Arquivo do mês: julho 2022

Religiosidades

Gostaria de analisar de uma forma mais racional a relação entre a evidente “religiosidade” do povo brasileiro e suas consequências morais. Para isso trago a frase que colhi do texto de um religioso de esquerda que procurava avaliar as razões da dissonância entre essa característica e os resultados práticos na relação entre as pessoas deste país.

“O Brasil é o maior país católico do mundo, é uma das maiores nações cristãs do planeta. Somos um povo muito religioso. Todos e todas concordamos que a Fé em Deus tem uma consequência ética. Para cristãos e cristãs, a consequência ética máxima da fé em Deus é o AMOR AO PRÓXIMO.”

Acredito que a fala acima contém um “non sequitur”. Sim, é verdade que somos cristãos, mas se trata de uma formalidade e não de um compromisso com suas diretrizes morais. A ideia de que somos “religiosos” não é exata, ou pode induzir a falsas interpretações. É certo de que temos religiões e que nos dedicamos a elas. Não há dúvida de que nos vinculamos às suas igrejas e templos, mas isso não nos torna “religiosos”, e muito menos demonstra um desejo de sermos éticos ou de “amar o próximo” acima de todas as coisas. Não vou falar sequer do “oferecer a outra face”….

Religiões são, acima de tudo, formas de expressar identidade, na busca por algo que nos congrega, nos faz participar de um mesmo rebanho, de um mesmo grupo de pessoas com história, cultura, práticas e crenças semelhantes. Essa necessidade de fortalecer-se através dos iguais que existe nas religiões, nos partidos e nos times de futebol é um aspecto absolutamente indissociável da nossa condição humana. Todavia, a partir dessas vinculações aceitar que acreditamos nos valores das religiões (ou mesmo dos partidos) é um salto arriscado e não há porque incorporá-lo sem ressalvas.

Essa dissociação entre a Religião e seus postulados explica não apenas as brutais Cruzadas – massacres em nome de Cristo – mas também qualquer outra guerra onde se usa a Religião como mote (mesmo escondendo interesses econômicos ou nacionalistas). Também oferece uma explicação para as “bênçãos de pistolas”, as marchas com Cristo (que anunciam golpes contra a democracia), as igrejas milionárias, os pastores abusadores, os mercadores da fé, a intolerância com gays e com outras religiões, mas também para o fato de que os grupos menos cristãos em essência (na ética e nas propostas) sejam aqueles que mais defendem a figura de Jesus em suas múltiplas seitas evangélicas. É possível dizer que “cremos em Deus”, mas isso nada tem a ver com um compromisso ético de nossa parte e muito menos que isso nos faria “amar ao próximo”, ou “perdoar a quem nos ofende”. Não, essas crenças não nos vinculam diretamente a estas condutas.

As religiões são apenas idiomas que usamos para nos conectar com aqueles que compartilham nossa visão de mundo. São os potes que fazemos descer ao manancial da água da fé, o veio cristalino de onde brota esse sentimento aquém da racionalidade e que nos move no sentido de apreender o sentido cósmico universal. Sua conexão com a mudança de atitude do sujeito (se existe) é imperceptível ou ausente. Não há nenhuma moralidade superior no crente em relação ao ateu, pois que a conduta ética está calcada em valores surgidos muito antes de qualquer racionalidade capaz de guiar condutas.

Acreditar em Deus – ou no seu filho – não lhe torna uma pessoa melhor, mais nobre, ética ou pacífica, mas talvez ajude a esconder muitas das suas pequenas e grandes sujeiras.

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Divisionismos

Filho nunca vai ser o atraso pra quem gosta de trabalhar… mulheres guerreiras tem meu respeito.”

A legenda dessa foto na internet, escrita por um homem, foi: “Filho nunca vai ser o atraso pra quem gosta de trabalhar… mulheres guerreiras tem meu respeito”.

A resposta de uma internauta indignada foi: “Sempre tem um macho que…”

A manifestação desse sujeito é obviamente idiota, e realmente está romantizando o trabalho escravo e desumano ao qual as mulheres se submetem. Não há nada de romântico ou nobre em trazer um filho pequeno para seu trabalho por absoluta falta de suporte, seja de creches ou de licenças especiais para a maternagem. Não há dúvida que esta mulher merece todo o nosso respeito, mas não apenas isso; ela merece justiça e valorização do seu trabalho. Não é sobre o respeito que devemos debater…

Entretanto, me incomoda muito quando alguém diz que isso foi dito por um “macho”, como se a motivação para escrever esta tolice foi pelo fato de pertencer ao gênero masculino. Aliás, por acaso causaria surpresa se essa frase fosse escrita por uma mulher? Por certo que não… E por que usar a palavra “macho”? Seria “macho” uma “acusação”, um humano com uma maneira equivocada e violenta de ser no mundo? Pois na minha perspectiva essa legenda não foi escrita porque seu autor é homem, mas porque foi a expressão de alguém que se deixa seduzir pela ideia da “meritocracia subserviente”, e foi escrita pelos mesmos que aplaudem quando meninos de 10 ou 12 anos saem para trabalhar na rua para sustentar suas famílias. Chamam a estes personagens de “trabalhadores”, “heróis”, “bravos guerreiros”, e deixam de enxergar o quanto de exploração e abuso criminoso existe nestas atitudes.

Acreditam mesmo que são os homens os inimigos, aqueles que estão na origem da iniquidade? Seriam eles a causa primeira desse problema? Quando vamos entender que no momento em que essa foto foi tirada havia um homem morrendo ao cair de um andaime, sendo baleado pela polícia, morrendo no trânsito, sofrendo um acidente de trabalho, mergulhando a 100 metros de profundidade para consertar um cano ou subindo a 200 metros de altura para ajustar um cabo de alta tensão? Alguns mergulham no esgoto, outros carregam o seu lixo nas ruas, sem falar nas guerras onde 99% dos mortos são homens ou nos suicídios em que 80% são cometidos por homens jovens. Esse tipo de ideia – de que o sofrimento das mulheres é causado pelos homens – é tolo, sem base, sem sentido e divisionista. Da mesma forma o sofrimento desses homens não pode recair sobre as mulheres, tão vitimadas quanto eles por um modelo cruel.

Esse desequilíbrio, essa dor, essa injustiça são causados por um sistema injusto que atinge a todos e se chama capitalismo, um modelo social perverso que divide as sociedades em classes, onde quem determina é o capital e não o sexo, o talento, a competência, a orientação sexual ou a capacidade. Culpar os homens – como se o fato de ser homem fosse crime – é indecente e errado, tão equivocado quanto ver um miserável negro apontando o dedo para o seu vizinho branco – e tão f*dido quanto ele – chamando-o de “opressor”. Esse tipo de acusação faz os ricos, os rentistas e a elite financeira darem gargalhadas. “Enquanto eles se acusam entre si não percebem que ferramos a todos”.

O identitarismo é um movimento de direita, importado dos imperialistas do partido democrata americano, cujo grande objetivo é dividir as sociedades em grupos de identidade, fazendo-os cegos à realidade das classes. Apostar nessa perspectiva de mundo é aceitar a dominação e a divisão e permitir que a subserviência ao imperialismo e ao capital sejam determinantes imutáveis.

A imagem mostra uma vitima das sociedade de classes, e não dos homens. Os homens são igualmente vítimas desse modelo e ficar debatendo quem é “mais vítima” é inútil quando temos uma tarefa muito mais nobre e importante pela frente: o fim do capitalismo e de toda a ideia de castas na sociedade.

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Mães

Certa vez uma senhora, paciente de muitos anos, trouxe a sua filha adolescente para consultar comigo, mas pediu para entrar primeiro e dizer “umas palavrinhas” antes da consulta da garota. Ela então disse que achava que o namoro da filha com um rapaz da escola estava ficando muito “quente” e que seria bom ela tomar anticoncepcionais antes de ter relações, para evitar alguma “tragédia”.

O senhor sabe como é na idade dela…. eles são tão novinhos.

Perguntei se a filha já estava tendo relações ao que a mãe falou: “Não, ainda não. Se ela estivesse tendo eu saberia. Confio na minha filha; ela conta tudo para mim. Somos grandes amigas”.

Fiquei em silêncio e avisei a secretária para deixar a menina entrar e solicitei que a mãe aguardasse na recepção. A mãe saiu e quando cruzou com a filha no hall que leva à recepção porta elas se abraçaram afetuosamente.

A menina entrou e sorriu. Perguntei a ela se achava que deveria se preocupar com anticoncepção e ela respondeu afirmativamente. Questionei se ela já estava tendo relações sexuais ou era um plano para o futuro. Ela respondeu sem titubear:

– Ahh, não doutor. Tenho relações há dois anos, mas agora estou namorando firme. Mas, é claro, a minha mãe não sabe dessa história toda.

Deixou cair sobre o rosto um sorriso maroto. Eu, cá com meus botões, pensei “Jesus seja louvado”.

Quer saber o que me deixava em pânico no consultório? Quando uma mulher madura, mãe de adolescente, me dizia: “Não tenho segredos com a minha filha. Ela me conta tudo; sou sua melhor amiga. Nunca houve mentiras entre nós”.

Eu, silenciosamente, pensava: “Como você permitiu que sua filha perdesse a preciosidade de uma mãe para ganhar a banalidade de uma amiga??” Como diria o sujeito aquele que foi buscar duas garrafas de Coca Cola na geladeira, “mãe só tem uma”, já os amigos a gente cria, se desfaz, reconquista, troca, esquece ou mantém com fervor. São instâncias de afeto completamente distintas, com pesos diferentes na constituição sujeito.

Assisti faz tempo a uma famosa entrevista onde uma repórter pergunta para Madonna, no auge de sua fama, se haveria alguma coisa pela qual ela trocaria todo o dinheiro e reconhecimento que havia alcançado nos últimos anos. Sem trocar o sorriso do rosto a cantora exclamou, sem titubear: “Uma mãe”. Madonna perdeu sua mãe muito cedo vítima de um câncer.

Mas, para além disso, como exigir que uma adolescente tenha seus segredos, paixões, desejos e fantasias expostos ao julgamento da mãe? E, pior ainda, como expor os jovens aos dramas e às dificuldades da vida adulta, em especial os dilemas da vida sexual e amorosa dos pais? Poucas coisas são mais cruéis do que essa promiscuidade afetiva. A “amizade” entre mãe e filha me parece sempre um sintoma materno produzido pelas dificuldades de ver os filhos indo embora. A amizade lhes ofereceria uma ilusória proteção diante dos seus dramas pessoais; agarram-se aos filhos abrindo mão até da maternidade, pelo amparo de que tanto necessitam.

Lembro bem do orgulho que senti quando, caminhando pela rua com meus filhos pré-adolescentes, eu lhes disse: “Sentiram esse cheiro? Isso é maconha”. Eles se entreolharam e deram gargalhadas, deixando-me com cara de bobo, por imaginar que estivesse lhes contando uma novidade. Ali percebi que havia para eles um universo que era para mim interditado, próprio, privado e que eles jamais haviam me contado. Ao lado da tristeza de perdê-los tive o vislumbre de que a vida madura se expressa por esses “fracassos”, distanciamentos que se impõem, permitindo assim que as subjetividades prevaleçam.

Há muitos anos eu estava de plantão no hospital quando chegou uma senhora carregando um bebê e gritando desesperadamente pelos corredores. Ajudei a colocar a criança sobre uma cama e me surpreendi com o fato de que não era um bebê, mas um jovem de 19 anos (soube depois) com o tamanho de um bebê e com o corpo totalmente atrofiado por uma doença congênita. O jovem sucumbiu por uma pneumonia devastadora em minutos e tivemos apenas tempo de vê-lo expirar diante de nós; nenhuma ação teve efeito diante do quadro gravíssimo no qual chegou. Depois de comunicado o óbito, a mãe entrou em desespero e passou a atacar a equipe do hospital, sendo contida pelo marido que pedia que se acalmasse.

Passados alguns minutos, e mais tranquila, ela se desculpou e veio me dizer que aquele filho significava tudo na sua vida, toda sua atenção e devoção desde que nasceu. Ele demandava cuidados diários intensivos e até estafantes para ela. “Ele inclusive dormia comigo na cama, ao meu lado”, disse ela.

Naquele exato momento me dei conta das razões recônditas do desespero, que extrapolavam em muito a perda de um filho querido. Sem seu filho amado a lhe servir de escudo, como enfrentar agora os dilemas de sua vida afetiva e seu envelhecimento inexorável? Como encarar a vida a dois sem seu “bebê” a lhe garantir o amparo afetivo? Sem sua presença, como enfrentar as demandas que, por certo, haveriam de ocorrer?

A maternidade, pelo seu poder e seu significado na perspectiva da espécie humana, tem o poder mítico de produzir tanto as luzes mais fulgurantes quanto as trevas mais obscuras.

https://youtu.be/Zoi9lqmZjGk

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Amor

Entenda meu lindinho, o amor é traiçoeiro. Ele deixa o feio bonito, o mau se transforma em bom e o horrendo remediado. Nunca permita, minha doçura, que ele lhe engane. Entretanto, não crie ilusões de que seu corpo e sua alma serão infensos aos seus efeitos devastadores”, disse minha mãe.

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Parto natural

Há mais de 20 anos eu aboli a expressão “parto natural” quando percebi que ela se referia a uma fantasia nostálgica de um paraíso perdido. Não há nada de natural no parto; tudo é construção da linguagem; tudo é elaboração simbólica. Chamar de”mãezinha”, abusar dos diminutivos e fazer tricotomia são formas de infantilizar as gestantes, transformando-as em crianças, obediente e manipuláveis. Existem, portanto, formas sutis e poderosas de controlar as gestantes, travestindo ações violentas em sua essência como se fossem plenas de cuidado e carinho. São armadilhas perigosas, tão poderosas quanto invisíveis e, por isso mesmo, precisam ser combatidas.

Margareth Woolington, “Freedom as a Mirage”, Ed. Cypress Hill, pág 135

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Separações

Uma separação é sempre a morte de um sonho. Pode ser um amargo despertar ou o amanhecer radiante para o resto de sua vida. Todavia, não há como evitar o gosto ruim que sobe à boca ao abrir os olhos e ver que aquele projeto tão acalentado se foi.

Milton Frietzmann, “Memórias de uma aurora que está para chegar”, Ed Barracuda, pag. 135

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Gênios e Médicos

Um portal de notícias do Brasil publicou há alguns dias que um garoto superdotado de 14 anos havia passado nos vestibulares para medicina e também para aeronáutica. O texto da matéria estava centrado nas capacidades especiais do menino, que tão cedo em sua vida já tinha sua capacidade fora do comum comprovada pelas aprovações em cursos de difícil acesso. Eu todavia, olhei para outra perspectiva do caso. Escrevi abaixo da notícia que esperava que sua escolha de curso fosse direcionada para a aeronáutica. Expliquei que sua “genialidade” se aplicava muito mais às ciências exatas, e muito menos às demandas múltiplas e complexas que produzem um bom médico.

O meu ponto de argumentação é que a medicina não precisa de gênios; ela precisa de sujeitos dedicados e compassivos. A medicina necessita pessoas capazes de produzir – ou estimular e manter – a saúde através de um talento muito especial, que dificilmente pode ser medido por provas ou testes de QI.

Um gênio atuando na Medicina tende a reproduzir um “Dr. House”, tão genial quanto péssimo médico; cruel, desrespeitoso, insensível e desumano…. porém, com diagnósticos brilhantes. Todavia, a medicina não é a arte de “descobrir mistérios”, “tatuar diagnósticos” na testa dos pacientes ou “estabelecer prognósticos” baseados em estatísticas frias. Não, a medicina é “L’art de guérir”, “Ars Curandi”, a arte de curar. A medicina é uma prática complexa que demanda inúmeros talentos e que faz uso das outras ciências – como a bioquímica, a biologia, a anatomia, a fisiologia, a patologia, etc – para se expressar.

Da mesma forma que um pintor se utiliza de técnicas e até de seus conhecimentos de química para a elaboração das tintas, a sua ação é artística por excelência por congregar uma série de talentos e habilidades e, acima de tudo, uma específica percepção da realidade que se expressa através de suas obras.

Também os médicos precisam congregar seus conhecimentos sobre o corpo e seu funcionamento com a capacidade de captar os sinais de desequilíbrio que são manifestos nos limites da sutileza. Talvez, usando o raciocínio de Lacan, a maior virtude de um médico seja a idade, visto que só com o tempo e a experiência é possível afinar essa sensibilidade e apreender os signos necessários para a compreensão holística do sujeito.

Quando todas as tecnologias forem usadas e todas as máquinas calcularem sua saúde e seus riscos, ainda assim desejaremos que a receita nos seja entregue por alguém tão humano quanto nós, capaz de entender o sofrimento alheio olhando no fundo dos olhos de quem lhe procura. Somente o conhecimento da nossa própria finitude pode nos oferecer a entendimento da morte que se acerca dos outros. Desta forma, a medicina não é para os gênios que gabaritam provas ou que se alfabetizam aos três anos de idade. Medicina é ofício artístico, é dedicação, é a capacidade de sentir em si a dor do outro que sofre; é oferecer a mão a quem precisa de uma esperança. A medicina pressupõe a empatia como elemento essencial. Ela não se adapta às exatidões, mas essa é exatamente a sua tarefa mais sublime: cuidar do sujeito como ser único e especial.

Para os gênios sobra a especial tarefa de trabalhar na pesquisa, na compreensão última do que nos adoece e nas formas de intervir nas doenças. Estes serão sempre um ótimo suporte para os médicos, aqueles que, na ponta da atenção, amparam os enfermos e aqueles que sentem as dores no corpo e na alma.

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Relativismos

Charge de Larte Coutinho

E o que dizer quando falam que o STF abusou de filigranas e ritos processuais para “forjar” a anulação das condenações de Lula???? Esta turma que agora, oportunisticamente, reclama do STF é a mesma que há poucos anos aplaudia a inação da Suprema Corte quando a bandalheira do “impeachment” rolava solta. É a mesma que aplaudiu o impedimento de Lula assumir como ministro por uma canetada obscena de Gilmar Mendes. Foi a mesma que achou justo impedir que Lula concorresse, mesmo estando preso, e a mesma que soltou foguetes quando Lula foi trancafiado em uma masmorra sem trâmite em julgado. Essa turma de “justiceiros” precisa se definir!!! Afinal, os ritos do processo judicial valem ou não?? Quando forjaram a posse de um apartamento e apressaram os ritos – pulando na frente de 256 processos no TRF4 – aí os ritos do judiciário valiam e estavam corretos para serem usados explicitamente para atingir um “inimigo”. Quando foram mostradas as provas de que o triplex não poderia ser dado pela construtora porque também não era dela (estava alienado à Caixa Federal) aí são apenas detalhes técnicos.

Quando Lula teve suas sentenças anuladas porque foi julgado por um juiz ladrão em conluio criminoso com a promotoria, aí se trata de tecnicismo, “forjando” uma absolvição. É verdade que não foi apenas Moro o juiz corrompido; há também que se responsabilizar os juízes venais do TRF4. Para esses magistrados que romperam com a legalidade – e que igualmente são incapazes de dizer qual o crime cometido por Lula – não deve haver perdão algum. Agiram da forma mais criminosa e premeditada possível. Crápulas. Entretanto, quando ministros do supremo se escandalizam com a ladroagem aberta, descarada, inacreditável e vergonhosa do judiciário – com fartas provas materiais – aí o judiciário erra e usa elementos “meramente formais”

Quando mantém Lula preso por mais de 500 dias, ferindo o artigo 5o da Constituição, apenas para que não pudesse concorrer à eleição – sem provas e por “atos de ofício indeterminados”(!!!) – o judiciário acerta. Porém, quando é libertado por uma TONELADA de evidências de inocência, aí o judiciário está sendo fraco e “meramente técnico.”.

Quando se afirma que a família do presidente manda eliminar uma parlamentar de oposição, que poderia competir pelo Senado com o filho do presidente, aí torna-se necessário comprovar, o que me parece muito justo. Não basta o bandido ter chamado por ele, em sua própria casa, horas antes do crime. Também não basta todo mundo ter visto que a facada que levou o presidente ao hospital é altamente suspeita, é preciso provar. Entretanto, para acusar Lula as provas são desnecessárias, bastam as convicções. Para chamar Lula de ladrão basta a sua impressão, sua vontade, sem evidências, pois para ele e os partidos de esquerda as provas se tornam apenas ……

…. meros tecnicismos.

Existe um lado violento nessa história sim. Produzir uma falsa dicotomia é absurdo. Por acaso os dois lados “nazistas e judeus” eram agressores? “Sionistas e Palestinos” são ambos violentos e produzem massacres? Essa é uma forma fácil de passar pano para a opressão, tentar tapar o sol com a peneira do relativismo. Não há como aceitar que o bolsonarismo, que surgiu sob o signo da violência e da eliminação simples dos adversários, possa ser igualado aos governos de esquerda que jamais tentaram dividir o país entre uma parte que representa o “bem” e a outra o “mal”. Só os fascistas agem assim, só eles acham que a solução do conflito está em matar, “fuzilar a petralhada” ou a simples destruição dos adversários.

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Desilusões

Quem, afinal, não está “desencantado” com o horror da vida real?

Creio que o problema que muitos de nós temos com os Movimentos de Humanização ocorre pela ilusão que se cria sobre esse movimento. Profissionais são atacados de forma absolutamente cruel, e fica evidente o quanto as teses que sustentam esse movimento incomodam os representantes da corporação médica. Marsden Wagner, pediatra e epidemiologista americano que dividia seu trabalho entre os Estados Unidos e a Dinamarca, por muito tempo colecionou histórias de médicos perseguidos pelo sistema e pela corporação (tal como ele foi) para organizar um livro que se chamaria “The Vigilante Doctor”. Infelizmente sua morte em 2014 o impediu de lançar este livro onde pretendia mostrar que existe um padrão nestas perseguições, o qual precisa ser entendido para que os médicos dissidentes possam se proteger.

Basicamente, estes ataques não ocorrem porque um profissional cometeu erros, por ter insucessos clínicos ou mesmo na ocorrência de uma negligência grave; muito menos porque suas ações não possuem embasamento em evidências. Fosse assim e os médicos brasileiros com taxas absurdas e indecentes de cesarianas seriam atacados pelos seus Conselhos Profissionais, mas o que ocorre na realidade é que são até protegidos. Quando analisamos os casos que acontecem no mundo inteiro fica claro que o afastamento das evidências científicas não é determinante para a sanha punitiva da corporação e, na visão de Marsden Wagner, o que conta mesmo para a perseguição é o quanto as ideias e a prática destes profissionais desafiam os valores e os poderes da corporação, em especial a ameaça à dominação de determinados setores da atenção médica.

No parto não poderia ser diferente, pois a ação da obstetrícia ocorre em um ponto de choque evidente, um terreno extremamente acidentado. Uma história de milênios de cuidados oferecidos por parteiras e que subitamente foi trocado pela suprema intervenção no século XX, o que demandou a submissão completa das mulheres à ação dos profissionais médicos. Por esta razão, o parto de cócoras, parto vaginal, partos em Casa de Parto, partos domiciliares, a luta pelo protagonismo da mulher, a crítica à episiotomia e à litotomia, etc, são atacados com enorme ferocidade pelo potencial de atingir as bases de dominação da medicina sobre o evento do parto. Nestes casos, as evidências científicas são pouco ou quase nada úteis, pois a inequívoca subjetividade nas avaliações torna fácil esconder erros em cesarianas ao mesmo tempo em que é simples criá-los do nada em partos vaginais ou fora do contexto hospitalar.

Outro conselho importante de Marsden Wagner: para ele é sempre fundamental tomar cuidado com os “médicos “liberais”, aqueles que aceitam os postulados da Medicina Baseada em Evidências e que reconhecem os abusos intervencionistas da obstetrícia contemporânea, pois que estes são os mais perigosos personagens. Aqui se encontra outro ponto em que a prática médica e a política tem muito em comum. Os políticos liberais, com sua postura revisionista e conciliatória, são muitas vezes os que mais atrapalham as verdadeiras mudanças estruturais. Existe mais perigo nas atitudes defendidas por alguns professores – que se escondem atrás de uma posição de respeito às evidências médicas – do que um cesarista convicto. Nesse aspecto, os primeiros são mais perigosos (porque escamoteados) do que os últimos (porque evidentes).

Essa falta de sintonia entre a ciência e a prática ocorre porque esses sujeitos – por viverem em ambiente acadêmico – não conseguem mais esconder as evidências científicas sobre a adequada atenção ao parto e nascimento, mas estão fortemente presos aos velhos paradigmas por laços corporativos, construídos por décadas de camaradagem, companheirismo, dívidas afetivas e compromissos acadêmicos. Não se trata de uma questão racional/científica, mas psíquica/afetiva. Nos julgamentos de profissionais que desafiam o sistema centrado nos médicos, nas doenças e no capitalismo aparece todo o juízo pervertido que trata estes médicos como “adversários” sendo julgados pelo que são (uma ameaça ao sistema) e não por algo que tenham feito. Prevalece a justiça dos inimigos, onde acusação e juízes atuam em parceria para atacar um inimigo em comum. Enxergam os médicos da humanização como adversários a serem esmagados, porque subvertem a lógica de submissão que sempre tiveram em relação aos pacientes e às outras profissões da saúde.

Talvez o pior entrave para os nossos objetivos seja a fantasia – por muitos compartilhada – de que a humanização do parto seria estabelecida no terreno das ideias, através da confrontação de paradigmas, estudos e pesquisas, prevalecendo aquelas propostas que dessem garantias de resultados mais consistentes para a tarefa de oferecer às mulheres mais segurança e satisfação no parto dos seus filhos. Já compartilhei dessa ilusão e sei bem o sabor amargo de perder os sonhos; minha queda foi igualmente dolorida. Por outro lado, sei também a sensação de liberdade que nos toma ao perceber que os sonhos não precisam ser abandonados apenas porque o caminho para segui-los estava equivocado.

A humanização do nascimento se dará no terreno das lutas materiais, e não sob a letra insípida das ideias. A humanização vai ocorrer nas maternidades, nos postos de saúde, nos corredores de hospital, e não nos livros ou na Academia. As ideias serão sempre a carruagem a ser puxada pelo corcel das lutas reais sobre a autonomia dos corpos. As propostas de humanização do nascimento já foram pensadas como uma pedagogia, uma forma de educar mentes que não percebiam a história completa de um parto. Todavia, hoje sabemos que a simples confrontação com estas realidades produz resultados pífios ou ausentes. Com o tempo percebemos que a batalha pelo nascimento digno se dá na confrontação direta, na briga, na pressão, retirando de cena os velhos atores para garantir às mulheres a posse do seu destino.

Para sofrer a dor de uma grande desilusão foi necessário, como primeira e quase inevitável etapa, iludir-se com o poder das ideias. Só depois da queda desta fantasia será possível compreender a materialidade da luta, a conquista pelo enfrentamento, escorado-se no fato de que nenhum poder é oferecido de graça, menos ainda o poder sobre a sexualidade das mulheres.

Que seja bem vinda a desilusão. Que sirva de trampolim para as novas etapas.

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Choque de Realidades

Lembro com precisão o choque que eu tive ao ver a capa desse livro ainda na adolescência e que confrontava a história oficial que era contada na escola sem qualquer contraponto. “Fomos atacados, revidamos e vencemos a guerra. Ora, qual o dilema moral?” Mal sabia eu da história não-contada, o significado da potência imperialista da época – a Inglaterra – e o papel do líder nacionalista e anti-imperialista Solano López, governante que buscava a autonomia da América Latina. Curiosamente a história do “revide” se repetiria, quase com o mesmo roteiro, distante dali, na Terra Santa.

A mesma sensação tive quando fui ao Rio de Janeiro no festival Internacional de Cinema em 2007 (para participar de uma mesa sobre o documentário que participei chamado “Orgasmic Birth“) e tive uma breve conversa com um cineasta Libanês do Hezbolah que apresentava um documentário sobre a invasão sionista no Líbano e a luta do povo libanês para expulsar os invasores e reconquistar sua terra. Eu estava pela primeira vez vendo essa guerra pelo lado da resistência anticolonial, e a paixão da resistência árabe me impactou.

Uma outra – e definitiva – oportunidade foi quando assisti ao documentário “5 câmeras quebradas” sobre a resistência Palestina na Cisjordânia, sua luta contra o apartheid sionista e a limpeza étnica que lá ocorre. Depois disso mergulhei na questão Palestina e me tornei um defensor incansável da causa. O impacto de ver a história contada de fora da imprensa oficial me fez enxergar muito do que fora escondido por décadas. Miko Peled descreve algo semelhante quando, na entrada da vida adulta, conheceu jovens palestinos nos Estados Unidos, o que fez mudar a sua trajetória para se encontrar no Movimento por uma Palestina Livre.

É bom estar sempre preparado para encontrar-se face a face com a verdade escondida em uma esquina qualquer do mundo.

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