes se comportassem como gado – e aqui os veterinários me xingam, porque dizem que nem os ruminantes são todos iguais.

A ideia de tratar as doenças a despeito do sujeito parte de um biologicismo ultrapassado que despreza os efeitos do terreno mórbido na manifestação das enfermidades. Voltar ao século XIX não me parece significar qualquer avanço. O pior é que esta medicina hegemônica muitas vezes é apenas a face visível que emerge de disputas violentas pelo fatiamento de mercados e pela busca de lucros astronômicos no negócio da doença, e nós somos apenas a parte consumidora (e bovina) que baixa a cabeça diante do discurso das autoridades.

Criar este tipo de positivismo na medicina é um erro brutal, que leva consigo o risco de perder de perspectiva a subjetividade imanente de cada doente.

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Mal e mau

Meu pai sempre usava essa expressão para mostrar qual a verdadeira essência da maldade:

“Você só consegue me fazer mal se me fizer mau”.

Assim, a pior vingança do bolsonarismo contra aqueles que sonham com a equidade, a justiça, a diversidade, o respeito ao outro e uma sociedade de paz é nos transformar na pior versão deles mesmos. Creio que a postura de um humanista é jamais se curvar à sedução do ódio e da vingança. Quando nos tornamos iguais àqueles que mais combatemos é porque já estamos derrotados. Quando aceitamos o ódio e o ressentimento como via de expressão então já não há mais diferença ética entre nós e nossos adversários.

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Linchadores

Na internet há sempre um linchador de plantão cheio de esqueletos escondidos no armário e pronto para jogar acusações vazias em algum personagem. Assim o faz para que este pobre sujeito possa absorver suas culpas e aliviar suas angústias.

Zoe Papaniakos, “Media, Love and Hate”, Ed. Jasper, pag 135

Zoe Papaniakos é uma romancista grega nascida em Atenas, tendo estudado jornalismo nos Estados Unidos na Duke University, no Texas. Atualmente escreve artigos sobre feminismo, costumes e identitarismo numa perspectiva crítica, em especial ao “woke generation” e a “cultura do cancelamento”.

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