Monark é um jovem tipicamente paranoico. Sua perspectiva de mundo é perturbada, fanatizada, unívoca e sem materialidade. Ele muito se assemelha a jovens cooptados pelas religiões, cujas ideias circulam em torno de uma crença central e nem a realidade visível é capaz de demovê-los de sua perspectiva. No lugar do demônio, o Estado; no lugar de Jesus, a “liberdade”, e não importa que isso não se perceba no mundo de verdade; a ilusão é mais forte e intensa que o real. Eu sequer acho que Monark seja de “direita”; ele é um anarco capitalista ingênuo, com ideias estapafúrdias, ideações persecutórias e uma visão de mundo ilusória onde o Estado malvadão não deveria ter qualquer importância e o Mercado a tudo deveria direcionar e regular. Conheço alguns adultos assim, e não acho que estas pessoas devam ser censuradas. Entretanto, o Monark era uma figura apenas folclórica antes do ataque insano de personagens malévolos como o Alexandre de Moraes. A perseguição verdadeira pode destruir psiquicamente um sujeito que já é, estruturalmente, paranoico.
O seu sofrimento é nítido e inquestionável, sua dor é palpável. Os ataques a pessoas com ideias aberrantes, longe de curar seus problemas, acentuam suas radicalidades. A maneira pela qual tratamos Monark, através da censura e agora do deboche, mostra o caráter autoritário tanto dos ministros do supremo quanto, infelizmente, de boa parte da esquerda liberal. Nunca houve, na história da humanidade, uma ideia que tenha sido sepultada pela censura, mas boa parte das ideias – mesmo aquelas aberrantes que nos atormentaram – foram fortalecidas pela tentativa de silenciá-las.
Eu sei o quanto isso soa cafona e piegas, mas o Monark precisa de um abraço, e isso não significa concordar com suas ideias, muito menos deixar de combatê-las com rigor. Se isso não for possível, acredito que interromper as mentiras e os ataques insanos da justiça burguesa sobre ele o ajudariam muito.
Como a história cansa de nos dar lições, censurar para esconder as contradições da realidade jamais será solução para nada. Na questão dos algoritmos e do bloqueio de fake news todo mundo acerta no diagnóstico, mas quando é para apontar a solução, continuam apostando na velha alternativa do silenciamento, na supressão e na proposta de não permitir que os “fascistas” (no nosso caso) e os “comunistas” (no caso deles) tenham vez e voz. No fundo, essa proposta é o que classifico como o velho “modelo materno”, que se aplica quando a mantemos os protegidos (as crianças) num estrato onde não têm autonomia por não possuírem ainda condições para se defender. É o que as professoras fazem na escola primária: protegem os alunos do bullying e das brincadeiras maldosas, como uma mãe o faria, porque sabem que são crianças indefesas. O problema dessa proteção é que os protegidos se tornam o objeto do nosso controle. Em nome da sua segurança, impedimos que se tornem sujeitos independentes, evitando que o mal chegue a deles Fazemos isso porque acreditamos na sua incapacidade de lidar com as agressões e ofensas. De novo, como qualquer mãe amorosa faria.
Todavia, chega um momento em que as crianças pedem que as mães não cheguem à porta da escola. O cuidado e o controle que elas recebem das mães (e aqui “mãe” é a função, não a “pessoa”) torna-se um fardo. Não querem mais proteção; querem liberdade. Nesse momento é que entra o “modelo paterno” que, ao invés de impedir a chegada do mal, reforça as qualidades intrínsecas do sujeito para que ele possa, por si, se defender. Assim, ao invés de proibir as piadas com gays, pretos, gordos ou narigudos, o esforço será em reforçar o orgulho de pertencer a qualquer uma dessas identidades. Da mesma forma, ao invés de proibir conteúdo de extrema-direita, a solução seria estimular a perspectiva de mundo do sujeito socialista, internacionalista e fraterno, na construção de uma nova sociedade, assim como mostrar o ridículo das posições fascistas, racistas, sexistas e todas as expressões do fascismo. Entretanto, sem calar, sem cercear, sem proibir, pois nossa experiência com os preconceitos – todos – e mesmo o próprio nazismo deixam claro que as proibições são inúteis.
Isso não significa que não se pode proibir nada. É proibido violar a lei, e para isso as leis são criadas. Entretanto, opinião não é crime, mesmo aquelas perspectivas mais abjetas, como as racistas ou anti-LGBT. Se as proibições motivadas pela sensibilidade do ofendido forem tomadas como lei, chegaremos rapidamente a 1984 de Orwell, onde um Xandão qualquer pode dizer que ser a favor de parto normal (ou ser comunista) pode levar à morte de pessoas (ou ao “genocídio stalinista”). Para se configurar o crime não se exige mais um ato; basta pensar em voz alta e emitir opiniões. Se estas manifestações – repito, mesmo as bizarras – forem passíveis de silenciamento a delicada tessitura da democracia e do livre pensar desaba, pois que a expressão das ideias vai acabar dependendo do humor e dos valores de um títere qualquer que detenha o poder de discriminar o bom do mau, o certo do errado.
Boa parte das pessoas (a maioria?) ainda acredita que “calar os maus” faz sentido. São os mesmos que acham que linchar um criminoso na rua em flagrante é justo, pois, afinal, por que esperar por toda a burocracia da justiça se podemos fazer um “atalho”? Acreditam ser possível combater o crime com mais crime – como fizeram Moro e a Lava Jato. Estes acreditam que, quando calarmos à força quem de nós discorda, estamos corretos, pois o silêncio que se segue nos dá a ilusão do sucesso. “Veja como acabou o racismo, ninguém mais fala mal de negros!!”, quando em verdade este e outros preconceitos continuam na alma dos sujeitos, e seu preconceito se expressa apenas em sussurros, nos cantos, nas surdida, mas vivo e atuante. Repito: de que adiantou calar os comunistas? Que ocorreu com a proibição do nazismo? Olhem a Alemanha de hoje e o sucesso da AFD (Alternativa para a Alemanha)!! Vejam o bolsonarismo, vivo e forte. Analisem a vitória do Milei e de Trump!!
As proibições e o punitivismo são tão sedutores quanto inúteis. Os Estados Unidos – à mais bem sucedida ditadura burguesa do planeta – têm 2 milhões de encarcerados. Se o silenciamento social desses indivíduos tivesse algum sucesso, era de se esperar a diminuição dos níveis de criminalidade e violência, não? Pois o que se vê é o oposto; a tendência no mundo inteiro é o incremento da violência pelo fracasso das promessas do capitalismo. Da mesma forma, o silenciamento da livre expressão de teses contrárias ao nosso entendimento jamais teve sucesso. O proibicionismo sempre fracassou como instrumento pedagógico. Mas cabe lembrar que “Vamos matar o presidente!!” não é uma opinião, mas um claro incitamento ao crime. Confundir isso é uma constante naqueles que não gostam da liberdade de expressão. Estes são os mesmo que dizem que gritar “fogo!!!” em um cinema lotado deveria ser proibido, pois colocaria todos em risco, mas sem compreender que “fogo” não é opinião e não expressa uma perspectiva subjetiva e particular do mundo. Essa metáfora é usada até hoje por juristas que desejam limitar a liberdade de expressão, dizendo que ela não pode ser “absoluta”, mas falhando em determinar a quem cabe a decisão final.
Estes que aceitam a “censura do bem” acreditam que ela é justa porque partem da crença que possuem a perspectiva correta do mundo e por isso não haveria problema em silenciar os “errados”. Isso muda de figura quando alguém, um poderoso, um ditador ou um ministro direitista consegue impedi-lo de expressar suas ideias “corretas”.
Aí talvez aí resolva voltar às ruas para exigir liberdade.
O Imperador do STF Alexandre de Moraes, conhecido como Xandão, disse que quem “comemorar” o 8 de janeiro estará praticando crime. Fico imaginando como ele situa isso no código penal freestyle que ele criou dentro da sua cabeça. Segundo ele disse, essa comemoração significaria “instigar golpe de Estado”. Peço, ao renomado Ministro, que defina o que é “instigar”. Por acaso comemorar o fim da II Guerra Mundial seria instigar ódio aos alemães? As pessoas ainda não entenderam que Alexandre de Morais é da mesma turma dos bolsonaristas, mas de um clã diferente. O ódio de Alexandre é porque ele estava com o nome no caderninho dos matadores contratados por Bolsonaro e sua turma. Não é o amor pela democracia e muito menos pela justiça o que o move: é amor a si, autopreservação, vaidade e desejo de protagonismo.
O ativismo jurídico que ele agora exerce apenas circunstancialmente nos beneficia. Na primeira vez que a esquerda resolver parar o país exigindo mudanças profundas, ele vai se voltar contra a classe trabalhadora e vai interpretar a greve – ou a passeata, manifestação, paralisação, ocupação- como “incitação ao golpe de Estado”. Pronto: prende Lula, prende os parlamentares, prende o trabalhador, encarcera senhoras de idade, e tudo aparentemente para salvaguardar a democracia.
Sabem por quê? Porque ele pode tudo e ninguém diz nada!!! Esse sujeito, apesar de não ter votos, manda no país mais do que o presidente, criando da sua cabeça leis que não existem (como todas as interpretações absurdas da lei do racismo “por inferência”), atropelando a constituição para impedir Lula de concorrer, julgando casos onde ele é (pasmem!!) vítima e juiz ao mesmo tempo, e agindo como um imperador, sem precisar dar satisfações a quem quer que seja.
Quem defende o Ministro Alexandre sofre de “síndrome de Estocolmo”. Criaram a fantasia de que ele “salvou a eleição”, quando, em verdade, ele impediu a eleição de Lula quatro anos antes através do seu golpe no STF, no qual rasgaram a constituição para impedi-lo de concorrer. Anotem aí: muito antes do que se espera haverá um golpe de Alexandre contra alguma manifestação popular da esquerda. O mesmo autoritário que cortava pés de maconha vai atacar a livre manifestação do povo por um governo melhor e mais justo.
Por que cargas d’água (essa é do meu tempo) a esquerda brasileira está em peso atacando Glenn Greenwald e a Folha apenas por revelarem o que nós – a esquerda radical – dizemos há muitos anos: Alexandre de Morais é um golpista, demagogo, representante da burguesia fétida que comanda o Brasil e que cometeu inúmeros desmandos enquanto Ministro do Supremo. Por que razão agora esta esquerda resolve que “Xandão” é um “herói”, e pior ainda, um intocável? Por que criticam a forma e não o conteúdo? Por que não analisam o mérito das acusações graves contra o Ministro? Por acaso alguém deveria se surpreender quando um Ministro do Supremo usa de seu poder para artimanhas e jogadas políticas? Por acaso as ilegalidades e inconstitucionalidades do STF não foram, desde sempre, entendidas como “parte do jogo”? Lembram do “não tenho provas, mas a literatura me permite”? Qual o espanto com a existência de ministros venais?
Esse ministro não teve nenhum problema em colocar Lula na prisão desrespeitando frontalmente a Constituição Brasileira. Depois ele votou pela manutenção de Lula na prisão, quando não havia trânsito em julgado para justificar esta detenção. O mesmo Alexandre que brigou com bolsonaristas e prendeu aqueles mambembes que atacaram os prédios de forma desorganizada, foi quem favoreceu a candidatura de Bolsonaro tirando Lula criminosamente da disputa. Ou seja: Alexandre é um representante dos interesses da elite financeira, da Globo, do agro e de todas as forças reacionárias do país. Quem acredita que esse sujeito tem qualquer compromisso com a esquerda – ou mesmo com a justiça – apenas porque é atacado pelos bolsonaristas esteve em coma profundo nos últimos 10 anos, desde o tempo de sua ascensão à secretaria de segurança de São Paulo – local onde todo candidato a monstro faz seu estágio.
Qual a razão para o espanto? Por acaso deveríamos nos surpreender com atitudes pouco republicanas de integrantes do STF? Essa corte apoiou o golpe de 1964 e o de 2016!! Esteve junto, ratificando e aplaudindo, o impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma e a prisão imoral e ilegal de Lula. Aplaudiu (até se tornarem inadequados) os desmandos de um juiz corrupto como Sérgio Moro. Alexandre de Morais esteve à frente de todos os crimes contra a Constituição brasileira dos últimos anos. Por que tanta solidariedade?
Até quando a esquerda cirandeira vai achar que Bolsonaro é o nosso inimigo?? Bolsonaro é o fascista que as elites elegeram e agora estão descartando, como o bagaço de uma laranja chupada. O inimigo das esquerdas são aqueles que puxam os cordéis, os quais movem os marionetes. Os reacionários da vez já foram Collor, FHC, Temer, e tantos outros do passado. O “bolsonarismo” já existia muito antes de Bolsonaro ter sido parido, e nessa corrente liberal Alexandre de Moraes é uma figura notável. Não se deixem enganar!!!
No dia 21 de maio 2024 aconteceu (mais uma) bela lapada em todos os tolos da esquerda liberal que acreditaram que o marreco de Maringá um dia seria punido. O ex-juiz Moro foi absolvido no TSE por 7 X 0. A esperança ingênua de que fosse feito justiça por um órgão historicamente golpista é a marca registrada de uma esquerda que não aprende as lições, apesar da severidade dos acontecimentos. Nossa fé em figuras medíocres como Carmem ou Alexandre, sem falar nos nefastos Nunes e Mendonça do STF, é atestado de infantilidade política. A direita tem mesmo suas razões para reclamar do autoritarismo desses personagens, mesmo que por razões não democráticas.
Uma esquerda que serve de suporte acrítico às instituições burguesas – polícia, forças armadas, supremo – não mereceria sequer o nome de esquerda, pois é impossivel aceitar docilmente que a salvação da democracia brasileira pudesse vir dos representantes máximos da burguesia nacional. Acreditar nisso é o mesmo que exigir de um rebanho de ovelhas que apostem no bom coração e nos princípios dos lobos para escapar da carnificina. Antes de construir um movimento forte é necessário reconhecer seus inimigos. Como diria Sun Tzu “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas.”
Respondam com sinceridade: se fosse Lula a sentar no banco dos réus no TSE, acham mesmo que a “prudência” seria utilizada para seu julgamento? Estariam os ministros tão aferrados à uma interpretação benigna das ações do ex-presidente? Lula foi preso por um apartamento que nunca foi seu!! Dilma foi defenestrada sem cometer qualquer crime. José Dirceu foi condenado sem provas, mas pela “literatura internacional”. Se necessário, o judiciário tira leis da cartola para condenar a esquerda – sem vergonha alguma para criar suas próprias leis, no melhor estilo ditatorial. A história recente dos julgamentos de personidades da esquerda mostra que a balança sempre pesa contra o povo e a favor dos representantes das elites financeiras e do poder burguês. Aceitar passivamente essas instituições é uma ingenuinade que não se pode admitir para partidos que pretendem mudar a história desse país.
No Brasil você é proibido de defender a legalização de um partido nazista; isso está na legislação. Entretanto, a gente sabe que nossa constituição é maleável; ela pode ser suplantada pelo simples desejo de um ministro do STF, bastando para isso que ele sinta ameaçada sua perspectiva burguesa e liberal. E vejam: não se trata sequer de defender um partido nazista ou sua plataforma racista, opressora e excludente, mas simplesmente reconhecer o direito de fascistas aparecerem à luz do dia e saírem do esgoto. Pois isso, para Alexandre de Moraes, já é motivo para perseguições. Monark, o menino ancap, está sendo perseguido por querer bancar o Voltaire em terra de Xandão (*).
Por outro lado, você pode criar um partido de inspiração e financiamento sionista no Brasil de forma absolutamente livre. O sionismo é uma ideologia supremacista e colonial que já matou milhões de palestinos, direta ou indiretamente, nos últimos 75 anos. Durante o Nakba, em 1948, expulsou 750 mil palestinos de suas casas e criou um país artificial, roubando a terra dos seus moradores originais. Israel se tornou a última colônia opressora ocidental, onde só uma identidade tem plenos direitos, em detrimento de todas as outras. Estabeleceu um regime explícito de Apartheid, separando os judeus do “resto”, em especial os árabes – a população nativa do local. No último massacre, ainda em vigor, mais de 30 mil pessoas, a maioria de mulheres e crianças foram mortas. Os crimes de guerra – ataque a hospitais, aos campos de refugiados, aos médicos, enfermeiras e jornalistas, etc. – são difundidos abertamente pela Internet e pela TV, crimes escancarados, vistos por milhões de pessoas no mundo inteiro. Cinicamente matam, prendem, humilham e abusam. Apesar disso, as redes de TV e os jornais podem defender abertamente esse regime, sem sofrer qualquer admoestação por parte das instituições jurídicas.
Ou seja, o problema não é a defesa de sistemas de poder fascistas, racistas e opressivos; isso podemos ver como acontece abertamente pela defesa de um país terrorista como Israel. O drama está em quem tem o poder de discriminar o que pode ou não ser proibido. Por certo que não é o povo brasileiro, mas uma elite jurídica que determina o que pode ou não ser visto por nós. No caso brasileiro, os ministros do STF concentram esse poder, atuando por cima de todos os outros poderes; a palavra de um Xandão vale mais do que a do presidente ou mesmo do Congresso Nacional inteiro – que ao contrário daquele, foram escolhidos diretamente pelo povo.
Assim, dá para entender as razões pelas quais a extrema direita autoritária e a extrema esquerda focam no mesmo ponto: o autoritarismo do STF é perigoso. A extrema direita fascista, por certo, por questões oportunistas: eles são as vítimas de hoje, uma vez que seus líderes estão a ponto de serem encarcerados pela ação do STF. Porém, seria uma suprema ingenuidade acreditar que a extrema direita preza valores como a liberdade, se estão sempre à frente das ditaduras que destroçaram a democracia no mundo inteiro. Já para a esquerda radical a questão é mais estrutural; entende que o mesmo Alexandre que deseja “limpar” as redes sociais foi o sujeito que apoiou o golpe contra Dilma, a prisão ilegal de Lula e rasga elogios ao traidor da pátria Michel Temer sempre que pode. Portanto, Xandão está longe de ser um legalista e alguém que defende a democracia e a constituição; ele é de fato um golpista e mais um árduo defensor dos poderes burgueses. Repetindo: é possível denunciar Alexandre de Moraes como um autoritário – um sujeito colocado no poder por um traidor e que abusa do seu poder – sem ser simpático ao bilionário, drogadito, ancap, golpista que estimula e patrocina golpes na América Latina.
(*) sim, eu sei que Voltaire não disse aquela famosa frase, mas se eu colocasse o nome de sua verdadeira autora – Evelyn Beatrice Hall, biógrafa de Voltaire – ninguém iria sacar a analogia.
Prestem atenção no voto do todo-poderoso Ministro Alexandre de Moraes: caso você tenha a oportunidade pouco agradável de um encontro com a polícia, não ouse correr. Se você se afastar da polícia (entre outras razões, porque tem medo de ser morto por um policial mal treinado e em pânico), isso dará aos policiais o direito de invadir a sua casa – mesmo com o uso da força, derrubando sua porta à patadas – sem mandado judicial e sem flagrante delito, apenas por ter se portado de forma “suspeita” (como dizem os americanos, de forma irônica: “suspicion is a felony or a misdemeanor?”). Ou seja: uma atitude “suspeita” – segundo os critérios subjetivos do policial – poderá justificar a invasão da sua casa. Essa invasão violenta do Estado ao caráter “inviolável” do domicílio foi defendida pelo “Príncipe da Democracia”, Alexandre de Moraes.
A sedução de aplaudir o algoz do Bolsonaro assumiu proporções quase incontroláveis. Espaços virtuais como “esquerda compra de esquerda” já vendem memorabilia com a face do “Xandão”, tratando-o como um verdadeiro ícone nacional. Passamos a tratar como herói um sujeito cuja história é marcada por episódios de autoritarismo explícito. A exaltação do ministro psdbista por sua ação nas últimas eleições é uma profunda ingenuidade, pois que sua postura autoritária se tornou evidente desde o episódio do corte dos pés de maconha.
Esse pendor para as ações punitivas não deveria causar espanto no campo progressista, mas boa parte da esquerda liberal ainda se deixa seduzir por frases de efeito, demonstrações de virilidade e ações pirotécnicas. Alexandre foi indicado pelo golpista Temer, o que já deveria nos causar repulsa, e suas posições sempre tiveram como norte uma perspectiva arrogante e autoritária. Aplaudir suas ações é um ato de expressa ingenuidade que a esquerda raiz deve repudiar.
E vejam bem; os lavajatistas confessos Facchin e Barroso foram contrários a tese da liberalidade oferecida às forças repressoras do Estado de invadir sua casa. Ou seja, até mesmo os ministros mais reacionários compreendem a gravidade de permitir estas invasões e defendem a manutenção da proteção do cidadão diante do poder massacrante da polícia. Para a surpresa de nenhum marxista consciente, Xandão se associa às forças sociais mais retrógradas e escolhe a perspectiva abusiva que atropela o direito individual.
Hoje escutei que os supostos sopapos que Xandão e seu filho tomaram no aeroporto de Roma foram, na verdade, um “ataque ao Estado Democrático de Direito”, com pena de até 8 anos de reclusão. Ou seja: se você troca socos num estádio de futebol recebe uns cascudos do policiais e um chá de cadeira do delegado. A mesma coisa acontecendo com um morcego ungido vale quase uma década na cadeia.
Se isso realmente acontecer, a esquerda deve se preparar para as piores arbitrariedades do judiciário, e a próxima greve será tratada com tiros, canhões, helicópteros, drones etc., pois qualquer manifestação explícita de contrariedade será tratada como “ataque direto à democracia”.
O fato (discutível) de que o Alexandre fez alguma coisa certa (nada além da sua obrigação) não deveria nos levar a esquecer os crimes que ele cometeu – como manter Lula preso sem provas. Por acaso essa turma que exalta o Ministro acha mesmo que estamos “devendo” nossa democracia ao Xandão – que, ressalte-se, foi indicado pelo golpista Michel Temer?? Acreditam que o fato de ele ter agido bem contra os bolsonaristas lhe permite ser blindado de críticas pelas suas atitudes oportunistas e contrárias à própria constituição – como esquecer que uma prisão apenas pode ser determinada após o transito em julgado?
Xandão é golpista, mas a esquerda liberal não quer enxergar o golpe que ainda teremos pela frente. Alexandre de Morais tem zero apreço pela constituição, e muito amor pelo poder. Ver a esquerda apoiando a prisão dos insatisfeitos é algo que eu jamais conseguirei aceitar.
Rui Costa Pimenta, em uma análise publicadas nas redes sociais há poucos dias, está certo ao denunciar os riscos de uma caçada jurídica a Bolsonaro & Filhos. Nesse caso, a esquerda liberal cirandeira – como sempre – está errada. Rui percebeu que a criação de um mito da direita, um “mártir da liberdade de expressão”, poderá ressuscitar Bolsonaro, retirando-o do limbo político onde se encontra depois de saiu do seu cargo e que seu inúmeros crimes foram descobertos. Os crimes que apareceram até agora – como a adulteração do cartão de vacinas – não vão mantê-lo muito tempo afastado da política. São crimes muito frágeis para colocar em risco – ainda mais destruir – o mito bolsonarista.
Pensem bem: o mesmo ocorreu com Lula. Eu questiono se essa estratégia de ataques insistentes pelo aparato judicial não tende a fracassar da mesma forma como aconteceu com os ataques à Lula; pouco tempo se passou e Lula voltou à cena política, e ainda por cima concorreu e venceu as eleições. Por que não poderia ocorrer o mesmo com Bolsonaro? É chato ter que concordar com as visões mais racionais e abandonar nossas ilusões, mas a preocupação que muitos têm demonstrado com o futuro do bolsonarismo – com ou sem Bolsonaro – é legítima e faz todo o sentido. Pode ser até que nossas preocupações estejam sendo superestimadas, afinal Bolsonaro não tem 10% da capacidade de articulação política de Lula, mas ainda assim olhar este movimento de extrema direita como uma força popular viva e atuante é essencial para poder vencê-lo. Neste aspecto, a postura do PCO sempre foi absolutamente coerente: contra o bolsonarismo, mas sem se iludir com os ataques (inúteis) à pessoa de Bolsonaro e aos bandidos que o cercam.
Querem exemplos? Ferdinand Marcos Júnior é o atual presidente das Filipinas, e isto ocorre porque a deposição de seu pai por uma revolução não exterminou a ideologia de vassalagem ao imperialismo que ele representava. A filha de Keiko Fugimori, quase foi eleita (e não há dúvida que existem chances grandes de que será em breve). A direita se revigora, mesmo quando as personalidades (Fugimori pai, Ferdinand Marcos pai, Bolsonaro) são caçados pelos cirandeiros e a esquerda de visão curta. Enquanto perdemos tempo obcecados por personalidades, as ideologias se metamorfoseiam em novos corpos e retornam ao poder.
Todavia, não sou contra a penalização de Bolsonaro, assim como acredito que Heleno, Mourão, Moro, Dalanhol, os militares et caterva devem pagar pelos crimes cometidos desde os golpes de 2016 contra Dilma e a prisão arbitrária de Lula. Mais do que isso: se esses personagens passarem incólumes por seus crimes, como aconteceu com os torturadores e os militares da ditadura militar, nosso país estará condenado a mergulhar no fosso do atraso e da estagnação por mais 50 anos. A impunidade criminosa dos artífices do regime de 64 nos condenou a repetir na atualidade a promiscuidade da caserna com o poder. Todavia, permitir que nossos ataques sejam centrados em personalidades – e não na ideologia fascista que eles representam – é um erro grosseiro, que poderá nos custar muito caro. Não é possível atacar Bolsonaro enquanto deixamos a direita de Alexandre de Morais, Waldemar da Costa, Temer, Tarcísio etc, correr solta, ainda mais quando vemos tanta gente que se considera de esquerda exaltar o autoritarismo performático de um juiz do supremo.
Não esqueçam: a história ensina que em todas as épocas da humanidade o abuso de autoridade e o punitivismo sempre acabaram penalizando a classe operária, mesmo que nos primeiros momentos possam ter nos iludido, atingido de raspão a classe burguesa – que, em última análise, sustenta e o promove o sistema judiciário.
Já é hora de parar com a mania que a esquerda liberal tem de fazer elogios rasgados e imerecidos ao STF. O supremo tribunal é uma instituição pusilânime, que referendou todos os golpes no Brasil, e Lula tinha razão quando denunciou sua covardia. Em 1964 estiveram ao lado dos interesses americanos e dos militares golpistas e lhes ofereceram o arcabouço jurídico para as suas ações. Em 2016 chancelaram o golpe contra a presidenta Dilma sem que houvesse qualquer crime de responsabilidade. Sim, e o agora exaltado Lewandowski estava à frente desta aberração.
Não tenho qualquer ilusão com esta instituição burguesa, onde um conhecido antipetista autoritário, cortador de pés de maconha, e preferido do golpista Temer, virou “herói” nacional. “Cria cuervos” é só o que digo sobre Alexandre de Moraes. Não tenho dúvida alguma de que, mesmo depois do desastre Temer/Bozo ocorrido nos últimos 6 anos, os ministros do STF estarão ao lado do sistema financeiro e das instituições burguesas – como sempre fizeram – caso estejamos diante de uma nova crise institucional.
Não há como esquecer que foram eles que promoveram o golpe de 64, produziram a farsa do Mensalão, bloquearam Lula de assumir um ministério no governo Dilma, permitiram o golpe contra a presidente eleita, assim como o impedimento da candidatura de Lula e sua posterior prisão. Só liberaram Lula quando o fracasso retumbante do governo Bolsonaro era evidente e estava prejudicando a imagem externa do Brasil. Se dependesse de figuras como Xandão, Toffoli, Fuchs, Rosa Weber, Carmem Lúcia e Fachin, Lula permaneceria preso, ainda que comprovadamente inocente e mesmo depois da VazaJato.
E sim… precisamos entender que Bolsonaro é o resultado do processo acelerado de falência do capitalismo, e não sua origem. Bolsonaro não tem capacidade para ser o criador de nada. Se não fosse Bolsonaro seria outro a ocupar o posto de liderança do fascismo brasileiro; Mourão, Braga Neto, Moro, Dalanhol, General Heleno entre outros poderiam estar em seu lugar. Estes personagens são provavelmente muito mais perigosos que Bolsonaro, exatamente por não serem tão incompetentes e ignorantes quanto este. De nada adianta prender o ex presidente por seus múltiplos crimes sem enfrentar o bolsonarismo, o nazifascismo tupiniquim e a extrema direita imperialista, que floresceram no Brasil como reflexo das crises do Imperialismo.
A esquerda precisa entender que não podemos esperar que uma instituição criada para proteger a burguesia e seus interesses – o STF – seja capaz de liderar mudanças marcantes na estrutura perversa do capitalismo brasileiro. Abandonar nossas ilusões infantis sobre tais instituições arcaicas é um dever de quem deseja a transformação radical no mundo.