Vou repetir: não existe movimento de aleitamento materno sem humanização do nascimento. A falha de um afeta os resultados do outro.
Explico: quando o nascimento já foi artificializado, muitas vezes por um desejo materno ou uma suposta falha do corpo da mulher para dar conta de de uma gestação fisiológica e um parto normal, o terreno já estará preparado para que a amamentação natural ceda terreno às alternativas artificiais. Diante das dificuldades naturais de adaptação à amamentação – inseguranças, dores, feridas, cansaço, medo, falta de confiança, etc. – o caminho para a desistência e para a adoçäo de uma alimentação artificial já estará pavimentado pelas escolhas ou imposições anteriores. Desistir de oferecer o peito fica muito mais fácil quando o parto já foi gerenciado com a ideologia tecnocrática.
O “continuum da humanização” – o parto fisiológico e a amamentação livre – são o caminho natural, seguro e fisiológico para iniciar a vida. Do ponto de vista científico, não há mais dúvida quanto a isso. Todavia, a postura de defesa das alternativas mais naturais sofrerá sempre o boicote daqueles que lucram com a alienação ligada ao abuso de cesarianas e ao uso indiscriminado de mamadeiras. Aqueles que lutam pela segurança das mulheres, por uma parto transformador e pela amamentação serão o eterno alvo dos sistemas de saúde atrelados ao dinheiro e à artificialização lucrativa da vida.
Isso não significa, em hipótese alguma, que as cesarianas impedem a amamentação. Entretanto, é errado dizer que uma cirurgia desse porte e significados não produz influências negativas nos desafios seguintes, sendo o mais importante a amamentação por livre demanda. Não apenas pelas condições físicas pós operatórias, com suas dores e limitação de movimentos, mas também pelos aspectos psicológicos subliminares que enfraquecem a autoestima feminina e dificultam sua vinculação ao aleitamento materno.
As estratégias de combate à expropriação do parto não se resumem a debates estéreis e filigranas filosóficas. Existe uma materialidade evidente que emerge dos estudos e que nos oferece uma rota segura – porém mais difícil – de transformação. Por muitos anos, diante do crescimento evidente e sustentado da intervenção no processo de nascimento, ocorreu um debate sobre qual seria o futuro da obstetrícia. De um lado se situam aqueles que, entusiasmados por uma perspectiva tecnológica e movidos (mesmo sem o saber) pelo “imperativo tecnocrático” (que impulsiona as ações humanas em direção à complexidade tecnológica), acreditavam que o absoluto domínio da tecnologia sobre o ciclo gravídico-puerperal era o nosso porvir radiante. Para estes a gestação e, em especial, o parto, eram fardos demasiadamente pesados para serem carregados pelas mulheres. Liberadas destes encargos – gestar e parir – estariam livres de suas imposições fisiológicas para alçarem voos muito mais altos, conquistando espaços historicamente exclusivos para os homens. Os “casulos humanos” e as exterogestações povoam o imaginário de quem sustenta a tese de que as mulheres têm direito a esta liberdade, e que não recaia mais sobre seus ombros o peso de garantir a sobrevivência da espécie.
Do outro lado se encontram aqueles que percebem que o parto, assim como o concebemos, é constitutivo da nossa espécie. “Somos como somos porque nascemos de uma forma bizarra, particular e única”, e modificação das bases fisiológicas e afetivas do nascimento tem a potencialidade de transformar de tal maneira a nossa estrutura de sujeito que as gerações futuras em nada serão semelhantes àquelas de hoje, onde o parto ainda ocorre através do esforço e da resiliência das mulheres diante das dificuldades inerentes ao processo. Por certo que o movimento de Humanização do Nascimento no mundo inteiro foi criado diante do risco de abandonar a configuração multimilenária do parto em nome de uma aventura tecnológica, causando estragos semelhantes ao que ocorreu três décadas antes quando fizemos o mesmo projeto para a alimentação infantil, trocando a amamentação pelas mamadeiras e fórmulas artificiais. Tal processo, como bem sabemos, produziu uma tragédia incalculável para a saúde – em especial para as crianças de povos menos favorecidos economicamente. Por esta razão, muitas instituições se lançaram em projetos multicêntricos de valorização do parto normal, desde as pequenas ONGs locais de proteção ao parto normal até a OMS (Organização Mundial da Saúde). Porém, desde o princípio ficou claro que as estratégias para este combate eram duas que são, ao meu ver, inconciliáveis.
A primeira desejava uma “conciliação” com as forças hegemônicas da obstetrícia – os médicos, as instituições, os hospitais, a mídia – enquanto a outra percebia não haver possibilidade de conciliação e sequer cooperação, posto que não se trata de uma disputa ideológica, mas pelo poder, o domínio sobre os corpos grávidos. Para estes últimos, enquanto a obstetrícia for controlada por cirurgiões – com pouco ou nenhum apreço pelo parto normal e nenhuma habilidade para os desafios emocionais do processo – a taxa de cesarianas continuará alta, assim como o risco inerente a estas cirurgias para ambos, mães e bebês. Só os lucros aumentam com a intervenção, tanto para médicos quanto para as instituições hospitalares, indústria farmacêutica, indústria de equipamentos, etc. A solução para a questão da expropriação do parto não será através da academia, dos estudos e das pesquisas (importantes mas insuficientes), mas através da luta das mulheres exigindo partos com mais segurança e autonomia.
Um estudo de 2021 publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology deixa clara a existência de uma conexão entre os controladores do parto e as taxas de intervenção – como a cesariana. Existe um decréscimo sustentado de nascimentos cirúrgicos nos últimos anos concomitante com o aumento da atenção ao parto sendo realizada por enfermeiras obstetras. O gráfico acima não deixa dúvidas sobre a importância de abandonar a perspectiva conciliatória – tentando convencer os cirurgiões a não usar sua arte cirúrgica nos partos – e transformar o atendimento de forma radical, retirando dos médicos a primazia para a atenção aos partos normais. Para mudar a face do parto é essencial mudar quem exerce poder sobre ele.
O estudo de 2021 apenas demonstra o que falamos há mais de duas décadas: não existe possibilidade de mudança se continuarmos a usar o mesmo sistema fracassado. É preciso mudar pela raiz. Controlar o parto é uma questão de poder, e este deve estar nas mãos das próprias mulheres, para que possam decidir seu destino e o de seus filhos. Educar médicos para o valor e a importância do parto normal se mostrou um fracasso para o objetivo de humanizar o parto e garantir sua segurança; a forma mais eficiente de fazer esta revolução é garantir que o nascimento esteja nas mãos das especialistas na fisiologia de nascer: as parteiras profissionais – enfermeiras obstetras e obstetrizes. Sem isso continuaremos o autoengano que nos iludiu nos últimos 25 anos.
Não existirá resultado algum na busca pela diminuição das taxas obscenas de cesariana se as preocupações com o tema se mantiverem concentradas em profissionais da saúde – em especial com os médicos que controlam o parto desde a derrocada da parteria na primeira metade do século XX. A experiência de mudar a tendência de nascimentos cirúrgicos “de cima para baixo” ocorreu no Brasil e se mantém um fracasso. Já escrevi muito sobre as “Caravanas da Humanização” e o fato de que elas se assentaram sobre pressupostos idealistas, que não contemplam a materialidade das relações de poder.
É mais do que óbvio que os médicos jamais mudarão um sistema que os beneficia. A obstetrícia cirúrgica, que aliena as “pacientes” de qualquer atuação efetiva na condução de seus partos, é o ápice da transformação das mulheres em contêineres fetais, cuja abertura só compete aos profissionais da intervenção. Desta forma, os médicos jamais poderão liderar um movimento de mudança no cenário do nascimento que, em última análise, provará o erro de oferecer a esta corporação o comando do processo de parto. Quaisquer mudanças que porventura venham a ocorrer só terão sucesso se vierem das próprias mulheres, quando forem devidamente esclarecidas da expropriação do parto produzida pela tecnocracia. Enquanto as mulheres forem doces repositórios do “saber magnânimo” da obstetrícia corporativa, estarão sempre à mercê de interesses (econômicos, profissionais, legais, circunstanciais, sociais, etc.) que não são necessariamente os seus.
Há quase 30 anos eu repito que não haverá uma revolução do conhecimento, com evidências científicas e dados de morbimortalidade, capaz de produzir uma mudança de comportamento, muito menos no que concerne a um fenômeno que ocorre no corpo das mulheres – território de eternas disputas pelos significados amplos para nossa espécie. Tal transformação nunca ocorreu na história humana. Por acaso os Franceses se retiraram da Argélia porque ficou comprovado que o colonialismo é imoral e genocida? Israel vai “se dar conta” da indecência do apartheid e da limpeza étnica e discutir com os palestinos a plena democracia da Terra Santa? O imperialismo acabará pelo amor dos Estados Unidos à paz e à livre determinação dos povos?
A resposta a todas estas perguntas é um sonoro não. A única possibilidade de mudança no modelo intervencionista e alienante da obstetrícia será através da luta. Não existe possibilidade de conciliação; a Medicina tomou as rédeas do nascimento humano retirando esta função das mãos das parteiras em quase todo o mundo ocidental, e não vai entregar este domínio graciosamente. Esta retomada não se dará sem conflito, e as únicas “guerreiras” capazes de vencer a batalha do parto são as próprias mulheres, auxiliadas pelos batalhões de “combatentes auxiliares” como doulas, psicólogas, obstetras, enfermeiras, sociólogas, psicanalistas, gestoras, epidemiologistas etc. Não haverá um consenso internacional capaz de garantir o direito ao parto normal sem que haja uma disputa entre aqueles que apostam na suprema alienação dos corpos grávidos e aqueles que lutam pelas escolhas informadas e pela liberdade de parir.
Espero que alguém além de mim perceba que a luta pelo parto fisiológico não será travada nas academia, mas na arena política das lutas pela liberdade e pela autonomia.
Eu ainda acredito que o grande erro, no que diz respeito ao parto e nascimento, foi torná-lo uma especialidade médica submetida à lógica da intervenção que domina a escola de medicina. Durante mais de 20 anos eu falei publicamente da minha desilusão com a prática médica obstétrica, e isso se deu principalmente por ter saído do Brasil e visto como funciona este tipo de atenção à saúde em outros países, em especial no norte da Europa. No livro da antropóloga Robbie Davis-Floyd “Birth Models that Work” existe um capítulo dedicado ao atendimento em equipe realizado por nós aqui no Brasil, mas também inúmeras outras experiências centradas no sucesso do modelo de parteria aplicado tanto em países desenvolvidos quanto em nações em desenvolvimento. Muito do que eu percebo ainda hoje como atraso na atenção se refere ao desconhecimento pelas comunidades do parto – enfermeiras, médicos, anestesistas, administradores, etc – sobre uma forma alternativa ao modelo biomédico de atenção ao parto. Nós não conhecemos outras possibilidades e, como dizia minha amiga Debra Pascali-Bonaro, doula de New Jersey, “se você não conhece suas alternativas você não tem escolha“.
Sobre o tema de conhecer um universo distinto, eu lembro o impacto que me causou a história que Marsden Wagner – neonatologista da Califórnia e Diretor do Setor de Saúde da Mulher e da Criança da Organização Mundial da Saúde – me contou durante um congresso nos Estados Unidos. No intervalo das conferências, e tomando com ele uma xícara de chá, Marsden me explicou seu grande “turning point”, ou seu “ponto sem retorno”, que ocorreu com a confrontação de realidades absolutamente opostas sobre a questão do modelo de parteria. Vou tentar retratar aqui nossa conversa, sendo o mais fiel possível às suas palavras.
“Eu estava na Suécia almoçando na casa de uma grande amiga quando, depois de terminado o almoço, sentamos na ampla varanda para tomando um chá e trocar ideias sobre as questões da assistência global ao parto e nascimento. Naquela época eu já era contratado pela OMS para tratar da saúde materna e neonatal, vivendo em Copenhague boa parte do ano. No meio da conversa, o “bip” (os mais velhos vão lembrar) de uma das mulheres presentes tocou de forma estridente. Essa senhora era uma parteira sueca que estava sendo avisada que uma de suas pacientes estava em trabalho de parto, com fortes contrações. Imediatamente sorriu e recebeu de todos os presentes os votos de que tudo ocorresse bem para o bebê que estava por chegar. Nesse momento, a anfitriã voltou-se para mim e perguntou se não gostaria de acompanhá-la à casa da paciente, onde o parto estava programado para ocorrer.
Eu disse a minha amiga que, no meu trabalho no Hospital na Califórnia, havia atendido centenas de partos, e que mais um nascimento pouco poderia acrescentar à minha experiência sobre o tema. Curiosamente, todos os presentes sorriram, como se eu tivesse contado uma história engraçada, ou uma piada. Minha amiga então insistiu: ‘É um parto domiciliar, aposto como essa experiência você não tem‘.
Ela estava certa. Apesar de muitos anos trabalhando com neonatologia eu nunca havia assistido um parto domiciliar, até porque no meu país – os Estados Unidos – esse tipo de atendimento era considerado ultrapassado, perigoso e algo que deveria ser banido da prática profissional. Para mim, naquele momento, um parto domiciliar não era mais do que um parto como qualquer outro, apenas sem os aparatos tecnológicos que possuímos no hospital. Só mais tarde eu me referiria a estes equipamentos como “máquinas estranhas, manejadas por estranhos, fazendo estranhos ruídos”. Depois da sinalização de todos os presentes, estimulando-me a ir, e após o sorriso convidativo e simpático da parteira sueca, resolvi me levantar e acompanhá-la ao atendimento.
O que posso dizer deste parto é que ele foi um divisor de águas na minha vida profissional. A ideia de que se tratava de “um parto como qualquer outro” se mostrou a mais ridícula das concepções. Em verdade eu poderia dizer que tudo foi diferente, com exceção do produto final, o bebê. Entretanto, se analisarmos com mais profundidade, até mesmo este produto acaba se tornando diferente, porque a forma como o nascimento se desenrola vai produzir imprints no bebê, tão invisíveis quanto poderosos, que determinarão inclusive a sua saúde e condição psíquica no transcorrer da vida. Pela primeira vez eu tive a oportunidade de assistir um parto em silêncio respeitoso, penumbra, suavidade e delicadeza. Nada de luzes brilhantes, nada de pessoas estranhas – recebi o convite para ficar distante da ação e só me aproximar para receber o bebê da mãe – nada de comandos, gritos, ameaças, cortes, empurrões. O pai esteve presente o tempo todo e ajudou no nascimento; a família comemorou em plena comunhão. A parteira é um capítulo à parte neste episódio. Que talento!!! Quanta delicadeza, quando conhecimento da fisiologia do parto, quanto respeito aos desejos da mulher, quanto reconhecimento das fases do parto, não apenas no que concerne às questões mecânicas, mas igualmente aquelas relacionadas aos aspectos mais sutis, espirituais e emocionais. Tudo o que ocorreu foi tratado com naturalidade, desde as explicações sucintas, o toque, os abraços, as massagens, o carinho e a vigilância atenta e silenciosa.
O episódio todo mudou radicalmente minha percepção do fenômeno. A partir dessa experiência comecei a entender o parto pelo reverso; não aquilo que podemos fazer pelas gestantes, mas tão somente o que devemos esperar que elas façam. “Parto é algo que as mulheres fazem, Ric”. Não haveria mais como entender o parto da forma antiga, aquela que recebi da escola médica, pois ela se assenta sobre uma concepção equivocada, depreciativa e diminutiva das capacidades femininas de gestar e parir com segurança. A nós cabe, tão somente, resguardar o ambiente com segurança para que ela possa liberar seu bebê da forma mais suave e segura.“
Robbie Davis-Floyd fez entrevistas no início deste século com profissionais do nascimento, médicos e parteiras humanizados, que estavam atendendo partos à época. Todos eles contavam que sua adesão ao modelo humanístico de atenção ao parto havia sido despertada através de uma epifania, um evento marcante em suas vidas, o qual abriu as portas da consciência para a entrada de novas perspectivas. Marsden Wagner, da mesma forma, foi confrontado com uma experiência de caráter sensorial, afetiva e emocional, e por isso conseguiu entender o parto por um viés diferente do que havia aprendido e praticado até aquele momento. Por esta razão, ele se tornou durante todo o resto de sua vida um defensor árduo das parteiras profissionais e do modelo de parteria, centrado no trabalho dessas profissionais.
Infelizmente nos países satélites, girando na órbita da medicina americana, o médico é ainda o principal atendente de partos, num desperdício gigantesco de habilidades e talentos. A medicina, como bem o sabemos, funciona na lógica da intervenção, e colocar um médico, cuja formação é centrada na intervenção direta sobre o corpo, para atender partos, é um erro inaceitável. A prática de receber bebês milenarmente construída é focada na fisiologia, na normalidade e na suavidade dos fluxos e ritmos do parto e, ao contrário da visão médica, sua lógica é centrada no cuidado. “Médicos deveriam ser os heróis da maternidade”, já dizia o velho adágio das parteiras, agindo tão somente quando as condições se aproximassem perigosamente da rota da patologia, deixando que as ações da fisiologia do nascimento humano ficassem a cargo das parteiras, legítimas especialistas no cuidado das mulheres e seus bebês.
Manter os médicos a cargo da normalidade dos nascimentos é como colocar o segurança do Teatro de Revista para dançar, realizando de forma desajeitada as delicadas piruetas que as bailarinas desenvolvem em sua dança sensual e voluptuosa. As condições para o atendimento ao parto ultrapassam em muito as meras habilidades técnicas, cirúrgicas e farmacológicas; os conhecimentos para a atenção segura ao parto aliam-se às habilidades de ordem afetiva, emocional, psicológica e espiritual que as parteiras acumulam há milênios, desde que a primeira mulher a parir pediu a mão de sua amiga para segurar o bebê que dela se separava. Reconhecer o lugar exato de cada profissional é o que deveremos fazer neste novo milênio, para que as mulheres voltem a ter escolhas reais para o nascimento de seus filhos.
Eu creio que hoje estamos vivendo o “Império do Imediatismo”. Nas conversas diárias as mensagens que ocorrem no ambiente da Internet precisamos ser concisos ao extremo e, quando possível, acrescentar um recurso qualquer que cative a atenção. Antes do advento das redes sociais tudo o que tínhamos para a troca bidirecional de ideias eram os “list servers”, as listas de discussão através de e-mail. Naquela época, para debater os dilemas do parto e nascimento e a violência obstétrica, só tínhamos o texto e seu conteúdo, o que nos forçava a pensar e resolver estas questões através da nossa capacidade racional. Hoje o esforço é por convencer; queremos derrotar os adversários e não pensamos duas vezes para usar recursos extraordinários para derrotar quem nos desafia – as dancinhas do TikTok, a retórica, as imagens, as fake news, os memes. Recursos para impactar e sentir, e não para pensar
Lembro que quando apresentei o Power Point ao meu pai ele me disse “Muito legal, mas cuidado. Ao fazer uma palestra esses recursos roubam a atenção e colocam você em segundo plano. Não esqueça que as pessoas vieram para ver você, não estes artifícios”. Ele se preocupava que as “firulas” pudessem tomar o lugar do pensamento, da lógica e da razão. Temia que o meio dominasse a mensagem, e parece que ele tinha razão. Hoje parece que o Facebook, Instagram, Tiktok, etc. são grandes e sofisticadas molduras ao redor de telas vazias ou insignificantes. Isso também explica o sujeito que é famoso “por ser famoso”, alguém que foi colocado nessa posição pelo BBB ou por alguma tolice de redes sociais, mas sem qualquer habilidade ou conteúdo que o faça merecer qualquer destaque.
Por certo que hoje o parto enfrenta novos desafios. Em uma população cada vez mais drogada, mais controlada externamente pela química, os médicos se comportam como se os pacientes fossem constantes ameaças, ao mesmo tempo em que os pacientes são ressentidos com uma corporação vista como onipotente e arrogante. Mulheres estão decidindo pela gravidez cada vez mais tarde, acrescentando uma nova configuração populacional e familiar, com o desaparecimento de irmãos, cunhados, primos e bisavós. Um número imenso de gestações agora ocorre na 5a década, através de fertilizações e inseminações, cujos riscos sequer temos plena compreensão. Aos poucos o parto fisiológico está desaparece do horizonte; mulheres já não podem contar com a própria fisiologia e suas capacidades inatas para parir, e talvez essa seja uma tendência irreversível, já que o medo de parir é estimulado por aqueles que controlam o parto nas culturas ocidentais. Se somos uma espécie especial no planeta porque nascemos de uma forma inusitada e bizarra, temo que o afastamento do processo de adaptação dinâmica à natureza fará surgir uma nova espécie, e não tenho nenhuma confiança de que ela será melhor do que esta.
Nas listas por e-mail do passado havia um desejo muito grande de vários atores sociais – obstetras, parteiras, doulas, pediatras, etc. – de oferecer uma perspectiva para a grande inconformidade que sentíamos em relação ao nascimento humano. Havia disputas no terreno das ideias, mas não existia muito espaço para lacração. Éramos jovens, cheios de energia criativa; os sonhos ainda nos dominavam. Eu espero que uma nova geração de ativistas de perspectiva materialista (ou seja, menos idealistas e mais práticos) venham a nos substituir. Ativistas que entendam o parto humanizado como ele realmente é: uma luta por espaços sobre a topografia física e emocional da mulher, e não uma disputa de saberes e evidências científicas, posto que estas não são capazes de produzir transformações. Precisamos ultrapassar o idealismo ingênuo e reconhecer a necessidade do enfrentamento, com a coragem de enfrentar os desafios inevitáveis.
Meu pai sempre foi um conservador, mas no final da vida atingiu o estágio de “liberal de esquerda reformista”. Caso tivesse mais 60 anos convivendo comigo teria a chance de se livrar das amarras liberais e entender o modelo capitalista como um sistema fadado ao fracasso, pois que não há como esperar um crescimento infinito e constante em um mundo de recursos limitados e finitos. Além disso, esperar que uma sociedade de classes, dividida entre os capitalistas – que tudo têm – e os proletários – que tudo fazem – mantenha-se em “harmonia”, é uma ilusão tola. A luta de classes é a consequência natural da opressão das classes oprimidas; não há como escapar do destino humano de lutar por liberdade.
Dito isso, lembro bem do quanto ele reclamava de minhas posições políticas, em especial pela minha radicalidade. “Não é fácil ser pai de comuna”, pensava ele. Seus mais de 90 anos na lavoura do espiritismo – a maior parte deste tempo ainda cristão – o transformaram em um sujeito de inegável docilidade. “Escreva sobre partos e nascimentos”, pedia ele. “Gosto de sua visão poética sobre o nascimento e suas consequências civilizatórias, o parto como elemento essencial da sexualidade humana e o nascimento como formatador do desejo, que tanto nos escraviza quando nos impulsiona. Fale do “nascer com pressa”, que acaba por produzir a fissura bizarra na ordem cósmica”.
Ele gostava dessa perspectiva, mas não sabia o quanto ela é igualmente revolucionária. Se existe amor, cuidado e carinho na forma como os humanistas encaram o nascimento, também há necessariamente enfrentamento e agitação, que brotam naturalmente dessa perspectiva. O nascimento, inserido em uma sociedade patriarcal, ainda é dominado pela corporação médica, que o trata como os outros eventos médicos, onde o profissional é o protagonista dos processos de cura e o paciente o sujeito passivo dos tratamentos. Porém, contrariamente ao que ocorre nas doenças, o parto é um evento da fisiologia, que deve ser conduzido pela “lógica do cuidado”, ao invés da “lógica da intervenção”. Por esta simples razão, o nascimento humano jamais deveria estar nas mãos de profissionais da saúde que são regidos pelo intervencionismo e que lucram com a a crescente complexidade e a medicalização desse evento. Qualquer país que tem o cuidado do parto delegado às parteiras profissionais têm melhores avaliadores de qualidade do que os países que medicalizaram esta assistência e o colocaram nos hospitais e nas mãos dos médicos.
Por esta razão histórica – a invasão do nascimento pela Medicina – a qualidade do nascimento estará na dependência da vinculação ideológica do obstetra com o tema do parto. No modelo atual, o que os pacientes desejam vale (muito) menos do que as crenças e a experiência do profissional médico, o qual vai tomar esse nascimento sob seu controle e sob suas condições. No hora derradeira do nascimento, o desejo da paciente, mesmo que se mantenha firme durante o bombardeio do pré-natal, ainda continuará valendo muito menos do que a autoridade do obstetra, e será dele a decisão final sobre o que vai ocorrer.
Apesar da taxa de cirurgias cesáreas ter declinado desde 2017 no setor suplementar de saúde, passando de aproximadamente 86% em 2017 para cerca de 81,8% nos anos de 2021 e 2022, ela ainda se mantém uma das mais altas do mundo, uma situação vexatória para o país. Desta maneira, em uma sociedade onde a classe média tem uma taxa de cesarianas de 90%, um parto vaginal – sem falar de partos humanizados – só poderá ser alcançado através de muita luta e enfrentamento. Entretanto, é preciso criar uma geração de mulheres que entendam a importância do respeito à fisiologia do parto ao ponto de cerrarem fileiras para este tipo de combate. A disparidade de poder ainda é gritante, mas não será desfeita atacando os médicos, mas exaltando o poder e as capacidades das mulheres que pretendem parir com segurança e através dos seus próprios valores. Não há como conseguir um parto normal em nossa cultura sem bater de frente com o sistema, mas bem o sabemos que poucos estão dispostos e capacitados a aceitar esta realidade.
Meu pai queria fraternidade, concórdia e paz, mas eu só podia oferecer a espada. Mesmo fugindo das questões da política geral, acabamos caindo na política dos corpos, dos desejos, da liberdade e da atuação prazerosa na vida. Talvez amadurecer seja suportar a dor de frustrar os desejos de um pai. Na vida política e no debate sobre a forma como nascemos não existem direitos garantidos de forma fácil; nada é recebido em dádiva, e todo e qualquer avanço se dá pela luta incessante pela conquista de espaço.
Ex-estrela adolescente da Disney, Hilary Duff, acaba de ganhar o quarto filho em um parto domiciliar
Escrevi um texto há muitos anos chamado “Dilema Médico” que abordava a questão das difíceis escolhas pelas vias de parto. O texto, depois de vários anos, se mantém atual, pois o corpo das mulheres ainda é um território sob disputa. O que lá escrevi contém as mesmas perspectivas que até hoje são relevantes. Entretanto, mesmo que o debate entre os ativistas tenha avançado, o olhar jurídico continua infectado pelo “mito da transcendência tecnológica“, conforme descrito por Robbie Davis-Floyd há mais de 30 anos. Ou seja: se há um dilema que paira sobre o momento maiOu seja: se há um dilema que paira sobre o momento mais adequado e seguro de intervir na fisiologia do nascimento, objetivando salvaguardar o bem-estar de ambos – mãe e bebê, também é evidente que para os médicos (e também os complexos médico-hospitalares) a intervenção ostensiva se tornou a forma prioritária de atenção por ser a forma mais segura… para quem o assiste.
Há 40 anos eu dizia que a cesariana se tornava a rota de fuga com mais segurança para os obstetras, e as perseguições a quem se opunha à tendência de artificialização do parto ameaçavam a prática do parto normal. A frase que eu escutava à época, por parte dos professores, era: “Uma cesariana permite ao obstetra sair da sala de parto com a cabeça erguida; um parto, nem sempre”. Uma intervenção sobre o corpo das mulheres, necessária ou não, garantiria a honra e a consideração sobre o profissional; uma ação mais moderada ou conservadora acrescentaria riscos inequívocos para os cuidadores. Assim, o lema dos profissionais, de forma consciente ou inconsciente, se tornou: “na dúvida, passe o bisturi e salve a sua pele”. Todavia, quem poderia julgar profissionais que, diante dos dilemas de um nascimento, pensam na sua carreira, fé pública, profissão e filhos?
Desta análise surgiu a convicção que o debate sobre parto nas sociedades ocidentais não pode se esgotar nas questões científicas. “Parto faz parte da vida sexual de toda a mulher”, como dizia Michel Odent, e se a sexualidade é uma questão política, o nascimento também o será. Enquanto a sociedade não pressionar o judiciário para uma visão mais racional e científica – abordando os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres de forma abrangente – as decisões serão mediadas por esse imperativo intervencionista, até porque esta perspectiva interessa à corporação médica. Uma cesariana é sempre a vitória da técnica sobre a natureza e, por conseguinte, terão supremacia e importância social garantidas aqueles que controlam essa técnica.
De uma certa forma a cesariana se mantém alta como tendência porque ela está em consonância com os interesses dos profissionais da medicina e sob o controle do judiciário, inobstante o fato de não existirem estudos que justifiquem sua alta incidência e se avolumam as pesquisas que apontam seus múltiplos problemas, dos riscos cirúrgicos, anestésicos e hemorrágicos até as questões relacionadas ao microbioma dos bebês e seu desenvolvimento intelectivo. Entretanto, tudo isso ocorre porque ainda não há massa crítica sobre o tema em nossas sociedades ocidentais; não existe a suficiente consciência entre as mulheres sobre a expropriação de seus partos, a retirada do nascimento do seu âmbito de decisão e a diminuição da importância da família sobre os valores que cercam um nascimento. Para que não haja revolta, elas são mantidas na ignorância por interesse de quem controla o nascimento e seus significados.
Quando vejo estas ideias de “medidor de dores” em sempre lembro que a dor não é um processo objetivo como a taxa de glicose no sangue ou a graduação de um hormônio circulante. Dores são percepções e elas são inexoravelmente subjetivas. A sensação de dor vai variar enormemente entre os sujeitos na dependência de inúmeros fatores. Por que, então, ainda insistem nessas “unidades de dor”? Qualquer pessoa percebe que isso é ridículo. “O ser humano só aguenta 45 unidades de dor mas as mulheres durante o parto aguentam 57 dessas unidades”. Isso significa exatamente o quê? Que as mulheres não são humanas? Serão elas sobre-humanas? Isso tem um nome: “desumanização”. Ou seja: as mulheres não precisam ser tratadas ou consideradas como humanas pois são seres divinos – ou, quando assim interessar, diabólicas e bruxas; não fazem parte dessa espécie.
Lembro quando um político populista do meu estado resolveu, durante uma palestra no hospital de clínicas, chamar as enfermeiras de “anjos de branco”. Nem terminou de falar e tomou uma vaia sonora do público, majoritariamente constituído por… enfermeiras. A razão dessa discordância é que chamar enfermeiras de “anjos” sempre cumpriu a função de desprofissionalizar, tratá-las como “religiosas”, espíritos impolutos que cuidam dos enfermos. Pois o que as enfermeiras mais desejavam era perder essa aura de abnegação e serem valorizadas em suas profissões, fugindo do estigma de “seres superiores” ou “luzes a iluminar as trevas da doença”. Não é adequado ou justo desumanizar as enfermeiras quando elas têm necessidades tão humanas quanto reconhecimento, respeito, atenção valorização e pagamento justo. No lugar dessa exaltação, paguem um bom salário, ora…
Com as gestantes o mesmo. Insistem na balela de que as dores do parto são horríveis mas as mulheres, por serem “seres superiores”, são capazes de suportá-las acima dos limites humanos. Pura bobagem!! O parto é tão mais doloroso quanto mais ignorados são seus princípios básicos de segurança, privacidade e intimidade. Todavia, a dor inerente ao processo é suportável por pessoas comuns, por mulheres absolutamente humanas. A ideia de tratar as mulheres de forma diferente não as ajuda e sacraliza a ideia de excepcionalidade.
Lembro da história que um professor de psicanálise me contou durante uma viagem entre Blumenau e Florianópolis que fizemos de carro. Dizia ele da história de uma mãe com problemas para alimentar seu filho com síndrome de Down – o mais novo de 4 filhos e o único com este diagnóstico. Ele costumava brincar com a comida, esmagar com as mãos e jogar longe, o que a irritava profundamente. Logo ao escutar o relato meu amigo já estava se apressando a dizer o quanto é natural esta conduta lúdica com o alimento entre as crianças pequenas quando decidiu perguntar: “Mas me conte, como você agiu com os outros filhos?”, ao que ela respondeu “Ah, com todos eles eu ralhava!!”. Ao escutar essa resposta ele disse: “Pois com este menino faça o mesmo!!”
Diante da minha surpresa, ele respondeu: “Muito pior do que não entender a questão das brincadeiras com a comida é iniciar desde cedo um tratamento diferenciado, excluindo o menor do tratamento que sempre foi dado aos outros irmãos, apenas porque ele é “especial”. Isso reforçaria nele a ideia de que não pertence àquele grupo, que não é tão humano quanto seus irmãos e só por isso não é tratado da mesma forma”.
Com as mulheres penso da mesma forma. Trate-as sempre com a mesma humanidade com que trata os homens, nem mais nem menos. Criar a ideia de que elas suportam mais as dores é tão discriminatório quanto achar que não podem exercer as mesmas funções dos homens. Lembrem apenas que muito do que se sabe sobre o assoalho pélvico feminino foi descoberto por um ginecologista americano chamado James Marion Simms abusando dessa perspectiva. No seculo XIX ele realizou pesquisas com cirurgias para fístulas urinárias sem anestesia e usava mulheres negras em seus experimentos dizendo serem elas “muito fortes para a dor”, portanto capazes de aguentar as dores dos procedimentos cirúrgicos criados por ele.
Ou seja: desumanização, mesmo quando o desejo é exaltar, nunca é algo justo e bom. Trate as mulheres, inclusive e principalmente durante o parto, como gostaria que todo ser humano fosse tratado. Nada mais, nada menos.
Uma vez eu estava debatendo com colegas da humanização do nascimento nos “list servers” que existiam na época e chamei um colega médico de “mestre”. Imediatamente uma doula do seu estado me chamou em privado pelo Messenger dizendo “Não o chame de mestre. Ele não é o que parece”.
Achei um pouco duro; afinal não havia qualquer discordância entre o nossas perspectivas. Chamá-lo de “mestre” seria uma sutil deferência, uma forma de mostrar minha adesão aos nossos pressupostos compartilhados. Entretanto, com o passar dos anos, percebi que ela tinha razão. O colega tinha uma retórica humanizada, mas uma prática muito centrada em suas necessidades pessoais, a ponto de sacrificar os desejos de suas pacientes em nome de seus compromissos.
Esta é uma questão bastante prevalente neste debate, e por isso eu costumo citar tanto as palavras de Vladimir: “O critério da verdade é a práxis”, ou seja, não há verdade consistente que não seja estabelecida sobre a realidade da prática. Não há mentira que sobreviva se for desmentida pelos fatos. Esta foi a questão dos partos domiciliares na história da obstetrícia: na teoria eles seriam mais perigosos porque as ferramentas existentes no hospital estariam ausentes no domicílio. Desta forma, a distância do centro obstétrico, moderno e tecnológico, aumentaria os riscos e os resultados inevitavelmente seriam piores. O que a prática dos partos domiciliares planejados demonstrou é que os riscos teóricos não se expressam na realidade dos fatos, da prática cotidiana, nos números e nas análises frias. Partos assistidos em casa são tão seguros quanto os partos de risco habitual atendidos em ambiente hospitalar. A ideologia foi, então, obrigada a se curvar à realidade material.
Entre os humanistas do nascimento podemos aplicar a mesma perspectiva. De nada adianta um discurso bonito, ideias profundas e uma vinculação ideológica com os pressupostos da humanização do nascimento sem que isso se traduza em diferentes resultados na sua atuação como profissional. Por isso é que, diante de uma promessa de atenção diferenciada, guiada pelo ideário do parto fisiológico, mais importante é investigar a realidade dos seus partos, a taxa de cesarianas, o índice de episiotomias, a quantidade de intervenções, etc. Nenhum falso mestre passa por este teste.
Humanização do nascimento, enquanto ciência, não pode tolerar certas falácias. Muito já foi dito sobre o parto e suas implicações psicológicas, afetivas, morais, espirituais, fisiológicas e sociais; agora cabe a nós agora mudá-lo, transformá-lo. As revoluções no campo do conhecimento humano se sucedem, atropelam umas às outras. O que antes era o novo, hoje já é o antigo, e resta-nos incorporar a metamorfose de ideias e projetos a nos oferecer o ânimo da mutação. O parto, como o conhecemos, é fruto de uma revolução tecnológica que, iniciando-se com a anestesia na memorável apresentação de uso do éter em 1846 com o cirurgião Warren e o anestesista Thomas Morton, culminou algumas décadas mais tarde com a realização da cesariana em Julia Covallina, pelo cirurgião Edoardo Porro em Pávia, na Itália, já nos estertores do século XIX. Esta cirurgia, criada com o intuito de salvar vidas condenadas pelos efeitos dramáticos do raquitismo no trajeto pélvico, conduziu-nos à suprema interferência no milenar mecanismo do parto, garantindo-nos, com razoável segurança, a entrada no claustro escuro onde dormita o amnionauta. Depois de quase um século os anticoncepcionais desvincularam o sexo da gestação e permitiram que as mulheres deixassem de ser prisioneiras da gestação; seria possível retirar do sexo todos os prazeres sem o temor de uma gestação indesejada. Tamanha a euforia com estas conquistas que por um tempo imaginamos que o domínio completo sobre os mistérios do nascer havia sido estabelecido. Entretanto, tamanha interferência nos ciclos que governam a reprodução e a vida não poderia ocorrer sem que, de alguma forma, houvesse uma ruptura com os delicados liames que nos conectam com a natureza.
As cesarianas, assim como as analgesias de parto tornaram-se mais do que simples e corriqueiras; sua aplicação no mundo ocidental tem aspectos de epidemia, tamanha a sua abrangência. No Brasil, a taxa de cesarianas atingiu o índice inédito de 59.7%, um número assustador se imaginarmos que a OMS estabeleceu como 15% o percentual máximo que pode oferecer vantagens. Multiplicamos por 4 este valor, e por certo que existem consequências nefastas por esta medida. Bem o sabemos o quanto as cesarianas, ao tornar previsível um evento dominado pela imprevisibilidade, beneficiam os médicos e as instituições, e aqui está uma boa razão para os abusos que testemunhamos. Além disso, as cesarianas multiplicam os riscos, tanto para as mães quanto para os bebês. As analgesias de parto também são extremamente prevalentes nas salas de parto, diminuindo a propriocepção materna e dificultando as mudanças posturais ativas da mãe na adaptação do seu bebê ao canal de parto. Hoje em dia apenas 5% das mulheres brasileiras tem um parto sem intervenções médicas potencialmente perigosas para a mãe e seu bebê. Além disso, existem repercussões de caráter emocional, psicológico e social das cesarianas, que afetam o desenvolvimento do apego da recém mãe com seu bebê. O caminho das intervenções e o parto na perspectiva médica mostravam suas falhas e seus senões.
Por esta razão, a partir do final dos anos 70 do século passado surgiu um movimento de usuárias e profissionais da saúde com o objetivo de “humanizar o nascimento”, na medida que a postura meramente objetual das pacientes – como é a característica daqueles que se submetem à ação médica – não é aceitável para uma mulher saudável que está diante de um evento natural do seu corpo, sobre o qual não cabe nenhuma intervenção sem justificativa. Passou-se a admitir – de novo – que parto faz parte da vida sexual de uma mulher, que deve ser governado por estes pressupostos, e que o nascimento de uma criança é algo que ela faz…. e não algo que fazem por ela. Iniciou-se, então, um movimento de caráter internacional de questionamento sobre as múltiplas e exageradas intervenções sobre as mulheres no momento do parto, assim como no pré-natal e nas semanas que se seguem ao nascimento. A ideia central que impregnou esta geração de pensadores sobre o nascimento foi a “desmedicalização” do nascimento, o respeito à fisiologia, o uso consciencioso e restrito das intervenções, o entendimento do parto como um processo interdisciplinar e, acima de tudo, a garantia do protagonismo à mulher e à família, recuperando a centralidade feminina e familiar do nascimento humano.
Muito já se avançou no debate sobre a necessária retomada de um percurso de atenção ao parto que respeite a mulher e sua fisiologia. Muitas publicações, estudos, análises, pesquisas e literatura acadêmica contribuiu para esta lenta mudança. Todavia, ainda há um caminho longo a percorrer, porque as modificações na assistência ao parto não carecem de retoques ou de revisões de protocolos; é necessário o que se faça uma revolução, na medida em que estas transformações estão relacionadas ao poder sobre os corpos, mantido sob a guarda dos profissionais da medicina. Como diria Gramsci, se fosse parteiro: “o parto na lógica da intervenção já morreu, mas o parto na perspectiva do sujeito tarda a nascer. Neste lapso temporal ainda testemunhamos a barbárie da violência contra as gestantes”. Humanização do nascimento não é uma ideologia que se encerra no mundo das ideias, mas uma filosofia da prática cotidiana. A prática sem arcabouço teórico é perigosa e caótica; porém a teoria sem a prática é vazia e inútil, servindo apenas para devaneios filosóficos e especulativos.