“Gael nasceu alguns meses depois. Nara, contudo, teve complicações durante o parto, sofreu uma hemorragia e precisou ficar intubada na UTI.”
Na verdade, não houve parto algum; o bebê nasceu por meio de uma cesariana. Não vou discutir a indicação da cirurgia, e prefiro até pensar que foi bem indicada. Porém, a narrativa da imprensa corporativa (aquela controlada por quem paga mais) sempre tenta misturar partos normais com “cirurgias para a retirada de bebês” – cesarianas – como se estes eventos fossem da mesma natureza. A gente sabe bem a quem serve essa confusão.
Quando eu vi a notícia de hemorragia logo pensei em cesariana, onde esse tipo de intercorrência é muito mais comum, por isso resolvi pesquisar. Mesmo na notícia abaixo, que esclarece sobre a realização da cesariana, ainda assim inserem a palavra “parto”, o que gera confusão e colabora com o medo crescente que o parto exerce entre as meninas. Esse temor disseminado entre as mulheres é uma construção social que tem por objetivo dominar a reprodução através do controle da sexualidade feminina.
“A influenciadora digital Nara Paraguaia, namorada de Toguro, recebeu alta hospitalar após passar por complicações no parto de seu filho, Gael. Ela estava internada desde a última quarta-feira, 6, após sofrer uma hemorragia durante uma cesariana que lhe colocou em estado grave de saúde.”
Se é verdade o adágio de que “o parto é um evento social que ocorre no corpo das mulheres”, teriam as mulheres no passado, recente ou longínquo, experenciado partos mais rápidos e fáceis? Quanto existe de real nas dificuldades do processo de nascimento e quanto há de cultura nestas dores? Se a sociedade inteira conspira para o nascimento, quais são as responsabilidades do campo simbólico – a forma como simbolizados os eventos – na construção do parto como sinônimo de “dificuldade”, “dor” e “sacrifício”? Como seriam os partos no século XVI? Inobstante sabermos que a ciência obstétrica salva vidas – inclusive e principalmente pela cesariana – qual o seu papel na desvalorização crescente do parto normal, da fisiologia feminina e dos mecanismos adaptativos que formataram o parto humano nos últimos milênios?
Estas são perguntas para entender a situação da assistência ao parto no início do seculo XXI. Hoje, a chance de uma mulher brasileira de classe média ter um parto normal no nosso contexto cesarista não passa de 10%. A cesariana triunfa de forma inconteste, em especial nas camadas mais abastadas da sociedade. Essa evidência demostra a distância entre as ideologias e a materialidade da vida. Teoricamente as mulheres ocidentais teriam uma ampla possibilidade de escolha: podem determinar como serão seus partos, desde nascimentos cirúrgicos até partos na segurança das suas casas. Todavia, a realidade se apresenta diferente e ela é condicionada pelo sistema de poderes que controla esses processos. Por isso as cesarianas já ultrapassam 59% dos nascimentos; no Brasil de hoje um parto fisiológico é a opção minoritária e, nas classes mais altas, a exceção.
Existe uma distância entre a liberdade teórica e a liberdade real, da mesma forma como o capitalismo oferece o “céu como limite”, mas sua realidade mostra a estagnação das classes e a dominação dos “de cima”. Para estes as opções são reais, sendo apenas teóricas para quem é “de baixo”. Quando analisamos friamente, é nítido que as mulheres são condenadas às cesarianas pelo modelo obstétrico “iatrocentrico” (centrado na figura do médico) e controlado pelas necessidades dos médicos, e não pelas reais condições e exigências do binômio mãebebê. Mesmo que, aparentemente, exista uma gama enorme de opções para as mulheres, elas são direcionadas subliminarmente àquelas que beneficiam os donos do poder.
A chance de um parto normal aumenta exponencialmente quando ocorre a decisão de ficar em casa, por exemplo, até 7 cm de dilatação; a forma como uma mulher chega ao hospital é o mais valioso elemento para prever o que vai lhe acontecer. Não deveria surpreender a ninguém que esse é o grande segredo: ficar o mais tempo possível longe dos ambientes insípidos e adrenalínicos do hospital. Desta forma cabe a pergunta, que me parece relevante: como seriam os trabalhos de parto sem a cultura da medicalização, que leva inexoravelmente à alienação das mulheres nos temas do parto e a amamentação? Sem uma cultura de parto formatada pelo medo (e a solução deste drama oferecida à tecnocracia), pairando sobre o parto como um abutre agourento, seriam os partos mais livres, mais rápidos, mas tranquilos e “naturais”?
Estas são as questões fundamentais: qual a parcela de responsabilidade da “cultura do medo” sobre o parto para a criação de um modelo alienante e tecnológico? Por que (ou para quem) as sociedades ocidentais criaram a atual narrativa do parto, que o descreve como violento, agressivo, doloroso e indigno da condição humana? Quem se beneficia com essa perspectiva? Quem ganha com a expropriação do parto e a transformação das mulheres em contêineres frágeis e indignos de confiança? As respostas a estas perguntas serão a narrativa para o nascimento humano no século XXI.
PS: No início deste século havia listas de discussão como a “parto nosso” e a “parto humanizado”. Elas foram fundamentais para o debate sobre as transformações que trazíamos como proposta. Eu escrevia um “tijolão” como esse cada dois dias, apresentando minha perspectiva sobre a assistência e os rumos para o nascimento humano. Quase ninguém lia, assim como quase ninguém vai ler o que está escrito nesse “tratado” aí em cima. Sim, em tempos de Facebook “tratado” é qualquer texto acima de dois parágrafos. Mas… a gente escreve por compulsão, não porque alguém porventura vá se interessar.
Infância é puro sofrimento e angústia. Eu sei o quanto isso irrita as pessoas, pois nossa tendência e crer que esta é a fase mais feliz das nossas vidas. Se formos analisar com cuidado, não é assim que a realidade se expressa. A felicidade só existe em nossa memória porque selecionamos ilhas de momentos felizes e apagamos o oceano de tristeza, depressão e angústia no qual toda as crianças mergulham pela própria estrutura psíquica que as compõe.
As crianças apenas suportam a infância porque enxergam na figura dos adultos – em especial dos pais – uma promessa de sobrevivência e redenção. “Se meus pais sobreviveram a estas explosões incessantes de emoções e o torvelinho de paixões conflitantes eu também poderei superá-las”. Faltam às criancas amortecedores afetivos para protegê-las das emoções intensas do processo de amadurecimento. Por isso, crescer significa perder a alegria fulgurante que só existe nos infantes, em troca de não sucumbir à tristeza massacrante que elas são obrigadas a sentir.
Marguerite Deschamps, “Après la Tempête”, (Depois da Tempestade), Ed. Daguerre, pág. 135
— Nem sou eu que o digo — falou Maximilian com o dedo em riste. — Está nos melhores compêndios atualizados de pediatria. E da pediatria mais alopática e conservadora possível: não existe justificativa para baixar a febre de uma criança durante um episódio de hipertermia, salvo situações bem específicas e raras. Digo que a febre deve ficar alta mesmo, porque ela tem evidentes efeitos terapêuticos.
— Você está sendo mais uma vez exagerado, Max.
Nadine cruzou os braços e fechou o cenho. Não acreditava nas condutas exageradamente conservacionistas que Max frequentemente utilizava. Para ela, o uso das evidências científicas era correto, mas até um determinado limite.
— Exagerado? Não creio — continuou meu amigo. — Exagero seria não entender as limitações de uma mãe e condená-la por usar drogas em seu filho. Nisso certamente estaremos de acordo. Nossa cultura é muito sedutora no uso de medicamentos, e não usá-los depende de uma postura muito corajosa e determinada, que só se sustenta com informação e atualização constantes. A febre (mas poderíamos falar da diarreia, dos vômitos, da tosse, das dermatites, etc.) é um dos mais fabulosos mecanismos de defesa elaborados pelo nosso organismo. O Ric, aqui presente, deve lembrar quando juntos tivemos uma aula sobre febre, em um curso de medicina social. Quando confrontados com as características essenciais da febre, pensamos: “A febre é tudo o que um antibiótico gostaria de ser”. Ficamos ambos apaixonados pelos mecanismos fisiológicos de adaptação produzidos pelo processo febril, e ao mesmo tempo chocados com o que a biomedicina mercantilista nos fez acreditar, apenas para nos vender remédios a rodo. A febre é um dos mais belos exemplos dos equívocos produzidos pela incompreensão dos processos adaptativos de que a espécie humana é capaz. Hahnemann, pai da homeopatia, cunhou uma frase que, pela radicalidade e significação, nunca mais saiu da minha cabeça: “A doença é a outra face da saúde”. Eu costumo sempre dizer que “a doença é o estado alterado do bem estar”. Ficamos “doentes”, alterados, para preservar nossa “saúde”, equilíbrio.
Nadine espichou o olho para mim, em uma atitude conhecida. Queria ver minha reação às palavras de Max, cuja euforia e paixão pareciam transbordar em cada palavra que pronunciava. Este, sem se deixar interromper pela nossa troca de olhares, continuou seu discurso, mantendo seu olhar fixado em Nadine.
— A hipertermia é uma máquina fantástica de modificações orgânicas. A febre aumenta a velocidade dos macrófagos, que são as células de defesa da linhagem branca, aumenta a diapedese, ou seja, a capacidade dos glóbulos brancos de romper a parede dos vasos e atacar os microrganismos na intimidade dos tecidos. Além disso, aumenta a capacidade fagocitária dos leucócitos, que é a habilidade de “comer” bactérias e vírus. Aumenta o metabolismo intensamente para cada grau acima de 37, incrementando a capacidade de defesa pela mobilização do organismo. A febre nos “põe para baixo” produzindo fadiga, cansaço e debilidade, o que é um fenômeno adaptativo dos mais sábios, porque nesses momentos o indivíduo necessita de repouso e resguardo. Se a febre não produzisse isso, quem se protegeria? A temperatura corporal elevada também é importante na destruição de bactérias e vírus e, além disso, sinaliza aos outros animais humanos a presença de uma doença infecto-contagiosa, o que nos auxilia a preservar os que ainda estão sãos. Qual grávida não recebe orientações, pelo menos no início da gravidez, de não segurar no colo uma criança febril?
— Muito mais há a falar sobre as maravilhas da febre, mas seria enfadonho, tamanhas são as suas vantagens para o processo de recuperação da homeostase. Atentem, meus colegas, apenas para esta observação: quanto maior a febre, maior a capacidade de adaptação presente e maior a energia do indivíduo. É por essa razão que principalmente crianças pequenas fazem febres altas, e o uso da expressão “fazem” é proposital, porque somos ativos em relação a ela, porque a sua energia vital é muito forte e poderosa.
A tudo eu ouvia em silêncio. Maximilian dominava a todos com sua emoção e seu conhecimento. Era todo paixão e veemência. Nadine, mesmo quando discordava, pedia para que Max lhe desse a sua opinião, porque ninguém escutava Max sem se contaminar pelo seu entusiasmo. Quando falava, agitava os braços, fazia mímicas, representava, modificava a voz para se adaptar ao personagem que imitava. Eu sempre fui seu fã número um. Pensava que Max era uma daquelas pessoas absolutamente indispensáveis em qualquer ramo do conhecimento, porque unia em um só indivíduo a paixão, o saber e o conhecimento apurado. Tinha energia para combater um sistema em que não acreditava, mas ao mesmo tempo era pródigo em apresentar as comprovações científicas do que afirmava. Acreditava no conhecimento como elemento de libertação e tinha a medicina como meio de levar consolo diante das agruras de uma vida breve e sofrida, sem com isso considerar-se um emissário divino infenso aos erros e dúvidas. Resolvi romper meu silêncio e ilustrar a descrição que Max nos oferecia.
— Eu tenho uma história interessante sobre febres, e acredito que você gostará dela, Max. Acho que você, Nadine, deverá ter um pouco de paciência. Sei que não é o modelo com o qual você lida, mas escute com atenção, pois talvez isso possa ajudá-la a compreender melhor a minha forma de pensar o adoecimento. É uma breve história sobre as febres e seus significados ocultos.
* * *
Há alguns anos, eu morava ao lado da casa em que vivia um casal de russos: Baba, “mamãe”, e Deda, “papai”. Gostavam de ser chamados pelos seus apelidos familiares em russo, até mesmo pelos vizinhos. Ambos fugiram de Stalin, chegando ao nosso país com seus filhos pequenos após o término da segunda guerra, em 1949. Perderam muitos parentes vitimados pela fome e pelo frio, resultado da própria guerra na Rússia. Durante a fuga, seu segundo filho, de pouco mais de dois anos, pereceu de pneumonia durante uma evasão. Ambos tiveram uma vida sofrida e cheia de percalços, mas encontraram no Brasil um lugar tranquilo em que puderam criar seus três filhos. Deda era um veterinário de renome em seu país, e acabou se tornando um dos introdutores das técnicas de inseminação artificial de gado no Brasil.
Pois no meio de uma madrugada sou chamado por Baba para atender seu “Peter” — Deda. Disse-me que ele estava estranho, parado, com o rosto vermelho e “deprimido”. Ele já estava com mais de 80 anos, mas era um homem forte e vigoroso. Lá chegando encontrei Deda deitado na cama. Apresentava o rosto avermelhado e tinha a respiração alterada. Perguntei-lhe o que havia ocorrido e ele respondeu “Nada. Apenas estou com um pouco de falta de ar e me sentindo fraco”.
— Ten tosse? Vômito? Dor de barriga? — indaguei enquanto avaliava seu pulso
A essas perguntas me respondeu negativamente. Baba, por trás dele, fez um muxoxo. Olhou-me firmemente, preocupando-se em que o marido não percebesse seus sinais para mim. Fazia “não” com as mãos e apontava para o marido, fechando o punho contra o peito, como se estivesse a bombear algo. Entendi que ela estava me dizendo que a emergência do quadro em seu esposo tinha origens emocionais. Verifiquei a temperatura: 40 ºC. Febre alta, que em homeopatia consideramos os episódios febris acima de 39,5 ºC. Como pode um homem de 80 anos produzir tamanha temperatura? Lembrei-me das aulas do curso de homeopatia: “Fique calmo. Este homem está mobilizado”. Ele estava usando toda sua capacidade curativa para buscar a normalização do organismo. Era importante respeitar a forma específica como um indivíduo escolhe seu caminho.Pedi que sentasse para que eu escutasse seu coração e pulmões. O coração estava acelerado, mas isso era obra da febre. Nada mais de importante ou significativo na ausculta cardíaca. Os pulmões: consolidação em base de pulmão esquerdo. Crepitações finas. Diagnóstico: pneumonia em base pulmonar esquerda. Temperatura, ausculta pulmonar positiva. Nada mais havia a diagnosticar. Uma pneumonia clássica.
— O que tenho, Ricardino? — perguntou Deda com o seu indefectível sotaque russo.
E agora? Digo o que ele tem de supetão? Peço que vá a um hospital para exames, submetendo-o às rotinas escravizantes e coisificantes das emergências hospitalares? Se eu lhe disser o diagnóstico, não vou assustá-lo mais ainda? Por outro lado, posso omitir a verdade?
— Deda — perguntei eu. — Tenho mais algumas perguntas a lhe fazer. São importantes para que eu possa entender o que o levou a desenvolver esse quadro febril. Por que o senhor ficou assim? O que aconteceu?
Ele pareceu momentaneamente desconcertado. Não sabia o que dizer. Fez um cara de desentendido, mas foi interrompido por Baba.
— Deda, meu amor. Fale para o Ricardo. Conte do álbum de fotografias.
Seu rosto então se modificou. Ele agora estava sério, taciturno, e as sobrancelhas curvaram-se para baixo. Não era mais possível dissimular os conteúdos afetivos escondidos por detrás do sintoma.
— Fale Deda — insistiu Baba. — Conte ao doutor porque você ficou assim.
Ele começou então a explicar o porquê do seu estado.
— Eu estava limpando a biblioteca, Ricardino. Estava retirando a poeira de antigos livros de veterinária quando encontrei um velho álbum de fotografias da família. Ali estavam as fotos antigas dos meus tios, pais, irmãos e sobrinhos.
Começou a chorar. Posso imaginar o que a visualização de familiares que ficaram perdidos em um passado tão remoto, separados por guerras e oceanos, poderia produzir em um velho sobrevivente de tantas atrocidades.
— Continue Deda — disse eu.
— Pois, enquanto eu folheava as páginas do álbum, olhei para o relógio da biblioteca que mostrava ser hoje o dia 30. Pois foi exatamente em um dia 30 que o meu genro morreu em um estúpido acidente de automóvel. Ricardino, todas as pessoas do álbum estavam mortas, até o meu genro, que morreu ainda muito jovem.
Agora estava chorando copiosamente, abraçado pela sua companheira de lutas, alegrias e tristezas.
— E qual foi seu sentimento, Deda? O que você pensou vendo as pessoas que um dia amou naquele álbum, todas já tendo passado para a outra vida? O que sentiu?
Ele parou um pouco para pensar, mas depois me olhou no fundo dos olhos e disse:
— Medo, Ricardino. Muito medo. Muito medo, medo, medo.
Abraçou-se a Baba e continuou a chorar como criança. Esta me lançou um gesto de interrupção, dizendo que ele estava no seu limite. Deda era um homem sentimental, marcado pelas dores, traumatizado pelas tragédias. Olhou as imagens de morte e saudade estampadas no velho álbum e reconheceu que sua hora um dia chegaria. Pensou na própria morte e no fato de, talvez, deixar Baba sozinha, que por décadas o amparou e auxiliou. Temeu a morte porque percebeu que, por mais que a houvesse enganado nas fugas, no frio, na fome e no próprio pelotão de fuzilamento que um dia enfrentara, fatalmente ela ainda seria a vencedora. Dela não há escapatória, e as fotos antigas e amareladas de familiares que já se foram estavam a lhe mostrar a infalibilidade de seus desígnios. Era a peça que faltava ao interrogatório: a causalidade. A causa emocional profunda estava escondida. Poderíamos ter encerrado o encontro médico nas trivialidades do diagnóstico somático, mas preferimos, tal qual escafandristas, perscrutar as profundezas escuras das motivações inconscientes. Nada mais complexo, porém nada mais revelador. O medo de atingir tais profundidades é que nos faz admitir uma medicina tão superficial como a que lidamos na contemporaneidade. A questão é que, de forma espelhar, adentrar a intimidade de um paciente nos faz enfrentar nossas próprias falibilidades e limitações. Quem quer bancar o mergulhador de inconsciências em um mundo de rasas e ilusórias aparências?
Nossa medicina faz tal qual a história do homem que perdeu sua chave. Procurando insistentemente por ela, acaba esbarrando em um amigo, que se oferece para ajudá-lo. Passada mais uma hora de procura inútil, o desesperançado amigo lhe pergunta: “Tem certeza de que perdeu a chave aqui, embaixo do poste de luz?”. O dono da chave então responde: “Não, eu não perdi minha chave aqui! Perdi lá embaixo na rua, mas lá está tão escuro que resolvi procurar cá em cima, onde está mais claro”.
Fazemos com os sintomas emocionais e psicológicos dos nossos pacientes o mesmo que o protagonista da historieta faz com o breu que esconde sua chave. Fugimos da escuridão das incertezas e das dores profundamente escondidas, porque elas nos amedrontam e afugentam. Preferimos a claridade ilusória de exames laboratoriais e sinais clínicos manifestos aos sentidos. Mesmo sabendo da importância dessas características somáticas na elucidação dos mistérios diagnósticos, é certo que elas representam apenas a ponta do iceberg que constitui o sofrimento construído pelos pacientes. A humildade de encarar um universo recôndito dentro de cada ser que sofre é a principal ferramenta para se encontrar uma forma mais completa e abrangente de auxílio. Somente munindo-se da coragem fundamental para encarar a escuridão dos nossos sentimentos é que poderemos, também, ajudar a quem nos solicita assistência e conforto.
Estava feito o diagnóstico, e o tema essencial do quadro era o medo. Crise de medo, febre alta, pele quente e seca, consolidação pulmonar em base esquerda, sede, aparecimento abrupto da sintomatologia. Um remédio brotava, dentre muitos que eram sugeridos: Aconitum napellus. Falei com Baba e perguntei se devia lhe dizer exatamente o que tinha. Ela respondeu que, se fosse possível, seria preferível omitir a expressão “pneumonia”, para não deixá-lo ainda mais atemorizado. Concordei com a ideia, mas expliquei que lhe diria exatamente o que tinha, procurando não amedrontá-lo mais ainda com essa palavra.
— Deda — disse eu de forma pausada. — Há uma infecção na base do seu pulmão esquerdo. Você está com febre alta, mas não há justificativa para diminuí-la. Ela está cumprindo uma função importante no seu sistema de adaptação e defesa. Prefiro que ela se mantenha como está, ok? Estou lhe receitando um medicamento homeopático que o senhor vai tomar de duas em duas horas. A febre ainda vai continuar mais um pouco, mas quero que o senhor comece agora a medicação, por isso eu lhe deixo os glóbulos que trouxe na minha botica. Combinado?
Ele concordou. Mexeu com a cabeça afirmativamente sem dizer palavra alguma. Ainda estava afetado pelas emoções. Baba passava a mão em sua alva cabeça, e lhe dizia palavras carinhosas em russo. Levantei-me e, quando estava para sair, ele ainda me disse:
— Ricardino, eu vou ficar bom dessa pneumonia, não é?
Tive que rir. Não adiantaram os meus truques. O velho veterinário não ia se deixar enganar dessa forma. Era idoso, mas estava longe de ser bobo.
— Não, Deda — disse eu sem conter o sorriso. — Não é dessa vez que vão levá-lo.
Voltei à sua casa naquela mesma manhã. Encontrei Deda ainda abatido, mas sentado na mesa da cozinha e tomando café. Escutei seu pulmão e parecia estar a mesma coisa, mas o ânimo havia voltado parcialmente e a febre não havia mais se manifestado.
— Como está? — perguntei.
— Muito melhor — disse ele sorrindo.
No outro dia, o pulmão estava limpo, pouco mais de 24 horas depois. Nem um sinal de secreção ou ruídos estranhos. A febre acabara, porque já havia cumprido seu destino, pensei eu. Mesmo estando ainda fraco, estava lúcido, ativo, alegre e sem sintomas preocupantes. Ok, Deda, pensei eu. Você a enganou mais uma vez. Baba me lançou um sorriso de gratidão e Deda me deu um abraço à moda russa, com bastante força e fortes batidas nas costas.
* * *
Nadine manteve-se séria durante a minha breve história, mas percebi que, mesmo com algumas discordâncias, ela acreditava na possibilidade de que o psiquismo dos pacientes tivesse influência decisiva no aparecimento de sintomatologia, mesmo que complexa e de difícil interpretação. Nadine aos poucos começava a lidar com a questão da “psicossomática”, termo que Max deplorava — porque dividia “psique” e “soma”, que para ele eram indissociáveis — mas que para mim soava como o reconhecimento da mútua influência entre os aspectos psicológicos e fisiológicos manifestos pela energia vital em um determinado indivíduo.
Max acompanhou a história de longe, até porque já a conhecia, mas me lançou um sorriso assim que ela terminou.
Josh, ainda com os braços apoiados na mureta de tijolos da sacada, olhava para o horizonte como que a procurar a resposta para sua angústia no grupo de nuvens que buscava um pouco de calor nos raios avermelhados dos últimos brilhos do sol.
– Não faz diferença, Josh; o que você diz não faz a menor diferença. Entenda que seus argumentos e explicações podem inclusive ser iguais àqueles usados pelo seu oponente. O fato de que você foi colocado a priori na posição de inimigo fará com que qualquer coisa que você disser será desvirtuada para parecer o contrário do que em verdade disse. Por que perder tempo tentando achar concordâncias com quem se nega a aceitá-las?
Josh manteve-se fixado na linha do horizonte enquanto o café perdia calor e fumegava na mesa ao lado. Parecia não haver qualquer maneira de acalmar sua tristeza. Ele finalmente voltou seu corpo para o quarto, onde seus olhos encontraram Pearl sentada à beira da cama, segurando sua xícara enquanto tentava encontrar uma brecha no muro de decepções que o cercava.
– Não consigo entender porque tanta aversão. Qual o sentido dessa barreira que desafia o bom senso e a lógica?
Pearl respirou fundo para responder, mas interrompeu sua fala antes da primeira sílaba. Percebeu que também seriam inúteis suas palavras. Não haveria nenhuma possibilidade de que frases e ideias, por si só, pudessem reparar os danos. Do fundo do poço do ressentimento ele só conseguiria emergir quando o tempo fosse capaz de cicatrizar as feridas abertas. Olhou o vapor do seu café e pensou que, ele também, só poderia ser tomado quando o calor amainasse.
Terence H. Werther, “Revenge as a cursed inheritance” (A vingança como herança maldita), ed. Project, pág. 135
Terence Hash Werther começou a escrever no Kentucky Herald em 1969 como repórter esportivo, atuando na cobertura das corridas de cavalos. Ao invés de fazer análises técnicas sobre o histórico dos cavalos e suas chances estatísticas nos diversos pisos, usava da criatividade e produzia textos cheios de humor e graça. Foi o criador das famosas ‘entrevistas com os cavalos’, mas quais dublava os animais e fazia divertidas entrevistas com aqueles que estavam prestes a correr. Com o tempo, foi transferido para os setores de economia e posteriormente para literatura e arte, onde manteve uma coluna sobre cinema e livros por mais de 20 anos no mesmo jornal. Ao se aposentar escreveu seu primeiro romance, chamado “Among horses and beers”, sobre cocheiras, cavalos e jóqueis, espaços onde conviveu por muitos anos. Em “Revenge” ele acompanha os passos de Josh Daniels, um jovem judeu de Minesotta viciado em corridas e apostas que deseja ficar rico em New Jersey e voltar para sua cidade. Nada disso, aconteceu, e ele acabou envolvido com o submundo das apostas, drogas, prostituição e crime organizado. O filme baseado no livro está em fase de produção e será estrelado por Jeremy Altman no papel de Josh e Mary Gorgulho como Pearl, a garota autista prodígio que se apaixona por ele e o ajuda nas apostas.
As “Histórias Horríveis de Parto” (gênero literário muito comum na cultura ocidental) via de regra se baseiam em narrativas de terror onde as pacientes são objetos da ação de uma natureza traiçoeira. São histórias de pânico e terror, que são oferecidas às gestantes na medida em que avançam a gestação e, depois, o trabalho de parto.
Na conclusão final destas histórias surgem duas verdades cristalinas: de um lado a defectividade assassina dos corpos fracos e mal feitos das mulheres e do outro lado a capacidades excelsa dos médicos para agir e salvar vidas, que certamente seriam ceifadas caso o nascimento ficasse somente nas mãos delas.
Escutei essas histórias durante 40 anos e até já fui testemunha de casos em que médicos astutos e corajosos efetivamente salvaram vidas, mas posso lhes garantir que na maioria esmagadora das vezes os profissionais se limitavam a consertar os estragos que não existiriam sem a a interferência indevida dos profissionais e das instituições no processo fisiológico do parto.
Acreditar cegamente nas histórias contadas pelos atores que detém o controle sobre o parto é sucumbir ao poder que eles têm de valorar esta narrativa. Este é um caminho certo para a submissão. Ter uma postura crítica diante desse tipo de histórias é importante para olhar o fenômeno do nascimento sem as capas espessas que a cultura construiu ao seu redor.
Hoje me mandaram os vídeos e áudios de um caso de atenção violenta ao parto numa grande cidade brasileira. Não acho razoável que o nome do profissional seja citado por nós, e acredito que poderei explicar as razões para essa discrição nas linhas que se seguem abaixo.
Quando eu ouvi os diálogos na sala de parto fiquei espantado, mas talvez de uma forma diferente da maioria das pessoas. Em verdade, eu me senti como o cicerone de um campo de refugiados que mostra aos visitantes as condições precárias do lugar onde os exilados vivem. Para mim, algo banal, para os visitantes um quadro de horror. Assim, as cenas de violência verbal e abusos que eu escutei nada mais eram do que o padrão da assistência ao parto de que eu fui testemunha por tantos anos. Meu espanto não era pelo conteúdo, mas pelo fato de que ainda existem expressões dessa violência na terceira década do terceiro milênio depois de Cristo.
Eu bem sei o quanto o parto é estressante para os profissionais que o atendem. A configuração constrita das famílias contemporâneas produz uma concentração de expectativas e projeções inédita nos poucos filhos que nascem. Alie-se a isso o projeto da obstetrícia – desde sua criação – de produzir sobre o fenômeno fisiológico do parto todo o apavoramento possível, para assim garantir aos médicos – personagens da undécima hora na atenção a esse evento – a garantia do quinhão maior e mais suculento desse corpo esquartejado de mulher. Por estas razões, o parto no mundo ocidental opera sob o signo do medo, de um pânico que ultrapassa o medo natural das mulheres diante de fenômenos especiais que ocorrem em seu corpo. Esse medo atinge o parceiro, a família, a equipe, a instituição e toda a sociedade. Com todo esse estímulo ao pavor que circunda o nascimento é fácil entender porque ele se torna, muitas vezes, um circo de horrores.
Enganam-se aqueles que, com os archotes nas mãos, procuram no linchamento do profissional que usou da violência, da arrogância e do abuso como linguagem a solução punitivista – portanto equivocada – deste tipo de problema. Fazer isso seria tratá-lo como uma “exceção”, o que está longe da verdade. O problema não está com um profissional que perdeu o rumo da atenção, deixando que a sensação de impunidade, a ansiedade e a angústia dominassem seu discurso e contaminassem suas palavras com desdém e prepotência. Seria muito fácil se assim fosse; bastaria obrigá-lo a um processo de reeducação sobre a atenção à mulher, encaminhando-o a uma “reciclagem”. Mas, infelizmente, não é esse o drama que temos de encarar.
A verdadeira tragédia é o fato de que este é o discurso hegemônico da obstetrícia. Esta não é uma exceção. A atenção ao parto, conforme a sua vertente médica, tecnocrática e contemporânea, olha para a mulher como o estorvo do parto. A mulher e seu sistema defectivo e falho de gestar e parir, são os problemas que atrapalham a adequada atuação do médico. A incompetência essencial do organismo feminino é a responsável pelas demoras, falhas, complicações e tragédias, e não a incapacidade dos profissionais de lidar com esse evento.
Recordei agora de uma paciente grávida que me mostrou o vídeo do seu parto prévio. Nos momentos imediatamente anteriores à expulsão do bebê o médico perdeu o foco dos batimentos cardíacos, quando já estava ocorrendo o coroamento – talvez porque o peito do bebê estava atrás do púbis. Apavorado diante da falta de batimentos ele grita para a mãe: “Menina, faça força. Agora você precisa me ajudar!!”. Isto é, até aquele momento ele, o médico, havia trabalhado sozinho, mas a partir da pseudo emergência (o bebê nasceu em perfeitas condições) seria necessário que a mulher também colaborasse no nascimento da criança. Longe de ser um equívoco, tratava-se de um “freudian slip”, um ato falho, que demonstrava qual a posição que ele acreditava se encontrar no cenário do nascimento. Na percepção desse obstetra, ele estava parindo, enquanto a mulher representava as dificuldades que ele tinha a vencer para salvar a ambos, mãe e bebê.
O drama, que agora fica evidenciado pelo escândalo, se estabelece pelo fato de que, ao contrário das outras especialidades médicas – onde os pacientes são objetos inermes sob o controle do profissional – no parto é a mulher quem o faz acontecer. Assim, ela não é uma paciente – o nome “paciente” se refere àqueles que sofrem, que padecem – mas agente ativa do que está ocorrendo com seu corpo e suas reações. Ela não está doente, e nem está padecendo de nenhum mal, mas inobstante esse fato, é tratada pela medicina contemporânea como se assim o fosse, colocada numa posição objetual, negando-se a ela posição ativa no processo, impedindo-a de ser sujeito – e não objeto – de suas ações. Mas, para ser justo com os médicos, como pedir que eles passem anos objetualizando seus clientes para melhor intervir em seus corpos e, na obstetrícia, esta lógica se apresente a eles absolutamente invertida?
Na mentalidade médica contemporânea os insultos e os gritos estão colocados na posição do escalpelo e da tesoura, entendidos como instrumentos para subjugar um corpo que não colabora com os desejos e os tempos do médico e se contrapõem à lógica da medicina. Não deveria causar espanto que a adoção dessa perspectiva centrada nos cirurgiões invariavelmente redundaria na artificialização do nascimento e na expropriação do processo, retirando-o das mulheres e colocando-o nas mãos do médicos. Justo, parece, que eles reclamem quando as mulheres atrapalhem o “seu” trabalho.
Portanto, para que as violências verbais e os abusos contra a autonomia e a dignidade das mulheres deixem de ser o padrão não basta apenas utilizar a lógica serjomorista de “vigiar e punir”, imaginando que a punição, a exclusão e o linchamento público poderão produzir resultados positivos. A vingança é sempre traiçoeira; oferece um suave sabor ao ser consumida, mas uma inexorável indigestão depois de metabolizada. Mais demorado, mais custoso e mais difícil é colocar o dedo na ferida da atenção médica e institucional ao parto normal eutócico, questionando seus alicerces, denunciando suas falhas grotescas e seus resultados pífios. Apesar de mais complexo e demorado, este é o caminho mais seguro para garantir um valor revolucionário ao nascimento que, ao ser transformado (como bem o sabemos), transformará toda a sociedade.
“O que transforma o parto em um evento cercado de medo e pânico é a “cultura do medo” que empodera instituições e corporações às custas do empobrecimento da experiência materna e da submissão à tecnocracia – a criação humana que mais se assemelha a uma religião planetária.”
Os médicos morrem de medo do parto.
A formação médica em obstetrícia é centrada na intervenção, até porque foi o uso das ferramentas (a começar pelo fórceps e depois pelo escalpelo na episiotomia) que separou a parteria da medicina. Quanto mais intervém, mais importante parece o trabalho do médico. A própria obstetrícia é – pelas suas origens – a negação da autonomia feminina na parturição. A medicina, ao intrometer-se no nascimento, produz um corte epistemológico profundo no próprio entendimento do nascimento. A partir de então a intervenção seria a regra, e as mulheres entendidas como inerentemente incapazes de dar conta de um evento inscrito em sua biologia. Defectivas, incapazes, incompletas – assim entendidas e assim vistas por si mesmas, as mulheres entregam-se docilmente à tecnocracia que poderá resgatá-las do destino cruel produzido por uma natureza madrasta.
Médicos são educados dentro dessa perspectiva. Julgam-se salvadores por resgatarem as mulheres das agruras do parto, um evento mal planejado e defeituoso em essência. “A natureza é uma péssima parteira”, já falava o patrono da obstetrícia brasileira, Fernando de Magalhães.
Como poderia ser diferente para um médico de pouca experiência onde a ênfase recebida da escola médica não é a normalidade do parto, mas suas franjas, as patologias, os casos raros, os desastres, e as circunstâncias em que podem se tornar heróis? Ao lado deste senso de importância desmedida existe o medo criado por uma visão catastrofista do parto. Mal percebem que a maior parte das catástrofes do parto ocorre pela própria intervenção intempestiva e injustificada no processo de nascimento, desde a patologia da palavra – a verbose – usada durante todo o pré-natal (onde a semente do medo é plantada) até as internações precoces, as drogas, o isolamento, a doentificação, a patologização etc…
Médicos encaram o parto com pavor, pois sabem – como dizia Holly Richards – que ele contempla os elementos mais temidos da cultura: vida, morte e sexualidade. Não por outra razão o atendimento hospitalar ao parto é totalmente ritualizado, sem nenhuma conexão com evidências, mas que usa da padronização, da repetição e do simbolismo para criar uma atmosfera de proteção mística, onde a ação do médico poderia gerar – mesmo que de forma fantasiosa – resultados positivos em um processo cujo resultado é sempre imprevisível.
Tenho visto inúmeros “vídeos denúncia” circulando pela infosfera com imagens de médicos ou enfermeiras que “agrediram pacientes ou acompanhantes”.
Não vou entrar no mérito de cada um dos casos que me mandaram; é difícil se posicionar quando não há o contexto de como, onde e porque tudo ocorreu. Todavia, peço que façam um simples exercício de empatia e se coloquem no lugar dos profissionais de medicina ou enfermagem diante desses casos limites que aumentaram muito durante a pandemia.
Em muitos vídeos era evidente o grau de stress dos atendentes. Raiva, cansaço, indignação, medo e esgotamento físico e psíquico. Muitos estavam atendendo há várias horas, arriscando suas vidas e se colocando diante de pacientes igualmente angustiados – que por sua vez também estavam aguardando há muitas horas por um atendimento.
Para piorar a tensão familiares sacam o celular e começam a registrar as consultas. Cada câmera funciona como uma pistola apontada contra a cabeça dos profissionais. Ou pior; como um fósforo pronto a incandescer o pavio encurtado de uma dinamite de emoções represadas.
Respondam: quem teria condições psicológicas de atender alguém diante de tamanha pressão? Como estabelecer um laço de cuidado e empatia diante dessa ameaça explícita? Como é possível produzir vínculo de confiança sob ameaça?
Acho que maus atendimentos devem ser denunciados, mas nenhum atendimento pode ser bom se quem atende está sob ameaça com um destruidor instantâneo de reputações apontado para o rosto.
Sejamos empáticos. Estamos em crise. Dedos apontados e ameaças não melhoram em nada a atenção médica ou de enfermagem. Desarmem os espíritos e levem em conta a crise terrível que todos estamos enfrentando.
Sejamos mais fraternos. Profissionais da saúde também tem família, medos e sonhos
As vezes escrevo coisas duras porque me deixo levar pela volúpia da escrita. Enquanto bato nas letras escuto, no silêncio que separa as palavras, aquela voz conhecida que me diz: “Não é o momento“. Paro e olho para a tela, mas volto a maltratar o teclado e resisto. Em desespero ela volta a dizer “Estar certo não é o suficiente, pois a verdade não tem valor por si; ela precisa promover o bem“.
Reluto, mas sou de súbito tomado por um sentimento de dever, assaltado pelo medo de me calar quando deveria estar puxando as palavras de ordem. “Vai se acovardar?“, me pergunto. Consigo novo alento e termino a derradeira frase. No momento que minha mão se aproxima da tecla “enter” sinto um frio a percorrer a espinha, a sensação de culpa antecipada pela possibilidade de produzir dor e angústia com a ponta afiada de uma verdade. Leio de novo o pequeno parágrafo. Tento conversar com as ideias que eu mesmo coloquei à minha frente. Sou soterrado pela dúvida. A voz novamente me fala “Você consegue“, diz ela. “Sei que é capaz“.
Respiro fundo e apago tudo. Procuro fazer de uma vez só, para não cair na tentação de guardar um trecho na memória e voltar a escrever mais tarde.