Estamos diante de um dilema crucial para o futuro da assistência ao parto neste país. A sinalização recente aponta para a criminalização do parto normal e a percepção da humanização do nascimento como uma “ideologia exótica”, o que se configura um desastre não apenas para os profissionais que procuram respeitar os direitos reprodutivos e sexuais de suas pacientes, mas também uma tragédia para as próprias mulheres, impedidas definitivamente de exercer o protagonismo sobre seus corpos. O objetivo inconfesso por trás das perseguições aos profissionais do parto humanizado é impedir que as mulheres tenham voz e que possam tomar decisões sobre seus partos; a forma de levar essa ideia adiante é penalizar – até encarcerar – os profissionais do parto que aceitam respeitar os desejos e escolhas de suas clientes.
O resultado imediato será um incremento das cesarianas, que já ultrapassaram 60% do total de nascimentos no Brasil, pois os médicos sempre se protegem usando como escudo a ideologia hegemônica. A longo prazo veremos a absoluta artificialização do nascimento, que transformará as mulheres em “contêineres fetais“, alienadas em definitivo de qualquer decisão sobre seus filhos e como eles chegam ao mundo. Percebam que nenhum médico é processado por (ab)usar de cesarianas, inobstante os resultados – até mesmo desfechos fatais; a tecnologia, mesmo quando sem indicação e sem qualquer justificativa, os protege. Nesse contexto de “macartismo obstétrico”, a paciência, o respeito aos tempos e às subjetividades e a vinculação com as evidências científicas são defeitos, não virtudes. Agir conforme as determinações da OMS e mesmo do Ministério da Saúde do Brasil não é algo a ser elogiado; é uma atitude que coloca médicos em risco.
Para evitar perder sua profissão, ser processado, perder seu patrimônio e até ser preso, o profissional deverá ser incoercível e violento e deverá agir com a mão pesada, sem levar em conta qualquer questão subjetiva. Deverá objetualizar ao extremo suas pacientes, enxergá-la como uma ameaça, e se esconder atrás de práticas ultrapassadas, violentas e perigosas, mas que garantem a satisfação das corporações e das instituições que lucram com a alienação das mulheres e o controle absoluto sobre seus corpos. A lógica é a mesma da polícia: quem reclamar da violência aplicada contra o cidadão é “a favor de bandidos”; quem questionar a violência obstétrica e os abusos das cesarianas está “contra a tecnologia” e estimulando mortes evitáveis. Por trás desses discurso, a “carta-branca” para que médicos e policiais atuem da forma que mais lhes beneficia; a moeda circulante é o medo.
Não se trata apenas de restaurar a justiça, de analisar os fatos, de aceitar os limites da medicina, mas também de compreender que esta injustiça contra os médicos e parteiras que abraçam as propostas da humanização levará a um aumento considerável da morbidade e mortalidade maternas, além de consequências terríveis para os bebês nascidos sob o controle da tecnocracia sem limites. O ataque ao parto normal cobrará um preço alto em vidas humanas.
Este debate não se encerra no julgamento dos profissionais, na sua prisão ou liberdade e na justiça que se fará. O resultado da reação aos avanços da humanização apontará para onde desejamos que se situe o futuro da assistência ao parto. Se apostamos na alienação das mulheres e a penalização da medicina baseada em evidências, o resultado será o pior possível. Julgar médicos que defendem o parto normal e as escolhas informadas de seus pacientes como criminosos que agem dolosamente é uma aberração jurídica inédita, cujas consequências serão sentidas por toda a sociedade.
A escolha precisa ser feita. Que parto desejamos para nossos netos?
Crucial choice
We are facing a crucial dilemma for the future of childbirth care in this country. Recent signs point to the criminalization of natural childbirth and the perception of humanization of childbirth as an “exotic ideology”, and that is a disaster not only for professionals who seek to respect the reproductive and sexual rights of their patients, but also a tragedy for women themselves, who are permanently prevented from exercising agency over their bodies. The unspoken objective behind the persecution of natural childbirth professionals is to prevent women from having a voice and from being able to make decisions about their births; the way to carry this idea forward is to penalize – even imprison – birth professionals who agree to respect their clients’ wishes and choices.
The immediate result will be an increase in Cesarean rates, which have already exceeded 60% of all births in Brazil, as doctors always protect themselves by using hegemonic ideology as a shield. In the long term, we will see the absolute artificialization of birth, which will transform women into “fetal containers”, permanently alienated from any decision about their children and how they come into the world. Note that no doctor is prosecuted for (ab)using c-sections, regardless of the results – even fatal outcomes; technology, even when not indicated and without any justification, protects them. In this context of “obstetric McCarthyism”, patience, respect for time and subjectivity and connection with scientific evidence are defects, not virtues. Acting in accordance with the determinations of the WHO and even the Brazilian Ministry of Health is not something to be praised; it is an attitude that puts doctors at risk.
To avoid losing their profession, being sued, losing their assets and even being arrested, professionals must be uncontrollable and violent and must act with a heavy hand, without taking into account any subjective issues. They must objectify their patients to the extreme, seeing them as a threat, and hide behind outdated, violent and dangerous practices, but which guarantee the satisfaction of corporations and institutions that profit from the alienation of women and absolute control over their bodies. The logic is the same as that of the police: anyone who complains about violence against citizens is “in favor of criminals”; anyone who questions obstetric violence and the abuse of cesarean sections is “against technology” and encouraging preventable deaths. Behind this discourse is the “carte blanche” for doctors and police officers to act in the way that best benefits them; the official language in childbirth is fear.
It is not just about restoring justice, analyzing the facts, and accepting the limits of medicine, but also about understanding that this injustice against doctors and midwives who embrace the proposals of humanization will lead to a considerable increase in maternal morbidity and mortality, as well as terrible consequences for babies born under the control of an unlimited technocracy. The attack on natural childbirth will exact a high price in human lives.
This debate does not end with the trial of professionals, their imprisonment or release, and the justice that will be served. The outcome of the reaction to advances in humanization will indicate where we want the future of childbirth care to be. If we bet on the alienation of women and the penalization of evidence-based medicine, the result will be the worst possible. Judging doctors who defend natural childbirth and the informed choices of their patients as criminals who act intentionally is an unprecedented legal aberration, the consequences of which will be felt by the entire society.
The choice needs to be made. What kind of childbirth do we want for our grandchildren?
O sangue ainda estava no chão, colorindo de vermelho o piso da sala de emergência. O ar carregado retinha o cheiro, entre adocicado e acre, que invadia minhas narinas. A lâmina muda jazia nos panos abertos, mas, ainda limpa e reluzente, espelhava minha estupefação. Os azulejos da parede refletiam minha face atordoada e desconcertada. A força e a dramaticidade dessa cena se repetiriam muitos anos depois, e com a mesma intensidade, na casa de Madalena, mas naquele exato instante eu era apenas um personagem passivo dos acontecimentos. Quase nada havia entendido do que ocorrera e, no entanto, esse momento marcou de forma indelével o resto da minha vida. Uma ferida emocional, ardente e corrosiva, que apenas estava começando a doer. Eu me encontrava na ilusória quietude do núcleo do furacão. Mal sabia aonde essa tormenta iria me levar.
Ainda escutei, vindo da dobra do corredor, o som das rodas mal azeitadas que conduziam a mulher para a sala de observação. A cena caótica escondia um mistério, mas ainda era cedo para decifrá-lo. As luzes da sala aumentavam minha confusão. Não escuto há tempo o choro do bebê. Foi levado para longe do cálido olhar de sua mãe, e talvez já esteja recebendo o tratamento de rotina. Olho para o lado, à procura de uma pista. Vejo os estudantes ainda conversando. Vejo risos nas suas faces, enquanto a minha permanece contraída. Por que eu estou me sentindo tão mal? Por que me tortura a impressão de que eu não entendi direito? Por que parece que alguma coisa está faltando? Saio da sala tentando parecer normal. Se eu pudesse pelo menos entender a sequência de eventos… Por que as coisas não saíram como deveriam? Por que parece ter sido tão diferente? Sinto-me irritado, aborrecido, mais pela falta de compreensão do que por qualquer outra coisa. Por quê? Não me havia sido ensinado que um parto em que a mãe e a criança estão bem é o desiderato supremo do bom atendimento obstétrico? Então por qual razão me sinto tão mal?
Em mim a “farpa na mente” doía. Uma inquietude, uma insatisfação. A dukka dos budistas. Mas ainda era muito cedo para entender a metáfora de Matrix. Tento lembrar de tudo o que aconteceu. Talvez se eu pensar em cada fato, cada detalhe, cada movimento, eu descubra a pista que me falta; a coluna que sustenta o meu mal-estar. Caminho de volta à sala dos médicos com a esperança de que com o tempo isso passe. Talvez se eu me concentrar no trabalho, ou na atenção às outras pacientes, eu consiga esquecer o desconforto que sinto.
Ou então, consiga lembrar…
Apelo para a memória. Os eventos do dia não pareciam trazer nada de significativo. Apenas mais um plantão como residente de primeiro ano. O que poderia ter havido? Meu plantão começara da forma usual. Cheguei ao hospital e conversei com os colegas de cara amassada que estavam se despedindo. Tomei meu café no refeitório do hospital e subi ao centro obstétrico para a passagem de plantão. Nada diferente dos demais dias do ano, a não ser o fato de que o centro obstétrico estava vazio. A noite havia sido movimentada, e não havia mais pacientes para atender. Estávamos em um sábado de maio, 1986.
As horas passavam sem que nada ocorresse para modificar a cor do nosso dia. Tentei recordar uma piada. Uma coisa com advogados. Não lembrei, mas me surpreendi rindo morfeticamente da última que acabaram de me contar. Plantões são assim: a gente se acostuma com os extremos da atividade. O excesso, a falta de leitos, o ritmo frenético de enfermeiras, doutorandos e pacientes. Tensão, agressividade e ansiedade. Ou então o tédio das salas vazias e dos leitos arrumados. Nessas circunstâncias, o que resta a fazer? Histórias, fofocas, bate-papos e gracejos. Piadas interminavelmente concatenadas. Ritmos temáticos: o de hoje era o dos advogados. Um amontoado de médicos e aspirantes a tal espremia-se em uma pequena saleta no coração do hospital. No canto da sala gritava um telefone interno, trazendo resultados de exames e pedidos de informações sobre pacientes. Na nossa frente, um quadro negro mostrava graficamente a presença das pacientes e o progresso dos trabalhos de parto. Hoje o quadro estava vazio. Há quanto tempo eu já estava ali? Tento fazer mentalmente a conta: três, quatro horas? Estaria chovendo? Lembro-me do espanto com que ficava ao ver pessoas com guarda-chuvas pingando na recepção e lembrava que, quando havia chegado ao hospital, o sol brilhava lá fora. Coisas da reclusão. Do outro lado da sala, um cinzeiro repleto repousava debaixo de um cartaz “Proibido Fumar”. Em um hospital, médicos não obedecem às regras; eles as criam. Estão acima delas.
E o cheiro? Um centro obstétrico tem um cheiro. Já vi prisioneiros descrevendo o odor das cadeias. Nos antigos hospitais do século XVII, o cheiro das carnes decompostas dos pacientes enclausurados podia ser sentido a quilômetros de distância. Quando estudante, trabalhei durante muitos anos em uma enfermaria de doentes renais, e o odor das diálises nunca saiu das minhas narinas. Também já vi amigos descrevendo o cheiro característico de uma cidade. Mas centros obstétricos também têm cheiro. Depois de alguns anos dentro de um, você aprende a reconhecê-lo. Uma mistura de líquido amniótico, odores corporais, suor; o hálito carregado pelo jejum imposto às pacientes, o material esterilizado. Um odor adocicado. Não é ruim, é peculiar.
Os sons e ruídos também são característicos. Os sussurros, os gemidos, os lamentos. A emoção pelo nascimento. As lágrimas silenciosas das mulheres, como que envergonhadas por estarem tão felizes. Os gritos da equipe médica conduzindo os esforços expulsivos das quase-mães. “Agora, mãezinha, força comprida! Não pare, não pare!” O telefone tocando. “Não, não nasceu ainda, mas deve ser daqui a pouco. Acredite, está tudo bem. Não, não podemos informar o sexo por telefone; ordens superiores. Ela está sim, mas está ocupada fazendo um parto, ligue mais tarde.”
E quem é o pessoal que trabalha com o nascimento humano nos hospitais universitários? Nossa equipe era normalmente composta de dois R2 (residentes graduados de segundo ano) e dois R1 (residentes de primeiro ano, recém-formados) que naquele dia éramos eu e meu colega. Além disso, tínhamos doutorandos (alunos no estágio de 6º ano) e estudantes de medicina e enfermagem. Muitos desses doutorandos e estudantes não tinham o menor pudor em dizer que não suportavam obstetrícia, e que estavam ali apenas para cumprir seu estágio. Outros se esforçavam para trabalhar bem aos olhos dos residentes, porque isso poderia auxiliá-los quando fosse feita a seleção de novos residentes para o próximo ano. De qualquer maneira, a fauna obstétrica era heterogênea e diversificada.
De quando em vez ouviam-se gritos na recepção. Maridos exaltados exigiam que suas esposas fossem internadas. Explicavam que moravam longe e que não podiam ficar indo e voltando toda hora. Gritavam, ameaçavam. Ao lado, procurando ficar alheias à agressividade exaltada, suas mulheres gemiam em voz baixa. A equipe esforçava-se para convencê-los de que ainda não era o momento de internar, ou de que o hospital estava lotado. Ninguém aceita explicações nessa hora. O choque era, quase sempre, inevitável. Já presenciei cenas constrangedoras de pugilato na recepção de maternidades, mas a regra era de que as brigas ficavam apenas nas ameaças. A porta de entrada era o ponto nevrálgico do CO. Ali o sistema era colocado à prova, e os combatentes de primeira hora eram chamados à luta.
Muitas vezes me imaginei estar em uma espécie de aeroporto aguardando os migrantes. Às vezes os voos são muitos e deixam o saguão lotado. Hoje o dia era de calma. Mentalmente cantei uma música de Suely Costa e Cacaso, talvez prenunciando que a calma momentânea do hospital guardava um segredo e uma surpresa.
Quando o mar tem mais seguedos Não é quando é tempestade Não é quando ele se agita Quando o mar ter mais seguedos É quando é…. calmaria.
O papo na sala de conforto médico continuava solto. Os resultados do futebol eram esmiuçados por experts. As falhas incríveis, as jogadas sensacionais. O juiz que teria errado. A escolha do estágio que ainda não foi feita. A namorada que não entende tantos plantões. O filho pequeno que tem saudades do pai. As dúvidas quanto ao que fazer quando a residência acabar. E a insegurança, cruel, sorrateira, dissimulada. O medo de errar. O medo de que percebam como tenho medo. O pânico de não saber, quando me perguntarem. A pesada máscara de um saber absoluto que não se suporta. Medo, muito medo.
Eu estava no primeiro ano da residência em ginecologia e obstetrícia, e Max, como gostava de ser chamado pelos amigos, costumava me dizer que um residente era o mais perigoso dos médicos. Max era sempre exagerado e dramático. Nossa formação médica tem uma continuidade, que nos leva das aulas tipicamente colegiais da faculdade de medicina, passando pelo estágio antes da graduação, e continuando-se no trabalho como residente logo após a formatura. Para quem observa de fora, não existe uma clara e óbvia diferença entre os doutorandos e os médicos residentes. Usam as mesmas roupas, o mesmo linguajar, os mesmos maneirismos; são subalternos em suas equipes e tem a mesma face adolescente. Por essa razão, continuamos a nos sentir como estudantes mesmo depois de formados, ao mesmo tempo que sabemos conscientemente que não mais somos. Isso nos leva a uma prepotência reativa: lutamos contra a nossa insegurança com a ferramenta da soberba.
Um residente sempre sabe tudo o que lhe perguntam. Não existe no seu discurso uma negativa. Um modelo que se ergue sobre a ideia de assimetria de saberes precisa estabelecer uma prática de dissimulação que reforce tal postura. Uma encenação constante e repetitiva de inequívoca superioridade; uma altivez criada pela magia de um conhecimento que imaginamos possuir. Na minha época, eram famosos os residentes “chutadores”: respondiam qualquer questão com certeza inabalável, que a muitos impressionava. Mais tarde, íamos aos livros para confirmar e descobríamos que tudo não passava de encenação. Nessa época, criei com Maximilian uma prática de contar histórias fictícias sobre a origem das cirurgias, ao modo das contadas em O Século dos Cirurgiões, de Jurgen Thorwald, mas da maneira mais convincente e lógica possível. Dessa forma, por exemplo, a perineoplastia, que é a plástica perineal realizada para auxiliar na incontinência urinária, foi em verdade criada no século XIX por um professor de cirurgia da universidade de Pádua chamado Giuseppe Perini (daí o nome do ato operatório), que criou a famosa operação de “levantamento da bexiga” porque sua mulher sofria dessa enfermidade após ter dado à luz a nada menos do que 20 filhos e ser obrigada a carregar sua “bexiga caída” em uma espécie de tipoia. Max contava essa história, que eu inventara durante uma cirurgia, com tanta propriedade e seriedade que muitos residentes realmente acreditaram nela. Nossos “causos” ficaram famosos entre os colegas, mas nos criavam alguns constrangimentos quando realmente queríamos falar a sério. Depois de uma resposta pronta e direta a uma pergunta formulada, alguns colegas nos olhavam com desconfiança, sem saber se era verdade ou apenas mais uma brincadeira.
E como se expressa um residente? Lembro de frequentar plantões de pronto-socorro desde os primeiros anos de medicina. Em um deles, quando devia estar no segundo ano do curso, voltei-me para um paciente do setor de queimados e lhe perguntei um detalhe qualquer do seu tratamento. Ele prontamente me respondeu, mas o residente que me acompanhava observou: “Você já está falando como médico. Parabéns!”. Por muitos anos, eu me perguntei o que ele queria dizer com isso, e porque eu mesmo notara algo de diferente na minha forma de falar. Somente muito tempo depois, percebi que o que diferenciava um comentário normal de uma observação tipicamente médica em um hospital público era um pequeno detalhe chamado “arrogância”. Essa “particularidade” na minha entonação ficou marcada como o início de um discurso médico que eu tentaria modificar no transcurso da minha vida profissional, tal qual um velho marinheiro que tenta se livrar da tatuagem de uma paixão fracassada de outrora. Confesso que fiz alguns progressos, mas a noção de uma falsa superioridade essencial é como o sotaque do nosso idioma original, do qual nunca conseguimos nos libertar completamente.
Em um centro obstétrico, temos um dos choques mais evidentes entre cultura e natureza que nossa sociedade pode estabelecer. O momento crítico do nascimento é exposto ao julgamento da sociedade, e ali os valores que constituem a matriz do nosso sistema de crenças determinam os rumos que desejamos imprimir. Nossa sociedade, diante da incerteza que esses eventos produzem, cria mecanismos de defesa para fazer com que eles se adaptem a padrões lógicos de compreensão. O mecanismo básico é o rito. O ser humano, na sua ancestral luta pela sobrevivência, acaba sempre estabelecendo estratégias adaptativas.
Como residente, acabei me acostumando a presenciar a ritualística hospitalar e obstétrica sem questionar suas razões ou me aprofundar em seus significados. Temos um comportamento padronizado e repetitivo. Aprendi a ter um modo de agir ritualístico, automático, irreflexivo nas minhas atitudes médicas, e fazer aquilo que se conforma com o que foi estabelecido pelas figuras mitológicas da nossa formação. Somos doutrinados, construídos e moldados a obedecer a um sistema que se autoperpetua pela repetição sistemática de valores que, primordialmente, são estranhos a nós. A objetualização dos pacientes, sua “coisificação”, a classificação arbitrária em patologias — tudo isso nos é inusitado quando adentramos a faculdade de medicina. Essa é a razão principal do medo dos cadáveres que os estudantes expressam ao ingressar na escola médica. Não existe para eles um “corpo real”, feito de músculos, nervos, ossos e sangue. Os corpos são “naturalmente” dotados de vida, de alma, de erotismo. Essa compreensão lógica da vida acaba sendo derribada durante a formação médica, em que a metáfora principal que explica o funcionamento humano é a máquina, como bem disse Robbie Davis-Floyd, no seu artigo “Obstetric Training as a Rite of Passage”.
Perdemos o status de organismos, assumindo a condição maquinal, cujos técnicos habilitados são os médicos, que com seu saber científico farão com que essas máquinas funcionem de forma “azeitada”, através da incorporação de tecnologia. Este é o modelo materialista, exógeno, cartesiano e positivista de nossa formação, mas o mais triste é que sequer entendemos isso como um modelo ou paradigma entre outros. Encaramos essa forma de proceder como “a correta”, estabelecendo com esse saber uma postura claramente mística e religiosa. Meras opiniões recebem status de dogma; suposições sem nenhum embasamento são vistas pelos estudantes como regras fundamentais para a atenção aos doentes. Nossa formação é caracteristicamente verticalizada, em que o saber se transmite por tradição (o velho professor falando de “seu jeito” de atender e de sua experiência pessoal) da mesma forma como se dá o ensino das funções de cura nas sociedades ancestrais, mas incrivelmente nos consideramos “cientistas”, enquanto eles são “primitivos”.
A organização hierárquica de um CO também funciona por um sistema de castas. No topo da pirâmide ficavam os professores, que quase nunca eram vistos durante os plantões. Funcionavam como uma instância de saber inquestionável, mas na prática inacessíveis. Em segundo lugar os contratados, médicos empregados do hospital para coordenar os plantões obstétricos, que acabavam se tornando os professores “de fato”. Normalmente, não tinham nenhuma afinidade com o ensino e alguns sequer tinham gosto pela obstetrícia. Limitavam-se a determinar condutas baseadas no “é assim que eu trato” ou “assim está no protocolo”. Esses médicos eram nossa principal referência profissional.
Abaixo dos contratados plantonistas estavam os residentes graduados, de segundo ou terceiro anos. Eles tinham mais autonomia. Coordenavam os partos, realizavam cesarianas, indicavam cirurgias no ambulatório, ensinavam residentes de primeiro ano e reproduziam a ritualística que lhes foi ensinada nos anos que passaram na escola médica. Normalmente, incorporavam os maneirismos, as atitudes e a postura dos seus professores. Tinham entre eles um assunto repetitivo: “o que vou fazer quando acabar a residência?”.
Eu me encontrava um pouco acima da base da pirâmide de poder médico. Estava há uns poucos meses na residência de ginecologia e obstetrícia do hospital da universidade. Era um “R1”. Os residentes iniciantes não podem acompanhar partos sozinhos, muito menos realizar cesarianas ou cirurgias ginecológicas. Fazem as internações obstétricas, atendem no ambulatório, avaliam as pacientes internadas, prescrevem toneladas de relatórios e obedecem a ordens. Eu era, entretanto, um residente um pouco diferenciado dos demais. Antes de entrar na residência, havia trabalhado em hospitais de periferia como interno plantonista. Durante muitos anos, frequentei os mais diversos plantões de emergência e clínicas para pagar meus estudos na faculdade de medicina e sustentar a minha família. Fui apresentado à obstetrícia nesses plantões da época de estudante, e quando me formei já havia contabilizado mais de uma centena de partos assistidos. Isso era absolutamente incomum na minha época, porque a maioria dos meus colegas de obstetrícia se formou tendo visto apenas uma meia dúzia de nascimentos. Como residente de primeiro ano, eu tinha mais experiência em partos do que boa parte dos R2 que deveriam me orientar, o que provocava um certo mal-estar entre eles.
Abaixo dos membros da hierarquia médica estava a enfermagem. Esta se dividia em cores. As enfermeiras tinham a sua cor específica no trajar, assim como as técnicas e as auxiliares. As enfermeiras eram sérias, um pouco prepotentes, e sempre se estabelecia um clima tenso nas conversas com elas. O fato de eu ser casado com uma me deixava mais à vontade, mas eu percebia que havia um “ranço” sempre que médicos e enfermeiras se encontravam para tratar de assuntos de trabalho. Do ponto de vista do modelo de assistência, muito cedo percebi que a formação das enfermeiras era fundamentalmente a mesma que nós recebíamos. Tanto elas quanto nós havíamos recebido um ensino fundado na tecnologia, em uma visão cartesiana do paciente. Pouco espaço havia para as questões afetivas e sociais. A ideia (ou a esperança) de que as enfermeiras, por serem mulheres, poderiam expressar uma atitude mais feminina em relação ao nascimento logo se desfez nos primeiros contatos com elas. Elas pareciam amarradas na camisa-de-força da tecnocracia, que as obrigava a sufocar sua natural feminilidade. Assim também ocorria com as residentes mulheres, que eram frequentemente mais intervencionistas e agressivas nas suas condutas que os seus colegas homens. Ser mulher não lhes garantia uma atitude feminina. Havia algo mais importante que a feminilidade a guiar essas condutas. O que seria?
A quietude do plantão só era quebrada por mais uma gargalhada. Um telefonema de mulher perguntava por alguém que já se fora. Respondi que o plantão havia terminado às oito horas, e que ele havia saído. Desliguei o telefone e fui recriminado de forma zombeteira por meus colegas. “Como você foi dizer isso? Podia ser a namorada ou a mulher dele! Você será o responsável por um divórcio!”. Risadas e comentários maldosos. Nada mais propenso a fofocas e maledicências diversas do que um plantão tedioso. Subitamente a ordem foi desfeita. Uma esbaforida auxiliar de enfermagem adentrou a sala dos médicos gritando:
— Tem uma paciente que está tendo seu filho na sala de emergência! Por favor, alguém vai lá!
Um silêncio constrangido se formou, deixando gargalhadas congeladas no ar. Por um instante, tudo esperou. Olhei para os lados instintivamente e me dei conta de que naquele momento eu era o mais graduado na sala. Meu colega de residência devia estar avaliando pacientes internados nos andares cirúrgicos, e eu ficara dando cobertura para os partos e avaliações de emergência. Só havia doutorandos, estudantes de medicina e eu. Não restava dúvida: essa era uma tarefa que a mim cabia realizar. Ergui-me rapidamente do velho sofá surrado e corri em direção à entrada do centro obstétrico, sem sequer perguntar em qual das duas salas de exames a paciente estava. Senti a auxiliar me seguir, mas corri mais do que ela e abri com vigor a porta da primeira sala de exames.
Nada. Nenhuma mulher. Nenhum som. A maca de exames vazia mostrava os lençóis desgrenhados, mas ninguém estava ali. Dei dois passos para trás e abri a porta da outra sala de urgência, mas a minha surpresa se repetiu. Ninguém. Ambas as salas estavam vazias.
Olhei para trás e encarei a auxiliar. Seria uma brincadeira? Seria um trote sem graça? Antes que eu pudesse reclamar ou dizer qualquer coisa, ela me avisou:
— Doutor, abra bem a porta da primeira sala. A paciente está lá.
Voltei à primeira sala e abri totalmente a porta de entrada. Foi só então que eu a vi.
Maximilian, muito depois, faria uma interpretação dessa cena. Disse-me que “a paciente precisava ser encontrada onde estava, e não onde você queria que ela estivesse”, numa referência a uma antiga música de Milton Nascimento. Apenas quando abri a porta até o final é que pude enxergar a paciente. Estava acocorada no canto oposto da pequena sala de admissão.
Era uma mulher com mais de 30 anos. Vestia-se de forma muito simples. A pele era escura e os longos cabelos eram presos atrás com um elástico. Olhava para o chão e parecia estar fazendo força. Corri em sua direção e lhe segurei o braço. Com um só movimento, afastei-lhe os joelhos e levantei o surrado vestido de chita. Baixei um pouco minha cabeça e então consegui ver os negros cabelos de um bebê brotando da vulva.
— Minha filha — gritei eu assustado. — Seu bebê vai nascer. Deite!
Meu grito para ela continha um sentido que eu não ainda conseguia perceber. A emergência do momento produzira a irreflexão da minha atitude, fazendo brotar das fissuras abertas do inconsciente um conteúdo ideológico profundo. Minha exclamação, e o que se seguiu a ela, foi a encenação de uma luta que se estabelecia entre dois valores culturais.
Foi então que ela levantou a cabeça e a girou em minha direção. Pude ver-lhe a boca tesa, a face suada e os olhos negros. Ela me olhou, mas de uma forma como eu nunca havia sido encarado. Seu olhar trespassou meu corpo e chocou-se contra os azulejos da sala.
Ela me olhou como se eu fosse feito de vidro.
Nada fez. Não se moveu; não me obedeceu. Seu olhar, parado no infinito próximo da parede, parecia querer dizer algo. Mas o quê? Parecia nada escutar, nada entender, nada pensar. Para ela foi como se eu não estivesse ali.
Uma enfermeira abriu um pacote com campos esterilizados. Peguei um deles e coloquei próximo à vulva da mulher. Pedi uma luva, mas não havia nenhuma por perto.
Uma nova onda de contração tomou conta do seu corpo. Olhei novamente para a vagina e percebi a cabeça do bebê dilatando ainda mais o períneo. Ordenei que me trouxessem uma tesoura para realizar a obrigatória episiotomia, mas não houve tempo para isso. Ainda tive oportunidade de dizer-lhe: “Não faça força ainda. Espere!”
Inútil. Novamente ela não escutou minhas ordens. Mais uma força e… nasceu.
Minhas mãos despudoradamente nuas tocaram o calor úmido dos negros cabelos do bebê. Senti o visgo dos líquidos quentes molhando-me os dedos. Pela primeira vez, experimentei nas mãos a realidade crua de um nascimento. Essa sensação nova me trouxe um misto de assombro e medo.
Nasceu na contramão, atrapalhando o sábado, pensei. Desceu ao mundo chorando o menino, como eu sempre me habituara a ver, acreditando ser esta a única forma de chegar ao nosso convívio. Sua mãe, acocorada à minha frente, reclinou a cabeça para trás e percebi as batidas do seu coração nos vasos do pescoço suado. Estava exausta. As enfermeiras, alunos e doutorandos deixam a sala ainda menor. O cordão umbilical, ainda preso ao útero, é cortado rapidamente, e do corredor consigo escutar os gritos do pequeno bebê ao ser levado para a área de neonatologia.
Estava quase terminado. Aguardei mais alguns instantes e tracionei o cordão umbilical restante, ainda grudado à placenta. A mulher contraiu o rosto e notei que a placenta estava descolando. Mais um esforço, um puxão. Pronto. A placenta vermelha e carnosa foi expulsa sem dificuldades. Até aquele momento, a paciente permaneceu de cócoras. Negou-se a se movimentar. Mantinha as palmas das mãos voltadas para baixo a tocar a laje fria da sala.
— Por que você não veio antes para o hospital? Olhe só o transtorno que você causou! Esse não é o local adequado para se ter um filho. Aqui não temos aparelhos, nem material adequado. Seu nenê nasceu no chão. Menos mal que consegui colocar um pano estéril, senão ele nasceria na sujeira!
Minhas palavras eram de franca inconformidade. As enfermeiras presentes concordaram e continuaram a bombardear a mulher com perguntas e críticas. “Quem está com você? Onde está seu marido? Onde estão seus documentos?” Como uma mulher entra no centro obstétrico e causa tal confusão? Ela nada dizia. Mantinha-se em silêncio. Estava agora com a cabeça baixa e os olhos fechados.
— Espere mais um pouco. Vou examiná-la para ver quantos pontos vai precisar.
Já calçando um par de luvas, abri os lábios vaginais à procura de lacerações. Imaginei que certamente as encontraria; afinal, não houve tempo para uma episiotomia, e sem dúvida seriam necessários inúmeros pontos de sutura para consertar os cortes erráticos que a natureza determina quando os partos não sofrem intervenções. O exame do períneo reservava mais uma surpresa. Nenhum corte, nenhuma laceração. Os lábios vaginais levemente inchados permitiram a passagem do bebê sem nenhum traumatismo. Que estranho!
— Você teve muita sorte — arrematei eu. — Não vai precisar levar pontos.
Levantei-me da posição de joelhos que até então eu me mantinha, e ofereci-lhe minha mão em auxílio. Ela se segurou firmemente em mim e ficou de pé. Uma maca a aguardava para conduzi-la à sala de recuperação pós-parto. Pronto. Estava tudo acabado. Deitou-se na maca e olhou mais uma vez para mim. Nada disse, apenas ficou me olhando enquanto as auxiliares a carregavam para fora da sala.
Por que seu olhar parecia me atravessar, sem se fixar em mim? Por que ela nada disse? Por que ela não cooperou com o parto, obedecendo minhas orientações? As lembranças dos eventos do dia não foram de grande utilidade para diminuir a minha angústia. Não foi o sábado que me causou a ansiedade, nem o susto de um atendimento imprevisto. A resposta para as minhas perguntas se encontrava naquela pequena sala de exames. Algo que ocorrera ali seria a resposta.
Voltei à sala e ela ainda estava suja. Pensei na “sujeira” que um parto desses pode produzir. Sangue, líquido amniótico, campos cirúrgicos manchados de vermelho vivo. No canto da sala, um borrão verde-escuro me mostrava que o recém-nascido evacuou logo após nascer. Parei para pensar o que verdadeiramente é “sujeira”, mas a compreensão desse conceito só viria à minha cabeça muito tempo depois.
A resposta tinha que estar ali.
Meu pensamento se fixou no olhar da mulher. Ele estava ainda impregnado na minha retina. Por que ela nada me disse? Uma enfermeira passou por mim e comentou, enquanto recolhia o material do chão da sala: “Que coisa, não é? Quase que não deu tempo para atender aquela gestante. Já pensou se o senhor não estivesse por perto?”
Sorri para ela e me mantive pensativo. E se eu não estivesse por perto para assistir esse parto, como seria? E se ela tivesse seu filho sem meu auxílio, o que teria acontecido? Meus olhos pararam em um ponto qualquer da sala e ficaram estáticos. A pergunta ecoava na minha cabeça.
“Sem minha presença, como seria?”
Comecei lenta e dolorosamente a entender. Olhei para os lados, temendo haver testemunhas dos meus pensamentos. Encontrava-me nu, atirado ao chão do meu Nabucodonosor. Como o renascido Neo, senti-me envergonhado pela súbita nudez. A farpa na mente dilacerava. Pensei mais uma vez nos eventos da pequena sala e percebi, aterrorizado, que tudo o que eu fiz desde que entrei naquele local para atender a uma emergência foi atrapalhar uma mulher a ter seu filho.
Tudo.
Todas as minhas atitudes foram prejudiciais ao bom andamento de um parto. A minha ansiedade ao entrar na sala, meus gritos, minha ordem para que deitasse, meus pedidos para que não fizesse força, minha tentativa de abrir uma episiotomia injustificável e não consentida, minhas reclamações em voz alta, a falta de respeito e carinho com uma mulher que acabava de ser mãe. Perguntas fora de hora, xingamentos. Equívocos, erros, absurdos.
A resposta à pergunta da enfermeira é que, se eu não estivesse por perto, aquela mãe provavelmente teria mais tranquilidade para ter seu filho. A dureza dessa resposta, e a dificuldade em admitir, é que tinham produzido a minha inquietude e a minha ansiedade. Agora produziam a minha vergonha. Mas por que eu agira daquela maneira? Afinal, as pessoas presentes acharam que eu agi corretamente, que fiz o que se espera de um médico. Ninguém ali parece ter percebido o que eu percebi. Como Paulo, na estrada de Damasco, aparentemente fui o único a ficar cego com a luz ofuscante dos fatos. Tudo o que eu fiz foi obedecer aos modelos estabelecidos. Estaria eu sendo injusto, duro demais comigo mesmo?
Naquele exato dia eu percebi que algo muito errado existia no meu proceder como obstetra e que eu não poderia admitir que se mantivesse. Entendi que um médico não pode ser um obstáculo ao bom andamento de um evento como o nascimento humano. Tive a noção clara e forte de que eu estava ali muito mais para aprender do que para ensinar algo às mulheres. O olhar daquela mulher havia me ensinado que, a exemplo do que escreveu Frederick Leboyer – médico francês que, com a publicação de “Birth Without Violence” de 1975, foi o deflagrador de uma revolução na forma como recepcionamos os bebês – um médico deve ser imóvel, estático e invisível. Deveria ser como que feito de vidro, transparente mas presente, para que sua presença não venha a atrapalhar os ditames sábios da natureza. Minha conduta arrogante e prepotente nada mais era do que a manifestação da minha gigantesca insegurança diante do nascimento. Mesmo entendendo a importância de um auxiliar de parto, seja ele médico ou parteira, não poderia jamais esta presença significar o controle do processo. Não nos cabe controlá-lo; apenas auxiliá-lo. Como eu tive a oportunidade de ver na camiseta de uma parteira australiana:
Imagine que você é uma parteira E está assistindo o parto de alguém Trabalha bem, sem exibicionismo e espalhafato. Facilite o que está acontecendo, Ao invés de pensar o que deveria estar ocorrendo. Quando este bebê nascer, Sua mãe certamente lhe dirá: “Fomos nós duas que fizemos”. (Lao Tzu – 500 aC)
O nascimento humano conjuga em um só momento os eventos mais temidos das sociedades em todos os tempos: nascimento, sexualidade e morte. Quanto mais temidos eles são, maior será a necessidade de ritualizá-los. Os rituais que aplicamos ao nascimento nos levam a criar a impressão ilusória de que este está sob nosso controle. Internamos mulheres em hospitais, tiramos-lhes a roupa, raspamos seus pelos, lavamos seus intestinos “contaminados”. Depois, elas são colocadas em camas onde um monitor invade a privacidade do seu útero, para que escutemos o coração de seus bebês. Rompemos a bolsa de águas, colocamos ocitocina para que a paciente ganhe seu filho dentro do tempo que nós estipulamos. Diante da dor causada pela solidão, medo e tensão, estabelecemos uma analgesia peridural, que via de regra termina com a aplicação de fórceps ou mesmo uma cesariana, pela dificuldade de essa paciente colaborar com um parto que há muito deixou de ser seu. Somos, entre outras coisas, escravizados ao relógio, que na parede diz que o nascimento deve ocorrer dentro de um prazo pré-estipulado de tempo. Elas devem se adaptar ao sistema, e não o contrário. Não há lugar para um tratamento centrado na pessoa, e pouco importam as particularidades, características e a subjetividade dessa mulher.
O parto deixou de ser um evento das mulheres, sendo sequestrado pela biomedicina e encenado através dos rituais hospitalares contemporâneos, mantendo e transmitindo nosso sistema profundo de valores.
Foi Robbie Davis-Floyd quem pela primeira vez mostrou que essas condutas, chamadas de “rotinas”, não eram obra do acaso. Sequer se poderia dizer que são comportamentos determinados pelo hábito ou com base em evidências científicas em favor das gestantes. A multiplicidade de procedimentos médicos declaradamente agressivos nas maternidades ocidentais nos mostra que isso não é verdade, a começar pelas cesarianas descontroladas. Existe um sentido em todas essas atitudes, que ultrapassa o que podemos enxergar. São rituais inconscientes que construímos para enaltecer nossos valores básicos. Erguem-se sobre os pilares constitutivos da obstetrícia contemporânea: a compreensão cartesiana do mundo, que separa corpo e alma, e a defectividade essencial da mulher. A obstetrícia criou, a partir desse modelo filosófico de compreensão do feminino, a necessidade de técnicas e equipamentos que pudessem auxiliar essa mulher no momento de parir, agora entendida como defeituosa e propensa a problemas, assim como Robbie Davis-Floyd descreveu em Birth as an American Rite of Passage.
Minha atitude na sala de exames refletia exatamente essa postura. Inconscientemente, eu reproduzi todo o arcabouço teórico que eu absorvera da escola médica e na minha formação pessoal como obstetra. Minhas condutas ao atender a pobre mulher tinham esses valores como norte:
Uma mulher não pode ter seu filho sem ser por mim. Uma mulher é incompetente para escolher a posição que mais lhe convém para parir. Uma mulher precisa ter seu períneo cortado para que seu filho possa nascer. Uma mulher não sabe como conduzir as forças que farão seu bebê entrar nesse mundo. Mulheres são, em suma, seres inferiores, incapazes e mal feitas.
Seria esse realmente o modelo de mulher que eu tinha? Entendi que eu deveria fazer uma escolha, e a primeira grande lição a ser aprendida seria a humildade. Ou eu modificava minha conduta como profissional, ou deveria escolher outra profissão.
Qualquer das alternativas me traria dor e sofrimento, porque eu sabia o que poderia acontecer a um médico que resolvesse descumprir uma ordenação superior. O tratamento seria o mesmo oferecido a um herege e, na verdade, era exatamente no que eu estaria me tornando. A medicina positivista contemporânea comporta-se como a sucedânea da religião no imaginário social, sendo os médicos seus clérigos prepostos e controladores. Ela não perdoa aqueles que se afastam de sua linha ideológica, principalmente aqueles que criticam o modelo tecnocrático de compreensão da realidade.
Durante boa parte da minha vida senti claramente a crueldade do tratamento de “herege ameaçador” a mim imposto. Jamais fui perdoado por me desviar do catecismo dogmático das convicções médicas contemporâneas, mesmo que o meu proceder estivesse escudado nas mais claras evidências científicas. Por outro lado, minha admiração pelas mulheres e minha paixão pela magia do nascimento me impediam de desistir. Minha decisão estava tomada. Morpheus disse a Neo, na eterna 1999, que “não há caminho de volta, mas, mesmo que houvesse, você voltaria?”
No outro dia, ao sair do plantão, encontrei Maximilian no refeitório do hospital. Corri em sua direção e lhe disse:
— Max! Uma mulher ganhou seu filho na sala de emergência no plantão. De cócoras e praticamente sozinha. Lembra que um dia você me falou que…
— Calma, Ric. Eu já sei de tudo. Nadine me contou. Ela pariu de cócoras então? Que tal pareceu? Pois acho que você precisa ler um livro, que talvez abra seus horizontes.
Max abriu sua bolsa estilo hippie e de lá tirou um pequeno livro de capa alaranjada. O título eraParto de Cócoras – Aprenda a Nascer com os Índios, do obstetra paranaense Moysés Paciornik. Peguei nas mãos o livro amassado e cheio de anotações e mais uma vez encarei Max, que sorria para mim.
— Leia e depois vamos conversar.
Agradeci o empréstimo e girei nos calcanhares em direção à porta de saída. Havia um dia ensolarado esperando por mim, e duas crianças aguardando um pai que retornava diferente para casa. Antes de sair, escutei a risada marota de Max. Voltei-me para um aceno de despedida e ainda tive tempo de escutar as palavras do colega.
— Seja bem-vindo, Ric. Patu Saleh!
Num futuro próximo eu escutaria a mesma frase, com palavras semelhantes, brotando da tela de um cinema lotado. Lá estaria Morpheus, dizendo ao “predestinado” Neo: “Bem-vindo ao mundo real”. Mas ainda era cedo, muito cedo para entender os meandros de um sistema de crenças que eu apenas estava iniciando a questionar. O Simulacrum produzido pela “Matrix obstétrica” ainda estava para ser descoberto. Naquela manhã de maio do ano de 1986, iniciei minha jornada de obstetra humanista, que mesmo com todas as dores, incompreensões, agressões e dramas, nunca pensei voltar atrás. Àquela pobre gestante, a minha dívida eterna. Seu olhar ainda presente nas minhas lembranças é a marca indelével da força e da dignidade que cada mulher traz consigo no momento de parir.
Quando vejo estas ideias de “medidor de dores” em sempre lembro que a dor não é um processo objetivo como a taxa de glicose no sangue ou a graduação de um hormônio circulante. Dores são percepções e elas são inexoravelmente subjetivas. A sensação de dor vai variar enormemente entre os sujeitos na dependência de inúmeros fatores. Por que, então, ainda insistem nessas “unidades de dor”? Qualquer pessoa percebe que isso é ridículo. “O ser humano só aguenta 45 unidades de dor mas as mulheres durante o parto aguentam 57 dessas unidades”. Isso significa exatamente o quê? Que as mulheres não são humanas? Serão elas sobre-humanas? Isso tem um nome: “desumanização”. Ou seja: as mulheres não precisam ser tratadas ou consideradas como humanas pois são seres divinos – ou, quando assim interessar, diabólicas e bruxas; não fazem parte dessa espécie.
Lembro quando um político populista do meu estado resolveu, durante uma palestra no hospital de clínicas, chamar as enfermeiras de “anjos de branco”. Nem terminou de falar e tomou uma vaia sonora do público, majoritariamente constituído por… enfermeiras. A razão dessa discordância é que chamar enfermeiras de “anjos” sempre cumpriu a função de desprofissionalizar, tratá-las como “religiosas”, espíritos impolutos que cuidam dos enfermos. Pois o que as enfermeiras mais desejavam era perder essa aura de abnegação e serem valorizadas em suas profissões, fugindo do estigma de “seres superiores” ou “luzes a iluminar as trevas da doença”. Não é adequado ou justo desumanizar as enfermeiras quando elas têm necessidades tão humanas quanto reconhecimento, respeito, atenção valorização e pagamento justo. No lugar dessa exaltação, paguem um bom salário, ora…
Com as gestantes o mesmo. Insistem na balela de que as dores do parto são horríveis mas as mulheres, por serem “seres superiores”, são capazes de suportá-las acima dos limites humanos. Pura bobagem!! O parto é tão mais doloroso quanto mais ignorados são seus princípios básicos de segurança, privacidade e intimidade. Todavia, a dor inerente ao processo é suportável por pessoas comuns, por mulheres absolutamente humanas. A ideia de tratar as mulheres de forma diferente não as ajuda e sacraliza a ideia de excepcionalidade.
Lembro da história que um professor de psicanálise me contou durante uma viagem entre Blumenau e Florianópolis que fizemos de carro. Dizia ele da história de uma mãe com problemas para alimentar seu filho com síndrome de Down – o mais novo de 4 filhos e o único com este diagnóstico. Ele costumava brincar com a comida, esmagar com as mãos e jogar longe, o que a irritava profundamente. Logo ao escutar o relato meu amigo já estava se apressando a dizer o quanto é natural esta conduta lúdica com o alimento entre as crianças pequenas quando decidiu perguntar: “Mas me conte, como você agiu com os outros filhos?”, ao que ela respondeu “Ah, com todos eles eu ralhava!!”. Ao escutar essa resposta ele disse: “Pois com este menino faça o mesmo!!”
Diante da minha surpresa, ele respondeu: “Muito pior do que não entender a questão das brincadeiras com a comida é iniciar desde cedo um tratamento diferenciado, excluindo o menor do tratamento que sempre foi dado aos outros irmãos, apenas porque ele é “especial”. Isso reforçaria nele a ideia de que não pertence àquele grupo, que não é tão humano quanto seus irmãos e só por isso não é tratado da mesma forma”.
Com as mulheres penso da mesma forma. Trate-as sempre com a mesma humanidade com que trata os homens, nem mais nem menos. Criar a ideia de que elas suportam mais as dores é tão discriminatório quanto achar que não podem exercer as mesmas funções dos homens. Lembrem apenas que muito do que se sabe sobre o assoalho pélvico feminino foi descoberto por um ginecologista americano chamado James Marion Simms abusando dessa perspectiva. No seculo XIX ele realizou pesquisas com cirurgias para fístulas urinárias sem anestesia e usava mulheres negras em seus experimentos dizendo serem elas “muito fortes para a dor”, portanto capazes de aguentar as dores dos procedimentos cirúrgicos criados por ele.
Ou seja: desumanização, mesmo quando o desejo é exaltar, nunca é algo justo e bom. Trate as mulheres, inclusive e principalmente durante o parto, como gostaria que todo ser humano fosse tratado. Nada mais, nada menos.
Poucos temas tem tanta relevância cultural quanto o debate sobre a dor do parto. Desde a famosa “parirás com dor e sangrarás todos os meses”, que na Bíblia estabelecia a pena para a luxúria feminina e o abandono do paraíso, até a epidemia de analgesias obstétricas, tudo gira em torno da dor da expulsão fetal e o sacrifício (sacro ofício) das mulheres em nome da manutenção da espécie. Esta valorização da dor materna, como todo elemento cultural, é diferente quando analisamos culturas, geografia e tempos distintos.
A dor do parto pode se manifestar em uma gama infinita de apresentações, transitando dentro de uma variação que vai desde aquelas dores absolutamente ausentes até aquelas descritas como extremamente fortes, no limite do suportável. Por esta variedade e sua conexão com os estados da alma, podemos descrever a dor do parto muito mais como um “sentimento” e uma amálgama de sensações físicas e emocionais, do que como um fato objetivamente mensurável. Para qualquer investigador mais sério, fica muito claro que é impossível analisar objetivamente um fenômeno absolutamente subjetivo, pois que as contrações e a dilatação cervical ocorrem num arcabouço psíquico único e irreprodutível.
Algumas mulheres vão descrever tais dores como excruciantes enquanto outras referem que mal sentiram uma leve sensação de pressão – a qual sequer poderiam chamar de dor. Também é claro que a dor do processo de parturição é aumentada ou diminuída de acordo com as expectativas de dor de cada sujeito. Os ambientes de parto no ocidente, frios, impessoais e invasivos, com pessoas desconhecidas que não transmitem confiança e privacidade, também concorrem para o incremento da percepção dolorosa.
Luís Miguel Torres, presidente da Sociedade Espanhola de Dor Multidisciplinar, disse à AFP que a ideia da dor insuportável que pode ser medida “não existe no mundo clínico nem no de pesquisas” e assegurou que “é invenção de alguém, que não tem nenhum fundamento, nenhuma base científica”. Dominique Truan, ginecologista obstetra da Universidade do Chile, também explicou: “A dor é muito subjetiva, muito pessoal, muito sobre o contexto”. E apontou que é fantasioso falar em “unidades de dor”.Mario Sebastiani, doutor em medicina e obstetra do Hospital Italiano de Buenos Aires, disse em uma recente entrevista que a dor “é uma das questões mais controversas da medicina, já que não há medidores de dor eficazes”. (em “O Estado de Minas“)
Assim sendo, a dor do parto não é um “mito”, uma fantasia ou uma fabricação cultural, mas é um evento sobre o qual a cultura determina um valor específico, de acordo com os tempos e latitudes. O ocidente contemporâneo lança sobre ela uma lente de aumento, cujo objetivo é empoderar quem controla a intervenção e a analgesia química. Culturas diferentes, como as culturas nativas do Brasil, não descrevem a dor do parto como os descendentes de europeus, dando uma ênfase muito menor à dor de parir.
Percebe-se, então, que essa caracterização da dor do parto como “extremamente violenta“, “insuportável” “a pior das dores”, “algo que os homens não suportariam”, “igual a 20 ossos quebrados” ou “acima do limite que os humanos suportam” etc., é uma criação moderna, sem qualquer comprovação científica, cujo objetivo sempre foi empoderar as corporações, sejam elas os hospitais e/ou a instituição médica, em especial a dos anestesistas, justificando ideologicamente a intensa invasão tecnológica do processo de parir.
Hoje sabemos que a maior responsável pelas “dores de parto” contemporâneas é a violência obstétrica institucional, que não oferece às mulheres as condições físicas, ambientais e psicológicas para o parto fisiológico. Isso ocorre pela incapacidade do sistema médico obstétrico em compreender as necessidades emocionais, afetivas, psicológicas e espirituais das mulheres que enfrentam os desafios do parto.
Há 40 anos passados eu trabalhava como interno (estudante de medicina) em um pronto socorro privado da capital. Em uma oportunidade, enquanto conversava com a recepcionista em meio a um plantão monótono de fim de semana, vi um casal se aproximar da recepção trazendo uma criança ao colo.
– Meu filho está com febre. Preciso uma consulta. Vocês atendem pelo INPS?
O INPS é o antigo SUS. O casal e seu filho estavam vestidos de forma muito simples, algo pouco usual para um serviço privado em um bairro nobre da cidade. A secretária olhou para mim e sorriu com o canto da boca, como que a dizer “mais um daqueles”.
– Não atendemos pelo INPS, somente de forma particular. A consulta custa 5 mil cruzeiros.
O casal se olhou e sequer explicou que não teriam dinheiro. Resignados, limitaram-se a perguntar onde haveria um hospital público. A secretária apontou a direção e eles saíram com o filho febril nos braços.
– Todo sábado aparece um “cabeção” com esse tipo de pergunta, disse a secretária.
Cabeção, na gíria médica da época, representava o “sujeito pobre”. Alguns outros médicos tratavam esse personagem por “jacaré”, talvez por reclamarem muito, serem “boca grande”. Eu sempre recordo desse fragmento de história porque ele me ensinou algumas coisas relevantes, e a mais importante delas é a ilusão de pertencimento. Eu conhecia aquela secretária; ela era mãe de duas crianças e solteira. Ganhava um salário muito baixo e morava na periferia da cidade. Apesar disso, olhava com ares de superioridade para as pessoas do seu mesmo estrato social que apareciam inadvertidamente no ambulatório. Porém, por estar numa posição de relativo poder, e rodeada de profissionais da medicina, se considerava superior aos “cabeções” que, por ingenuidade ou desinformação, vinham procurar um serviço vedado à sua classe social. O fato de ser oriunda das classes populares não produzia a empatia que se poderia esperar; em verdade, muitas vezes esta condição produz o inverso: a identificação com o opressor.
Esta história se conecta com outras percepções que desenvolvi na minha vida. Uma delas é o meu repúdio às soluções cosméticas que jamais atingem a fonte dos problemas. Colocar uma pessoa das classes trabalhadoras em uma posição de relativo poder não significa garantir um atendimento mais empático, e a história está repleta de exemplos do quanto estas ações são apenas dissimulações para manter inalterada a estrutura social. Para alguns ainda é difícil entender porque a esquerda radical repudia o identitarismo, mas o veto ao cessar fogo em Gaza sendo dado, pela segunda vez, por um negro (representando um país majoritariamente branco) é mais um excelente exemplo. Diante da potência avassaladora do imperialismo, a cor da pele, a origem, os dramas compartilhados e as raízes são impiedosamente pulverizados. O sujeito, seja qual for sua identidade, será objeto de manipulação pelas forças reais que comandam a nação. A ideia de que negros, gays, trans, mulheres e quaisquer outros que se julguem oprimidos fariam a diferença pela sua representatividade é ingênua – no mínimo – mas é usada para dar a ideia de que sua escolha sinaliza as tão sonhadas equidade e diversidade na sociedade. Puro diversionismo macabro; na verdade os cordéis continuam sendo manejados pela elite exploradora; mudamos apenas a cor e a vestimenta dos marionetes. Nada muda, nada se transforma, mas oferecemos a suprema encenação para que os poderes sigam intocados.
Repito o que digo há décadas: se a representatividade tivesse valor neste nível, a entrada das mulheres na atenção ao parto – como ocorreu de forma marcante nas últimas décadas – teria um efeito revolucionário na assistência ao nascimento. Afinal, mulheres atendendo mulheres e criando entre elas uma sintonia fluida e natural, faria brotar a empatia redentora entre as cuidadoras e suas pacientes. A migração feminina para a obstetrícia deveria produzir uma marcada transformação no cuidado, diminuindo, até quase a extinção, qualquer resquício de violência obstétrica institucional. Essa era, para quem se lembra dos debates dos anos 90, a esperança compartilhada por muitos profissionais da nascente corrente da humanização do nascimento. Nada disso ocorreu. O que se viu na entrada do novo milênio foi que essa esperança era falsa, e a mudança simples no gênero dos atendentes não produziu nenhuma alteração perceptível nos níveis de abuso e violência no parto.
As taxas de violência e abusos praticadas por profissionais na atenção ao parto, sejam eles homens ou mulheres, são praticamente idênticas. O peso da medicina e a pressão corporativa são muito mais fortes que a identidade. O jaleco branco, a caneta “Parker” e o estetoscópio pendurado no pescoço são mais relevantes do que sua história, sua origem social ou sua identidade. Também por isso havia negros na polícia racista da África do Sul, árabes no exército sionista e pobres e negros nas forças de repressão brasileiras nos inúmeros massacres perpetrados contra a população negra e pobre das periferias brasileiras; a farda pesa mais do que a cor da pele.
Que isso nos sirva de lição na luta contra os preconceitos e a exclusão: a luta precisa ser compartilhada, sem diversionismo. A grande revolução será em torno da luta de classes, não das cores, dos gêneros e dos jeitos de ser. Não existe emancipação de mulheres, negros, gays, etc. que não passe pela revolução contra o capitalismo, atingindo a sociedade de classes e eliminando as barreiras sociais.
Algumas pessoas estão dizendo que processar aquele médico de São Paulo por violência obstétrica contra a “influencer” (basicamente linguagem vulgar e insultos) será algo bom para as mulheres ou para a humanização do nascimento. Acreditam que a judicialização destes casos pode trazer benefícios às mulheres por eliminar a impunidade. “Se eles forem punidos severamente pensarão bem antes de agir”, pensam elas. Cabe lembrar: qual grupo passou quatro anos repetindo que a solução para os problemas crônicos do país seria mais polícia, mais presídios, mais condenações e mais punições?
Aviso que este tipo de ação será ruim tanto para as gestantes quanto para o movimento. Punitivismo é sempre uma ilusão em curto prazo, e uma tragédia em médio e longo prazos. Acreditar que jogando esses profissionais na fogueira estaremos ajudando alguém é um erro; a tendência é, este tipo de punição acabe por provocar ainda mais retração dos obstetras, porque acrescentamos mais um risco ao atendimento do parto normal. Sempre que qualquer profissional – em especial aqueles que trabalham nas fronteiras entre vida, morte e sexualidade – se sentem acuados, a reação natural é a proteção, e as intervenções serão sempre o porto seguro de qualquer médico. E enquanto o poder sobre os corpos grávidos se mantiver nas mãos da Medicina os riscos à segurança do médico terão sempre efeitos devastadores sobre o resultado do parto.
De agora em diante, as palavras ditas durante uma assistência ao parto poderão ser interpretadas como agressivas, ofensivas, violentas ou desrespeitosas, e um juiz poderá julgá-las fora do contexto onde foram proferidas. Gracejos inocentes, comentários, observações, piadas, conselhos agora poderão ser usados como provas contra os atendentes. O resultado óbvio será o silêncio, e o acirramento das tensões entre personagens que deveriam estar em sintonia para que a transferência pudesse fluir no sentido curativo. Agora, com a Barbie reforçando o identitarismo, é evidente qual será o resultado desse enfrentamento. Nada sei sobre vantagens pecuniárias e o quanto o sentimento de justiça pode ajudar as vítimas, mas não resta dúvida alguma de que os médicos pensarão duas vezes antes de aceitar uma atenção ao parto normal. Para que correr ainda mais esse risco? Por que haveriam de passar horas ao lado de suas pacientes controlando qualquer palavra dita, para não ferir suscetibilidades? Ora, uma cesariana resolve todos estes problemas. Mais do que nunca, bastará pedir uma ecografia com 39 semanas e escolher entre tamanho fetal, quantidade de líquido, cordão no pescoço, incisura protodiastólica, movimentação do bebê ou qualquer outro elemento que possa causar pânico em todos.
Não tive interesse em avaliar o caso do colega de São Paulo mais a fundo, e nem quero. Acho que muitas circunstâncias da vida dele foram trágicas e não quero ser advogado e muito menos juiz de ninguém. Também acho que toda paciente deve ser tratada com respeito e consideração; “Na dúvida, fique em silêncio”, já me dizia Maximilian. Todavia, não conseguirei jamais aceitar que “punições exemplares” por palavras proferidas possam ter caráter positivo. Apostar na punição como método pedagógico é errado em tantos níveis que não vale a pena citar todos eles, mas não há dúvida alguma que o preço será pago pelos mesmos sujeitos de sempre: mães e bebês.
Foi nos umbrais do século XXI, no Congresso Internacional de Humanização do Nascimento em Fortaleza-CE no ano 2000, que eu tive a minha primeira lição a respeito do significado último das lutas pela emancipação das mulheres. Por certo que a minha característica lentidão no que se refere aos processos de sedimentação de novas ideias não permitiu que esse fato fosse entendido em sua abrangência total à época em que ocorreu, e só muitos anos depois tomou corpo e forma. Na ocasião, num intervalo entre palestras, estava conversando sobre o tema dos princípios básicos do “modelo de parteria” com um querido colega, obstetra de um grande hospital no centro do país. Fomos interrompidos educadamente por um médico que se apresentou como professor de obstetrícia de uma universidade local. Ele queria nos perguntar sobre o tema, pois os alunos que ele estava acompanhando estavam inquietos com algumas informações recolhidas. Disse ele:
– Colegas, escutei a última palestrante e creio que sua explanação me deixou confuso, e aos meus alunos inconformados. Ela deixou nas entrelinhas que as enfermeiras obstétricas poderiam ter plena autonomia para o atendimento dos partos eutócicos, ou seja, partos de risco habitual. Expliquei aos meu alunos que isso não poderia ser verdade e que todo o parto é de responsabilidade do médico da unidade, e creio que os senhores hão de concordar comigo. Não?
Imediatamente olhei para o meu colega e, em quase uníssono, respondemos:
– Pelo contrário!! Concordamos plenamente e está claro que a afirmação dela é correta. O trabalho das parteiras profissionais (enfermeiras obstetras e obstetrizes) é autônomo para os atendimentos que estão dentro do seu escopo de ação. Essas profissionais não são subordinadas aos médicos.
Seu olhar foi de assombro. Em sua mente o desconforto com nossas palavras tomava voz: “Como poderiam dois médicos, colegas de profissão, entender que a ação médica nos partos poderia ser dispensável? Como permitir o “atraso” de aceitar partos atendidos por “meras” enfermeiras? Não há como aceitar esse retrocesso; meus alunos não deveriam estar aqui”.
E isso tudo acontecendo no estado que pariu Galba de Araújo.
Alguns anos depois mais uma vez eu estava em um congresso de Humanização do Nascimento, desta vez no Rio de Janeiro. O mesmo colega foi à tribuna para fazer uma manifestação. Citou, entre vários assuntos, o fato de que não existem trabalhos comprovando que a presença de um neonatologista na atenção imediata ao parto melhora os resultados perinatais, quando os partos são de risco habitual. Dizia com isso que as parteiras com treinamento básico de atenção ao recém nascido (ALSO) são absolutamente competentes para esta atenção, e as evidências deixavam isso bem claro. Bastou terminar de falar para que um pediatra furioso pedisse a palavra e subisse à tribuna. Suas palavras, conforme pude reter na memória, foram estas:
– Cruzei o Brasil para participar de um congresso de um tema que acho importante, como a humanização, mas não imaginava que a minha especialidade fosse tratada com tanto desprezo. Chamar os neonatologistas de “inúteis” (a palavra não havia sido usada, mas foi como ele se sentiu) é um desaforo. Eu acreditava que este congresso seria um congraçamento de ideais, lutas conjuntas, troca de experiências, fraternidade, laços afetivos etc. mas o que vejo é desunião e agressões despropositadas.
Sentou-se novamente em sua cadeira, abalado e inconformado. Meu colega calmamente voltou ao microfone e falou:
– Se as evidências científicas tanto lhe agridem deveria frequentar lugares onde elas não são aceitas ou respeitadas. O que eu disse pode ser lido em qualquer revisão das grandes instituições. Não atire nos mensageiros quando a mensagem lhe desagrada. Se houver algum documento provando o contrário, ficarei feliz em me retratar. Enquanto isso, respeitarei as provas que chegam a mim.
Ali deveria ter ficado bem claro para mim quais os limites do “reformismo obstétrico”. Entretanto, ainda acalentei durante décadas a ideia ingênua de que que existem estratégias de “boa convivência” entre sistemas de poder capazes de imprimir mudanças paradigmáticas. Entretanto, o acúmulo de evidências em contrário fez com que essa ilusão viesse ao chão, e os ecos dessa queda estrondosa consigo ouvi-los até hoje. Era muito claro que a humanização do nascimento para o colega de Fortaleza seria um modelo de suavização de práticas, o reconhecimento da autonomia parcial das pacientes para várias questões, uma proximidade maior com a enfermagem e o respeito às evidências….. desde que estas ações não interferissem na pirâmide de poderes que sustenta a atenção ao parto e nascimento. No momento em que se aventou a possibilidade de um parto ocorrer sem o “carimbo” do médico, retirando deste a autoridade final e suprema sobre o processo, o alerta vermelho foi acionado. “Sim, podemos debater as doulas, as parteiras, a pintura da sala, as Casas de Parto, a presença do marido…. mas não ousem retirar aquilo pelo que lutamos bravamente: o poder conquistado sobre os corpos das mulheres e de seus filhos”.
Para o pediatra (lembro apenas que era da Paraíba) que se indignou com os dados oferecidos pelo meu colega, ficou claro que as evidências oferecidas pela Biblioteca Cochrane, ou as provas publicadas em periódicos do mundo todo só seriam aceitas caso tivessem a preocupação em manter intocada a autoridade dos médicos sobre mães e bebês, sendo inaceitável que outros atores no cenário do nascimento tivessem esta prerrogativa – mesmo diante de qualquer prova científica que lhes garantisse esse lugar. Por isso, hoje em dia a maturidade (velhice) não me permite mais aceitar estas ilusões: o debate idealista sobre o parto, a perspectiva reformista e o “bom mocismo” do ativismo devem ser jogados fora. Não existe possibilidade de mudança na atenção ao parto que ofereça autonomia às mulheres, garantindo a escolha do local e dos profissionais responsáveis sem revolucionar o “modelo obstétrico” etiocêntrico (centrado na doença), iatrocêntrico (centrado no médico) e hospitalocêntrico (centrado no hospital, um local criado para atender doentes tão depauperados a ponto de não conseguirem caminhar, incapazes, assim, de frequentar “ambulatórios”).
O “Reformismo Obstétrico”, assim como o reformismo na política, parte de uma perspectiva idealista que imagina que o debate franco, a demonstração das evidências, o conflito de perspectivas e a lenta demonstração da verdade por fim produzirá mudanças significativas. Essa vertente de pensamento acredita que as ideias serão motores da transformação, solapando as mentiras através da confrontação. Ora, nada poderia estar mais longe da verdade. Não há contestação científica alguma sobre a superioridade do parto normal em relação à cesariana, e não é de hoje essa evidência. Não há dúvida quando à falta de utilidade e os danos causados pelas episiotomias, isso há 40 anos. Não há nenhum debate razoável sobre Kristeller, enemas, presença de doulas e mesmo local de parto, mas estes continuam sendo tabus na assistência cotidiana. O Brasil atingiu um platô de 57% de cesarianas, e não existe melhora destes números no horizonte. Por quê? Por qual razão estas ideias comprovadas há décadas não se transformam em rotinas? Qual a justificativa para a distância entre o que sabemos e o que fazemos?
A resposta inconveniente é que não se trata de um embate de ideias mas de poderes. Não existe luta de evidências; a luta é de poderes políticos na arena da saúde pública. Enquanto continuarmos acreditando que as evidências são capazes de mudar qualquer realidade vamos continuar chorando a opressão causada pelas categorias profissionais que detém o poder sobre os corpos grávidos pelo mundo afora. A luta nunca foi por evidências científicas e elas são absolutamente desprezíveis para se estabelecer protocolos no mundo todo; basta olhar como eles são feitos em hospitais, cidades e países. Para criar estas normas basta força e autoridade. Por isso que a única forma de transformar a realidade obstétrica é através da luta das mulheres ao lado das enfermeiras e obstetrizes para ocupar espaços de poder. Continuar investindo em pesquisa é importante, mas acreditar que elas podem transformar a realidade é uma ingenuidade idealista que já não tem mais cabimento. De nada adiantam os congressos, os seminários, os periódicos ou as publicações internacionais se não houver uma luta contra os poderes instituídos e pela plena autonomia dos corpos. É fácil constatar que aqueles que detém o poder – seja de uma nação ou sobre pessoas – jamais o entregarão sem luta, mesmo que existam provas de que estes poderes são usados de forma abusiva, inadequada ou até criminosa. Portanto, é necessário inaugurar uma nova fase, de lutas concretas pela ocupação de espaços, sem pedir licença, sem aceitar concessões menores, mas para que seja garantido às mulheres a plenitude de seus direitos em nome das escolhas que ela fizer no nascimento dos seus filhos.
O tempo da ilusão e da “pax obstétrica” deve chegar ao fim. É preciso exigir que o nascimento humano seja regido pela ciência, de forma multidisciplinar e através das evidências científicas, mas isso só vai ser possível através do combate pela boa causa, a causa da liberdade.
Ainda repercutem as manifestações do Secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Sr. Raphael Câmara, ao anunciar a nova caderneta da gestante. Com a truculência habitual, o representante da pasta apresentou uma série de retrocessos que servem mais para reforçar o poder da medicina e barrar os avanços no sentido de uma maior autonomia das mulheres, o protagonismo delas sobre os partos e também para impedir o crescimento de visões alternativas sobre o nascimento, em especial o trabalho oferecido pelas parteiras profissionais – enfermeiras obstetras e obstetrizes.
A figura do médico Raphael Câmara serve também para criar uma ponte entre os interesses da categoria e o bolsonarismo, já que o referido profissional milita nas duas causas. Não é de hoje que ele é um crítico feroz da atenção ao parto oferecido pelas enfermeiras obstetras, contrário ao programa Mais Médicos, avesso às propostas da humanização do nascimento e à Rede Cegonha. Da mesma forma faz parte do seu arsenal de ataques o enfrentamento ao uso do termo “violência obstétrica”.
Entre as defesas de procedimentos médicos que fez quando do lançamento da nova caderneta ele falou com especial ênfase da manobra de Kristeller e da episiotomia, para ambas guardando o seguinte comentário: “É importante eu, como obstetra, falar que dependendo da situação e, eu concordo, em casos excepcionais, eles podem e devem ser feitos, e quem define isso é o médico. Não são leigos, não são militantes”. É interessante – e de extrema gravidade – que estas afirmações sejam expressas ao se referir a duas intervenções proscritas pela boa medicina. Em outras palavras, para o Sr Raphael, as evidências científicas sucumbem diante do valor ilimitado do poder médico sobre o corpo das mulheres, que não pode ser desafiado por nenhum poder externo à Medicina – como as pesquisas e metanálises realizadas sobre o tema.
A manobra de Kristeller é basicamente a pressão sobre o fundo do útero (vide foto acima), realizada para apressar o parto. É uma manobra cheia de riscos, entre eles fraturas de costelas, rupturas de fígado, baço, útero e que podem até levar à morte. É proibida pelo conselho de enfermagem, mas ainda é frequentemente utilizada nos hospitais brasileiros, muitas vezes causada pela inabilidade ou impaciência dos médicos em aguardar o momento mais adequado do nascimento.
Já a episiotomia é uma cirurgia que corta o períneo com um bisturi ou uma tesoura para alargar a pele e os tecidos subcutâneos da vagina, visando alargar e “facilitar” a passagem do bebê. É chamada popularmente de “pique”, e foi disseminada nos Estados Unidos nos anos 20 do século passado pelo obstetra Joseph De Lee, que também foi o propagador do “fórceps profilático”, ambas as intervenções baseadas em sua visão particular do parto como patologia. Segundo De Lee, “os partos são eventos decididamente patológicos, semelhantes a cair por sobre um ancinho”. Os trabalhos definitivos que mostram a inutilidade desta cirurgia usada como rotina obstétrica e os riscos relacionados a ela tem quase 40 anos de idade, mas no Brasil elas ainda ocorrem em quase 60% dos partos.
A episiotomia tem uma representatividade simbólica para a obstetrícia – desde sua origem – que ultrapassa seus efeitos clínicos. Ela é a cirurgia da onipotência, do poder fálico do escalpelo, a assinatura médica no corpo da mulher, a tomada de posse, a marcação do nome do autor na obra, mostrando quem realmente a produziu. Não é à toa que os médicos dizem que “fizeram” os partos de suas pacientes.
Foto – UOL Notícias
Sem entender as motivações inconscientes que nos levam a cortar o corpo de uma mulher no nascimento de seus filhos, nenhum estudo terá significado, pois enxergará apenas aquilo que a luz da pesquisa ilumina, deixando a chave dessa invasão ainda para ser descoberta, pois que se esconde na parte obscura da cena.
As episiotomias se mantém vivas na prática médica porque sua entrada na rotina dos nascimentos não se deu por questões racionais ou através de pesquisas científicas; em verdade ela teve seu início triunfante na rotina dos médicos por se adaptar às necessidades da obstetrícia nascente que via na aplicação dessa cirurgia a possibilidade de afastar as enfermeiras – suas concorrentes no cenário do parto – valorizando uma habilidade que apenas a eles era permitida exercer. Para isso era necessário apostar na ideologia da defectividade essencial das mulheres e do seu mecanismo de parto como a justificativa perfeita para que os cirurgiões pudessem usar sua arte para consertar e dar funcionalidade aos corpos equivocados, mal feitos, disfuncionais e essencialmente perigosos das mulheres. No Brasil a profissão das parteiras profissionais foi quase extinta, assim como nos Estados Unidos, e foi somente durante os movimentos de contracultura dos anos 60 que a atuação das parteiras conseguiu uma maior visibilidade para, a partir de então, iniciar seu lento renascimento.
Foto – Pragmatismo Político
O paradoxo entre as pesquisas mostrando a inutilidade no uso rotineiro dessa cirurgia (há mais de três décadas) e sua sobrevivência no imaginário e na prática obstétrica contemporânea só pode ser entendido se levarmos em conta as motivações poderosas – conscientes e inconscientes – que controlam a prática médica, assim como a percepção que a cultura tem das mulheres e seus corpos.
Foto Revista Época
A criação da RAMI – Rede de Atenção Materna e Infantil – se configura como um retrocesso brutal na proposta da assistência às mães e seus bebês, pois substitui uma das mais bem sucedidas iniciativas dos governos petistas por esta versão de ideologia autoritária aplicada à medicina, uma política pública que foi duramente criticada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde, pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e por organizações feministas. É uma manobra para resgatar o poder dos médicos, que se sentiram traídos pelos governos populares. Foi da categoria médica – representante da pequena burguesia nacional – de onde partiram alguns dos mais violentos ataques contra o governo Dilma, em especial quando do lançamento do programa “Mais Médicos”.
Para garantir uma assistência ao parto de qualidade, alicerçada em seus pontos mais expressivos, quais sejam a garantia do protagonismo à mulher, a visão interdisciplinar e a assistência baseada em evidências será necessário que os próximos governos revertam as iniciativas autoritárias e violentas que agora estão sendo implementadas, trazendo novamente para o debate os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e o entendimento da violência obstétrica como um mal que precisa ser combatido com vigor.
Escrevi um texto sobre a humanização do nascimento (seguido de uma resposta complementar) em que eu criticava o abuso de cesarianas no nosso meio, além de reconhecer a importância dos paradigmas e as ideologias que comandam o pensamento no que diz respeito ao parto e à própria medicina. Muitas pessoas criticaram abertamente o texto, sendo que em uma destas críticas um médico dizia que havia uma “criminalização das cesarianas” por parte de “identitários do parto humanizado”.
Bem, não há porque se surpreender com este tipo de crítica, até porque a cesariana – recurso tecnológico em substituição aos processos fisiológicos do nascimento – por estar sob o controle dos médicos e do sistema hospitalar pareceria – à visão desarmada – ser a forma mais segura e menos danosa de parir. O entusiasmo inicial com esta cirurgia, capaz de salvar vidas quando a fisiologia do nascimento dá lugar aos caminhos espinhosos da patologia, acabaria produzindo sua disseminação mundial muito rápida. No início dos anos 80 a taxa de cesarianas no Brasil era de 24% e no início da 3a década deste século já temos mais do que o dobro: mais de 60% do bebês do Brasil nascem através de uma cesariana, sendo que na classe média – no setor privado e nas “medicinas de grupo” (Unimeds, Amil, Sulamérica, etc.) – a taxa de cesarianas se aproxima de 90% de todos os nascimentos. A forma mais “normal” de nascer no Brasil é através de uma cirurgia abdominal de grande porte, carregada de custos e riscos associados. Por esta razão pensadores do mundo inteiro, e também do Brasil, começaram a questionar sobre qual o real sentido da suprema artificialização do processo de nascimento e quais as consequências dessa perspectiva para a própria humanidade.
Entre as críticas à minha matéria algumas foram formuladas por pessoas pelas quais tenho profunda admiração por sua postura política e como pensadores com abrangência em várias áreas do conhecimento. Em verdade, a principal crítica foi pela dificuldade em aceitar um termo utilizado na matéria, quando falei que para entender o novo paradigma de atenção ao parto era necessário “descolonizar mentes“. Essa expressão foi alvo de críticas, pois dava a entender que se tratava de uma postura idealista.
Ora, eu não cobraria de ninguém que viesse a entender as engrenagens da assistência médica ao parto, algo que refleti durante 40 anos, mas me parece um equívoco acreditar que para combater o idealismo é necessário afirmar que “as ideias de nada valem”. O idealismo parte do pressuposto de que o mundo não pode ser compreendido e que os sentidos humanos deturpam a análise das coisas exteriores. Ora, as ideias movem o mundo e o mundo como podemos enxergar é constituído por elas. Quando se diz que a “mudança das ideias não modifica nada” é um erro. As ideias impulsionam as ações. Enquanto solitárias elas serão estéreis e infrutíferas, mas sem as ideias as ações são caóticas e incapazes de produzir transformação. Além disso, a proposta de que o problema da violência no parto seria solucionado com a simples suplantação do capitalismo não passa de uma ilusão. Um exemplo fácil é a constatação da brutalidade da assistência aos partos na União Soviética, baseada na atenção médica, intervencionista, tecnocrática e mecanicista do parto.
Os dilemas e as concepções sobre o corpo e seus limites não poderiam se esgotar somente pela queda do capitalismo, e os relatos dos partos e dos protocolos utilizados na Rússia soviética não deixam dúvida sobre sua violência estrutural que extrapola os aspectos relacionados ao capitalismo. Seria necessário acreditar que o sistema econômico tivesse o poder de moldar relações de opressão que são anteriores ao próprio capitalismo. O parto já era brutal muito antes do capitalismo se estabelecer, tornado assim por forças culturais de outra natureza. O controle do corpo e da sexualidade das mulheres, surgido com o modelo patriarcal, não pode ser negado se quisermos entender a dinâmica da violência obstétrica. Uma pesquisa rápida sobre as modalidades de assistência ao parto no mundo inteiro – e seus graus variados de violência, inobstante o sistema econômico vigente – pode nos mostrar que precisamos de novas perspectivas, além da suplantação do horror capitalista, para resolver estas questões.
Portanto a “descolonização das mentes” é essencial para que a AÇÃO possa ocorrer, até porque a assistência ao parto no Brasil é uma cópia mal acabada – e mais pobre – do modelo capitalista americano de assistência ao parto que historicamente produz maus resultados. O “extermínio” das parteiras se iniciou nos Estados Unidos no início do século XX, e se estendeu para os países do terceiro mundo – mas não para o consolidado e milenar paradigma europeu de assistência centrada na figura da parteira profissional. Por esta razão é que nossa ação, enquanto ativistas, deve ser lutar junto com as mulheres (em especial) para que abandonemos um sistema ruim, como o americano, para adotar o sistema europeu – igualmente capitalista!!! – centrado na figura da parteira profissional, que apresenta os melhores resultados que a experiência humana já conquistou.
Percebam: tratam-se de dois modelos inseridos em sociedades capitalistas e com resultados absolutamente díspares. Dois paradigmas de atenção conflitantes, divergentes e que competem pela hegemonia da assistência mesmo que compartilhando – em essência – o mesmo modelo econômico.
Assim, a ideia de “descolonizar as mentes” se ampara na proposta de escolher entre os modelos existentes (o modelo tecnocrático, de matriz americana, e o modelo humanista, de matriz europeia), e não é “idealista”, pois reconhece a realidade material dos fatos – a assistência violenta oferecida às mulheres – ao mesmo tempo em que afirma que uma compreensão mais abrangente dos fenômenos é essencial para que as ações possam ser direcionadas e produzir seus efeitos. Não devemos esquecer que o próprio Marx asseverava que “Uma ideia torna-se uma força material quando ganha as massas organizadas”.
Não há dúvida que o fim do capitalismo diminuiria muitas idiossincrasias da atenção médica, mas esta mudança não seria capaz – por si só – de mudar muitos dos conceitos equivocados sobre o que seja a assistência à saúde, qual o sentido da cura e qual o propósito último de um tratamento de saúde. Essas transformações só podem brotar do conflito de ideias, do choque de concepções e novas percepções de realidade. Somente depois que estes paradigmas entrarem em choque, e que a falência dos modelos anteriores produzir uma crise, é que partiremos para a ação e a mobilização políticas, para que assim seja viável a transformação.
Não há dúvida, então, de que entre estes conceitos que precisam ser transformados estão aqueles referentes à assistência médica contemporânea ao parto, uma ideia baseada num sistema de poderes que vai muito além da visão capitalista. A assistência tecnocrática contemporânea parte do conceito de que o acréscimo de tecnologia e intervenções sobre o processo de nascimento poderia mudar para melhor os resultados – uma proposta que se mostrou um fracasso, pois que a objetualização das mulheres pela mecanização do parto produz efeitos deletérios ao negar-se a reconhecer as necessidades psíquicas, físicas, sociais, e espirituais das mulheres durante o nascimento de seus filhos. Como diria a antropóloga Wenda Trevathan, em “Evolutionary Medicine”:
“(…) as raízes do suporte emocional e social às mulheres durante o trabalho de parto são tão antigas quanto a própria humanidade, e a crescente insatisfação com o modo como conduzimos o nascimento humano em muitos países industrializados está baseada na falha do sistema médico em reconhecer e trabalhar com as necessidades afetivas relacionadas com este evento”
Berçário em hospital chinês
Ou seja: o sistema médico é contaminado por uma ideologia que enxerga os pacientes de forma objetualizada e, por isso, as parturientes são frequentemente alienadas das decisões sobre seus próprios corpos. Se essa visão objetual sobre o outro pode produzir alguns benefícios para o exercício da profissão (em especial a proteção psíquica dos cuidadores) ela esteriliza e dessensibiliza as relações entre médicos e pacientes. O parto, por não ser uma intervenção médica, tem essa clara particularidade, pois ao contrário da exérese de um tumor – algo que o médico faz – o parto é algo que a paciente faz, e a expropriação do processo com a consequente alienação das mulheres só poderia ter, em longo prazo, consequências deletérias.
Durante décadas eu apoiei a visão reformista e revisionista da obstetrícia. Acreditei que a informação dos médicos e sua educação para as vantagens do modelo humanístico de atenção ao parto poderia fazer que ocorresse uma “modificação por dentro” do sistema. Fui levado a crer que o problema das práticas defasadas era a ausência de uma adequada orientação aos profissionais. Todavia, foi apenas depois de experiências frustrantes que eu me dei conta que esta é uma estratégia fracassada. Não existe nenhuma maneira de fazer médicos trabalharem contra suas próprias vontades e inclinações, contrapondo-se à própria lógica intervencionista e tecnocrática da medicina. A única solução é encarar a assistência ao parto como um campo de batalha em que poderes competem para o controle dos corpos e da reprodução, muitas vezes alienando as próprias mulheres dos processos decisórios. É para a luta que devemos estar preparados, e não para a inútil tentativa de convencer médicos a contrariar seus próprios interesses.
Trabalhei como obstetra durante 35 anos e durante todo esse tempo fui ativista e trabalhei em projetos de humanização do nascimento, tanto institucionalmente quanto na minha prática pessoal. O Brasil tem uma importância muito grande no cenário do parto humanizado, e nossas instituições são reconhecidas aqui e no exterior, em especial a ReHuNa – Rede pela Humanização do Parto e Nascimento. Durante os mais de 20 anos em que militei nas organizações de suporte ao Parto Humanizado eu percebi em muitas destas instituições uma vinculação forte com o identitarismo – o que fez com que eu me afastasse de algumas delas por sua conexão com a Fundação Gates, Fundação Ford e a Open Society. Entretanto, minha posição contra o identitarismo e estas instituições nunca me afastou da luta pelos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e seus filhos, e isso ocorre porque estas lutas não precisam ocorrer em nome de um “corporativismo de gênero”, mas pela via da ética e do humanismo, elementos que estruturam estas lutas que afetam o conjunto da sociedade.
É meu convencimento que o parto humanizado não deve ser defendido em nome da “mulher” tão somente, mas em nome da sociedade como um todo, de cada um nós, e pela proteção da integridade física e emocional de todos que dele participam. O mesmo se pode dizer do racismo, cujo combate não se restringe a beneficiar as comunidades negras, mas a todos que participam dessa sociedade, pela união da classe trabalhadora em torno do que existe de humano em cada um, acima das barreiras raciais.
Um exemplo disso é a minha própria entrada nesta seara da humanização, que ocorreu na condição de pai, há 4 décadas, pelo direito dos companheiros de participarem da gestação e do parto. Já naquela época eu intuía que esta singela atitude poderia melhorar e fortalecer os laços de paternidade, e todos hoje em dia reconhecem a importância de uma sociedade com país responsáveis e presentes. Diante da minha firma convicção na importância da defesa dos direitos reprodutivos e sexuais e o parto no modelo humanizado, a minha proposta é simples:
É evidente que a violência contra as mulheres é tão mais perigosa e insidiosa quanto mais dissimulada e inaparente. A violência doméstica – com agressões físicas e morais, chegando mesmo à morte – é evidente e escandalosa, e precisa uma especial atenção, e não pode haver dúvidas sobre isso. Entretanto, a violência institucional cometida contra as mulheres na hora de parir é normalmente invisível aos olhos desarmados, e por isso se mantém silenciosa e pervasiva, sem que receba a devida contraposição à sua manutenção e disseminação pela cultura burguesa.
Por esta razão é importante que a violência obstétrica seja nomeada dessa forma, e que seja tratada pelo que é: uma violência de gênero disfarçada de regras, protocolos e rotinas, praticadas nas mulheres muitas vezes sem seu consentimento (como episiotomias, afastamentos, manobras, cesarianas desnecessárias e outras rotinas) e violando sua integridade física e moral.
Assim como outras práticas agressivas estas violências são vendidas como ações “para a proteção da mulher”, quando na verdade servem basicamente para manter o controle sobre seus corpos. Sendo o parto “parte da vida sexual das mulheres” a ação abusiva da medicina sobre o parto é uma agressão contra sua própria sexualidade, e atua como uma forma de expropriar a participação materna sobre este evento.
A maioria dos partidos burgueses e liberais olham para a violência de gênero observando apenas a parte do iceberg que emerge para fora do oceano de abusos. Ficam focados na questão do emprego, da violência contra a mulher, da necessidade de creches e na descriminalização do aborto, o que é justo, mas não contempla a complexidade das lutas das mulheres contra os poderes estabelecidos que regulam seus corpos e sua autonomia.
Eu acredito que o os partidos marxistas deveria tomar a frente e assumir a pauta da Humanização do Nascimento com entusiasmo e destemor, pois que ela atinge de forma muito certeira o sistema de poderes que atinge o corpo das mulheres em sua liberdade, sua sexualidade e seu desejo.
Além disso, não devemos esquecer que gestantes do primeiro mundo são atendidas por um modelo de referência crescente de complexidade que é centrado na figura das parteiras profissionais (atendentes de parto com formação específica na área) e é através destas profissionais – especialistas na fisiologia do nascimento e no cuidado – que poderá haver uma revolução com a necessária radicalidade na questão do parto. Nos lugares onde este modelo é aplicado os resultados maternos e neonatais são melhores do que qualquer lugar – rico ou pobre – onde se estabeleça a atenção ao parto centrada na figura do médico. Para humanizar o nascimento é necessário descolonizar as mentalidades centradas no paradigma médico de atenção ao parto.
O movimento da humanização do nascimento não é uma pauta identitária, mesmo que tenha sido tratado dessa forma por muito tempo e ainda atraia muitas mulheres seduzidas por uma ideia de enfrentamento e separado das outras questões sociais, como o capitalismo e a luta de classes. Não, o parto humanizado diz respeito aos direitos mais básicos das mulheres, mas também da sociedade como um todo.