Arquivo do mês: dezembro 2021

Água e civilização

A MESOPOTÂMIA

Em função de uma característica peculiar – nosso cérebro avantajado – foi necessário ao ser humano desenvolver um sistema de arrefecimento de temperatura mais eficiente do que aqueles dos nossos primos que vivem nas selvas, os grandes pongídeos (gorilas, orangotangos, chimpanzés e gibões). Apesar de não pesar muito mais do que 1 kg nosso cérebro é responsável por 20% do calor produzido pelo corpo, e o sobreaquecimento do cérebro pode ocasionar lesões e perda de funcionamento, até mesmo coma e morte. Por esta razão o ser humano perdeu seus pelos para produzir um sistema mais rápido e eficaz de diminuição de temperatura: a transpiração. Esse mecanismo se produz através da perda de água pelas glândulas sudoríparas produzindo uma lâmina de umidade sobre a pele que, ao entrar em contato com o ar e evaporar, leva consigo água e calor, baixando a temperatura do corpo. Esse é um mecanismo muito mais eficiente do que aquele da imensa maioria dos mamíferos – como cães e primatas da selva – que o faz através da respiração. Mas essa modificação nos impôs uma séria restrição: a necessidade imperiosa de água para o funcionamento desse sistema.

Esse preâmbulo serve para mostrar que a espécie humana é extremamente dependente de água para o próprio funcionamento cerebral, pois que para produzir cérebros grandes era necessário um sistema que diminuísse sua temperatura com rapidez e eficiência. Em uma analogia moderna, para que o núcleo do computador seja rápido tornou-se necessário criar pequenos ventiladores para arrefecer sua temperatura, caso contrário…. “tela azul”, e o núcleo se apaga, como nosso cérebro. 

Por esta razão as civilizações se desenvolveram na proximidade de grande mananciais de água potável. O crescente fértil se situa entre dois rios muito importantes, o Tigre e o Eufrates, e pela sua abundância de água – portanto, de vida – tornou-se o local ideal para o início das primeiras civilizações. As cheias que ocasionalmente ocorriam nestes rios produziam a inundação das regiões próximas, levando lodo, umidade, nutrientes, microrganismos, espécies aquáticas e seus predadores, produzindo um “humus” extremamente poderoso para o crescimento da vegetação. Posteriormente, esse fluxo de nutrientes produziria solos ricos para a grande revolução que se aproximava: o surgimento da agricultura, a domesticação de espécies animais e vegetais, o sedentarismo e o sentimento de posse (animais, plantas, terra, matrizes).

Essa modificação radical na relação do homem com a natureza, chamada de Revolução do Neolítico, teve repercussões em todos os aspectos das sociedades humanas, levando ao que conhecemos hoje como sociedade patriarcal, onde não apenas as colheitas, os animais e as terras precisavam possuir um dono e serem por ele cuidados, mas também  as mulheres, matrizes, que por estarem fragilizadas pelas múltiplas gravidezes, amamentação e o cuidado com as crias precisavam ser protegidas pelos homens, que passaram a estabelecer sobre elas um domínio – até os limites da opressão – que se mantém até hoje.

Por certo é que o surgimento das primeiras civilizações nas regiões adjacentes ao Crescente fértil não foi um fato aleatório. A abundância de mananciais de água e as enchentes que traziam nutrientes para as regiões próximas aos rios fizeram desse um local extremamente propício para a grande aventura da agricultura e do sedentarismo que estava para se iniciar.

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Degradação ambiental

Ao ascender à razão e à linguagem, fugindo da escravidão de sua biologia, desenvolvendo a percepção de si mesmo e inserido numa existência que lhe proporciona lições do passado e projeções para o futuro, o homem se separa inexoravelmente do jugo da natureza. Essa cisão, retratada na expulsão do paraíso, retira o homem da segurança do mundo natural e o joga desnudo no mundo em que, deixando de ser objeto da natureza, torna-se sujeito. Nessa travessia passa a mudar os fluxos naturais e seu equilíbrio dinâmico para, desta forma, produzir um meio ambiente que o beneficie, mesmo que em detrimento das outras espécies animais e vegetais. A história da espécie humana é contada pelo enfrentamento com a natureza próxima, a mesma que, ao mesmo tempo em que lhe produz medo, oferece os recursos para a sua subsistência.

Por certo que ao produzir as tecnologias para a modificação ostensiva da natureza, a quebra do equilíbrio produzido por milhões de anos de adaptação seria inevitável. Muitas espécies animais foram extintas pela ação direta do homem, como os mamutes na Europa e os tigres de dente de sabre na América Latina, já no pleistoceno. A domesticação de plantas também produziu o desaparecimento de espécies silvestres, gerando desequilíbrios em função da rede intrincada de interdependências entre as espécies que delas se alimentavam, resultados inevitáveis da ação predatória da nossa espécie sobre todas as outras.

A degradação ambiental se refere ao esgotamento ou extermínio de um recurso potencialmente renovável – como as águas, o solo ou o ar ambiente – pelo uso humano em uma velocidade superior à sua capacidade de regeneração. Este abuso dos recursos naturais pode ser de tal intensidade que é capaz impedir a possibilidade de renovação, até mesmo ao ponto da extinção de espécies silvestres, destruição de rios ou até mares.

Um exemplo moderno é a desertificação de porções grandes de regiões outrora repletas de água. Um dos mais impressionantes desastres foi o ocorrido na Ásia Central, no Mar de Aral – o quarto maior lago do mundo – produzida pelo cultivo de algodão durante a dominação soviética da região, com políticas agressivas de irrigação que, em um período curto de não mais de 40 anos, exterminou 90% da água desse mar interno. O que antes eram 60 mil km² de água, com profundidade de até 40m, agora não resta mais do que uma fração disso. Existem projetos para a recuperação gradual do Mar de Aral mas, como sempre, esbarram em dificuldades econômicas e políticas, e no fato de que destruir é muito mais fácil e rápido do que reconstruir um bioma deteriorado.

A devastação da floresta amazônica pela derrubada de sua mata nativa, que se incrementou nos últimos anos pelas pressões de fazendeiros impondo suas perspectivas ao governo central, pode produzir um resultado dramático logo adiante. O resultado – que já se observa agora – é a crescente desertificação e grandes períodos de seca da região sudeste, já que a reduzida evaporação de água produzida pela maior floresta tropical do mundo pode exterminar os “rios aéreos” que permitem a essa região se manter rica em chuvas e umidade. Esse efeito benéfico tende a desaparecer com a tomada de crescentes porções da floresta por pasto para a pecuária nas regiões da Amazônia legal. Se não houver uma política severa de preservação desse bioma as repercussões para ao própria agricultura da América Latina podem ser catastróficas.

Por último é importante lembrar que a industrialização ocorreu majoritariamente a partir do uso de combustíveis fósseis como o carvão e o petróleo, cuja queima é utilizada para o fornecimento da energia que movimenta indústrias, automóveis, trens, etc. Como subproduto temos a formação de gases tóxicos derivados desse processo de combustão, ocasionando a poluição atmosférica e as doenças consequentes da baixa qualidade do ar. Existem cidades cuja poluição é tão grave que precisam ser interditadas e houve até algumas que precisaram ser definitivamente abandonadas pela impossibilidade de sobrevivência em decorrência da degradação do ar. No Brasil a cidade de Cubatão se tornou referência internacional de poluição ambiental e a região metropolitana do Rio de Janeiro é hoje um dos locais com maior poluição do ar de todo o país.

Para mudar essa condição o mundo terá que se defrontar com uma realidade: uma sociedade de consumo que precisa destruir o meio ambiente para estabelecer “progresso” é uma sociedade fadada ao fracasso. Imaginar recursos infinitos em uma realidade finita é um equívoco que pode nos custar muito caro, e entre os riscos está a própria extinção da espécie humana. 

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Ciência e Ideologia

Não é raro ver pessoas reclamando que o debate da ciência agora está politizado – e até partidarizado – exaltando ideologias em detrimento da “objetividade” da ciência positiva. Correntes filosóficas e perspectivas diversas estariam tomando o lugar outrora ocupado por experimentos, estudos, gráficos, números e estatísticas. Entretanto, a ideia de uma ciência isenta sempre me pareceu tão ingênua quanto um sistema judiciário ou um jornalismo que pudessem funcionar com isenção em suas específicas atividades. Creio ainda que, aqueles que acreditam numa suposta isenção da ciência apenas ignoram a influência do mundo, da cultura, dos contextos e das circunstâncias que influenciam os pesquisadores diante da tarefa de pensar e de analisar problemas científicos.

Para estes que proclamam uma perspectiva positivista para a ciência eu tenho uma pergunta honesta de alguém descrente das análises isentas e desapaixonadas: onde está a objetividade da ciência para o tratamento da tuberculose, que todos os anos mata milhões de pobres distribuídos pelos bolsões de miséria da África? Onde está a frieza científica quando milhões sucumbem à malária, à diarreia por desmame precoce, à fome endêmica, à pneumonia, à hipertensão? Mais ainda, onde está a força das verdades científicas para mudar o curso da epidemia de cesarianas? Por que não há para estas doenças a mesma mobilização que ora vemos para a Covid19, que matará muito menos do que estas nossas velhas conhecidas? Se aplicássemos um critério tão somente baseado em resultados – quantas vidas seriam salvas, quantos recursos alocados, qual a aplicabilidade e qual o impacto na saúde global – a ciência contemporânea estaria muito mais focada em água tratada, erradicação da fome, miséria absoluta, fontes de energia, tratamento de verminoses etc. e muito menos em medicamentos para queda de cabelo ou doenças raras – que não por acaso tem impacto desprezível, mas são áreas altamente rentáveis.

É preciso ver quem controla a ciência médica. Quem paga seus custos? Quem a financia? Hoje fica fácil perceber que basta uma doença ameaçar brancos e sujeitos da classe média dos países ocidentais para a nossa sociedade se erguer e exigir medidas tecnológicas imediatas, como vacinas e novas drogas, mobilizando recursos aos milhões nas pesquisas, logística e manufatura de medicamentos. Foi assim com a Aids e está sendo o mesmo agora com a Covid19. Nossa ciência não poderia se expressar fora do seu contexto histórico, e por isso ela reproduz os modelos de opressão e desequilíbrio vigentes no planeta.

Da mesma forma a tortura nos afeta: nos escandalizamos (e com justiça) pelas torturas cometidas pela ditadura militar contra políticos, jovens militantes, mulheres e professores, mas ainda temos dificuldade de nos mobilizar quando a vítima é preta e pobre e meliante. Essa escolha é ideológica. Na guerra da Ucrânia sentimos muito pelo sofrimento das crianças loiras de comercial de talco, mas não conseguimos nos identificar com a miséria causada pelas guerras coloniais e derivadas da ganância capitalista na África, quando as vítimas são esquálidas e desumanizadas.

A ciência é – e sempre foi – ideológica. A simples escolha do que será investigado já é uma opção mediada pelos valores nos quais estamos inseridos. A isenção que se pede à ciência é falsa ou mentirosa. Quando nos envolvemos com a pesquisa e a descoberta de tratamentos para uma doença – e desconsideramos centenas de outras – nossa escolha já está impregnada de ideologia, inobstante ser consciente ou não. E quem tiver o poder de tomar decisões o fará baseado nos valores que lhe afetam diretamente, e não necessariamente pelo que atinge e ameaça a maioria das pessoas.

Há muitos anos escutei de um conselheiro do CRM uma frase cuja tolice marcante nunca consegui esquecer. Dizia ele para uma plateia de iguais: “Não existe ideologia na medicina, apenas boas e más práticas”. Para dizer isso era preciso negar a realidade que nos atropela: “a isenção da ciência só seria possível se os cientistas deixassem de ser… humanos”. Ignorar o mar de significantes que nos envolve invocando uma objetividade ilusória é uma enfermidade que ataca muitos pseudocientistas. Freud já nos explicava há mais de um século: “Não existe sujeito sem cultura e nem cultura sem sujeito”, e isso demonstra que que a o circuito simbólico que nos enlaça acaba por pautar as decisões e o próprio pensamento. Assim, o oceano de conceitos à nossa volta escolhe por nós o que pesquisar e como tratar as doenças.

O que precisamos não é da ilusão de uma “ciência isenta”, mas sim de uma ciência democrática, onde as escolhas da ciência sejam tomadas em benefício da maioria e não para proteger o capital e quem o controla. É necessário que a ciência não mais esteja a reboque das forças do capital, mas que esteja nas mãos do povo para que ele possa decidir as prioridades de forma livre, e não pela imposição do lucro e do poder.

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Esquerda compra…

Esses grupos que apostam no sectarismo sempre acabam produzindo o fortalecimento de sentimentos de exclusão. O “Esquerda compra de Esquerda” começou com a ideia de união de gente de esquerda para o consumo de serviços, mas muito rapidamente se tornou um grupo com os mesmos vícios dos grupos marcadamente sectários. Tornou-se um grupo de viés identitário e com uma visão moralista da sociedade, onde a esquerda repete os mesmos preconceitos que vemos nos grupos bolsonaristas.

No fim sobra uma ação de marketing que não ajuda a consolidação de uma visão holística da sociedade. Apregoa uma divisão entre “o bem e o mal”, não toca no ponto nevrálgico da luta de classes e cria uma separação artificial entre “nós e eles”, imaginando haver um muro ético a nos separar. Não passa de pura ilusão.

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Histórias de Horror

As “Histórias Horríveis de Parto” (gênero literário muito comum na cultura ocidental) via de regra se baseiam em narrativas de terror onde as pacientes são objetos da ação de uma natureza traiçoeira. São histórias de pânico e terror, que são oferecidas às gestantes na medida em que avançam a gestação e, depois, o trabalho de parto.

Na conclusão final destas histórias surgem duas verdades cristalinas: de um lado a defectividade assassina dos corpos fracos e mal feitos das mulheres e do outro lado a capacidades excelsa dos médicos para agir e salvar vidas, que certamente seriam ceifadas caso o nascimento ficasse somente nas mãos delas.

Escutei essas histórias durante 40 anos e até já fui testemunha de casos em que médicos astutos e corajosos efetivamente salvaram vidas, mas posso lhes garantir que na maioria esmagadora das vezes os profissionais se limitavam a consertar os estragos que não existiriam sem a a interferência indevida dos profissionais e das instituições no processo fisiológico do parto.

Acreditar cegamente nas histórias contadas pelos atores que detém o controle sobre o parto é sucumbir ao poder que eles têm de valorar esta narrativa. Este é um caminho certo para a submissão. Ter uma postura crítica diante desse tipo de histórias é importante para olhar o fenômeno do nascimento sem as capas espessas que a cultura construiu ao seu redor.

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Ainda Fogueiras

Apesar de não gostar de fogueiras, creio que o debate nacional sobre violência obstétrica é oportuno e essencial, em especial por meio de um programa de tamanha audiência como este, o Fantástico na Globo. Espero que, mais do que uma ação punitivista, este seja um passo importante para a consolidação de propostas para a erradicação da violência de gênero, em especial no parto e nascimento.

Creio que precisamos de mais participação da família, escolhas informadas, pré-natal de qualidade, confiança nos profissionais (e nos pacientes), uma mídia consciente, um judiciário atento às evidências científicas e mais parteiras e doulas na atenção ao parto de risco habitual. Precisamos também de uma mídia menos sensacionalista e mais responsável, assim como uma maior proteção aos profissionais humanistas, pontas de lança das transformações no cenário do parto.

Acho que um passo – a exposição crua da realidade triste da violência obstétrica – foi dado hoje. Espero que tenha sido um momento decisivo em direção a uma interação mais respeitosa entre cuidadores e gestantes.

Que assim seja.

PS: Agora fica difícil conter a pressão dos ressentimentos represados. Espero apenas que a mobilização (que infelizmente vem pelo escândalo) não se contente com o mero punitivismo, mas ofereça uma perspectiva de sairmos desse processo histórico de violência de gênero. Assim estes fatos tristes não mais ocorrerão com tanta frequência. Porém, é importante tomar cuidado; muitas vezes as punições são uma forma de não-mudar, de conter a transformação, colocando as falhas estruturais nas costas de um único sujeito, para que as pessoas não percebam a arquitetura corroída que sustenta todo o sistema. O que precisamos mudar é o modelo autoritário de atenção ao parto que não ocorre de forma isolada; pelo contrário, é uma das marcas da assistência ao parto no Brasil.

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Punições

Pessoalmente, não vejo punição maior do que a que já foi feita, e não vejo valor algum em punir esse sujeito para além disso. O mesmo eu disse para o jovem médico que fez piadinhas indecentes para uma garota no Egito. Ambos sucumbiram à mesma cilada na qual tantos tropeçam: um brutal sentido de “entitlement” (qual a melhor tradução?), a ideia de que sua posição “superior” lhes permitiria fazer qualquer coisa, dizer qualquer bobagem, no limite do desrespeito e da humilhação. Afinal, quem ousaria enfrentá-los? Quem apontaria o dedo para um ídolo, um exemplo de sucesso e excelência? Quem se atreveria?

Infelizmente eles não percebem que as luzes da ribalta, de tão intensas, produzem uma sombra muito escura. Nesta sombra se acumulam sentimentos pesados que estes personagens carregam por onde vão, a segui-los impiedosamente, na espreita do momento em que a luz se apagará, quanto então a escuridão tomara conta de todo o espaço. Augusto dos Anjos já nos dizia:

“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.”

Mal sabiam eles que a admiração e a adulação cobram um alto preço. Nenhum amor é oferecido sem contrapartida. Uma vez que se desfazem as capas da idolatria resta apenas o buraco de um afeto sem resposta, e a cobrança será inevitavelmente dura. Espero sinceramente que eles tenham recebido o golpe e feito um bom uso dele. Muitas vezes tais impactos produzem apenas dor, indignação, sofrimento, tristeza e depressão. Porém, em outras oportunidades elas podem deflagrar o parto de um novo sujeito, que só pôde nascer através da dolorosa contração de uma queda narcísica. Espero que a árdua lição os faça transformar, e que seu trabalho siga em um novo patamar.

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As Armadilhas da Identidade

Há muitos anos me debato com a questão do identitarismo, até porque sempre fui um homem imerso em um universo absolutamente feminino, e seria normal e compreensível que sempre fosse visto com uma certa estranheza. Por esta razão, não foram poucas as vezes que me defrontei com silenciamentos, exclusões e com o indefectível argumento do “lugar de fala”.

Por certo que muita besteira eu disse nessas três décadas de debates sobre partos, amamentação, puerpério e os próprios aspectos da sexualidade ligada ao parto, mas eu via nas inúmeras interdições – veladas e explícitas – um cancelamento indevido de vozes cuja aparente dissonância em verdade oferecia a possibilidade de se criar uma melodia muito mais rica e complexa. Sempre acreditei que estes múltiplos pontos de vista poderiam compor uma paralaxe benéfica para fortalecimento das ideias. Todavia, muitas vezes preguei no deserto.

Assim, o livro “Armadilhas da Identidade” de Asad Haider, caiu como uma luva sobre minhas inquietações, em especial porque trazia a resposta para uma antiga indagação. Em uma parte do livro – onde comenta sobre a realidade do racismo que atinge os negros americanos – ele observa que em muitos lugares (como em Milwakee, por exemplo) a maioria dos policiais é negro. Surge então a questão: como poderia a polícia se manter violenta e racista se os indivíduos que a compõem são do mesmo grupo vitimado por esta instituição?

Quando li isso me veio à mente outra violência que acompanhei diuturnamente durante mais de três décadas: a violência de gênero que se expressa na assistência ao parto, onde a imensa maioria das atendentes – inclusive as obstetras, que se situam no ápice do sistema de poderes – é composta por mulheres. Aqui sempre esteve presente a mesma pergunta: por que mantemos uma assistência violenta e misógina mesmo depois da obstetrícia se tornar majoritariamente feminina?

Não seria de se esperar que a violência diminuísse a partir do momento em que negros vigiassem negros e mulheres acolhessem mulheres? Não haveria uma obrigatória identificação com o outro, objeto de nossa ação?

O resultado dessa maior representação – conforme testemunhei durante décadas – foi ausente ou pífio. Não há até hoje nenhuma diferença mensurável entre as ações de policiais negros ou de obstetras mulheres no que diz respeito à violência de sua prática. A explicação para esse fenômeno é porque, muito mais importante do que os sujeitos que estão presentes nestes atos, são as instituições e os valores que elas representam. A polícia existe para impor à sociedade pela força uma divisão brutal de classes, enquanto a obstetrícia vai marcar as mulheres com o signo da submissão feminina dentro da sociedade patriarcal, inobstante os atores que emprestam seus corpos e mentes para essa função.

Colocar indivíduos negros na polícia e mulheres na obstetrícia – garantindo a esses grupos uma maior representatividade – em nada auxilia na transformação radical do sistema que os sustenta. Em verdade, as políticas identitárias que se resumem a colocar mulheres e negros em posição de destaque são parte do sistema de dominação – e não sua real oposição.

O grande equívoco é mantermos nossa visão obscurecida pelo gênero e raça e não percebermos a estrutura capitalista que subjaz, a mesma que fabrica a misoginia, o racismo e outros preconceitos como ferramentas para manter a sociedade de classes. Esse erro se espalha e se reproduz quando colocamos a culpa no branco e no homem, como se estes personagens fossem os culpados pelo sistema de opressão do qual eles também são vítimas. Por esta razão creio que um movimento unificado que suplante os identitarismos seria a grande saída para o fortalecimento das lutas. Aliás, a proposta de colocar homens, cis, brancos e heterossexuais como “os inimigos a serem destruídos” é um roteiro que só pode levar ao fracasso, como visto até agora.

O fim do racismo e do machismo vai ocorrer quando houver a superação da sociedade de classes através da luta de todos, acima das identidades, em direção a uma sociedade sem divisões artificiais.

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Boric

Boric tem uma posição bem progressista quanto à Palestina, o que é algo positivo. Uma frente internacional para barrar os crimes contra a humanidade produzidos pelo apartheid israelense é obrigação das democracias ocidentais. Boric também venceu o nazipinochetismo da classe média reacionária chilena, o que dá a nós, democratas de esquerda, um alívio diante da alternativa trágica. Sua eleição ajudará na eleição de progressistas da América Latina nas próximas eleições.

Entretanto, mal foi reconhecida sua vitória já fez o velho discurso manjado da esquerda liberal atacando Cuba e Venezuela, dois países covardemente embargados pelo Império. Parece que passadas 48h após sua eleição já foi pressionado a mandar uma mensagem ao centro do governo imperial para deixar bem claro “Olha, sou de esquerda mas amo vocês. Não estou aqui para confrontar patrão”.

Boric não representa uma vitória da esquerda, mas uma derrota brutal que deixamos de ter.

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Liberdade, valor maior

Desculpe se isso soar antipático, eu concordo com a frase, mas não com seu contexto. Sim, eu acho a liberdade um valor superior à vida. Se a vida fosse superior à liberdade nenhuma revolução teria acontecido, pois todas as lutas humanas por liberdade ocorreram às custas das vidas de muitos mártires. Não fosse pelas lutas daqueles que lutaram pela liberdade e pelo fim da opressão e ainda estaríamos vivendo no feudalismo, divididos entre senhores e vassalos. Afinal, quem se arriscaria a morrer lutando contra esse sistema arriscando a própria existência?

Existem, sim, lutas que são superiores à nossa vida particular. São temas tão importantes para a humanidade que valem a pena o risco que se corre, até de perder a vida. A luta contra a opressão sempre ocorre no limite da nossa própria segurança.

E eu NÃO estou me referindo ao contexto da fala do ministro. Não quero debater o tema da obrigatoriedade ou dos passaportes aqui, mas estou falando em tese: existem lutas que são mais importantes que a nossa vida pessoal. Aceitar que viver é mais importante do que lutar contra a escravidão e a opressão é aceitar que nossa mera existência biológica é superior aquilo que nos torna humanos: a pulsão pela liberdade.

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