Tempestade

Infância é puro sofrimento e angústia. Eu sei o quanto isso irrita as pessoas, pois nossa tendência e crer que esta é a fase mais feliz das nossas vidas. Se formos analisar com cuidado, não é assim que a realidade se expressa. A felicidade só existe em nossa memória porque selecionamos ilhas de momentos felizes e apagamos o oceano de tristeza, depressão e angústia no qual toda as crianças mergulham pela própria estrutura psíquica que as compõe.

As crianças apenas suportam a infância porque enxergam na figura dos adultos – em especial dos pais – uma promessa de sobrevivência e redenção. “Se meus pais sobreviveram a estas explosões incessantes de emoções e o torvelinho de paixões conflitantes eu também poderei superá-las”. Faltam às criancas amortecedores afetivos para protegê-las das emoções intensas do processo de amadurecimento. Por isso, crescer significa perder a alegria fulgurante que só existe nos infantes, em troca de não sucumbir à tristeza massacrante que elas são obrigadas a sentir.

Marguerite Deschamps, “Après la Tempête”, (Depois da Tempestade), Ed. Daguerre, pág. 135

Deixe um comentário

Arquivado em Citações

Inferno

É perfeitamete justo chamar de “inferno” qualquer época da vida. Infância, adolescência, casamento, separação, viuvez, etc. Existem processos pelos quais não passei – e nem pretendo – mas é possível exercitar a empatia para captar sua beleza e seus desafios. Um deles é o puerpério. Por certo que os pais também passam por um processo transformativo, mas em nada se compara ao turbilhão psíquico, social, hormonal e espiritual que acontece com as recém-mães. Meu pai sempre dizia que “onde há dificuldade há grandeza”, e isso se aplica a essa etapa da vida.

Eu fiz o Caminho de Santiago há 6 anos e poderia, dependendo do interesse e do contexto, chamá-lo de “inferno” ou “paraíso”. A forma como nos referimos a esses processos diz muito mais sobre nós mesmos do que sobre os eventos em si. Podemos olhar para as bolhas nos pés, as dores no joelho, as costas doloridas, as noites mal dormidas, os músculos esmigalhados e o cansaço e descrever como o reino de Hades. Por outro lado podemos olhar para as paisagens, os amigos, os companheiros de jornada, os novos parceiros, a vitória sobre os próprios limites e depois lembrar desta travessia como um dos momentos mais preciosos da vida. Somos nós quem determinamos…

Da mesma forma você pode olhar para o puerpério e dizer que se trata de um período infernal pelas inseguranças, pelas noites mal dormidas, pela angústia de não ser uma boa mãe, pelo medo de não cumprir as expectativas, pelo corpo desengonçado, pelo bebê sem limites e pelo seu choro sem hora e sem resposta. Por outro lado é possível olhar para as semanas que se seguem ao parto como o momento mais grandioso da vida de uma mulher, pela comunhão de corpos e almas, pela tarefa milenarmente construída da maternagem, pelas vitórias sobre seus limites e pela compreensão da grandeza da missão. É uma escolha.

Isso não significa negar as dificuldades e a complexidade dessa fase, mas apenas enxergá-las dentro de um contexto. Todas as funções maternas são encenadas em microcosmo no puerpério: paciência, confiança, resiliência, dedicação, e tantas outras, por isso ele é tão valioso na tarefa que ali se inicia e só termina com a morte física. Sim, pode ser inferno, mas pode ser paraíso se assim o desejarmos. Se a maior tarefa de uma mulher é ensinar seu filho a amar, e se essa pedagogia se inicia nos primeiros instantes em que ele desce à terra, seria injusto que a função mais nobre do feminino fosse descrita de forma tão restritiva, comparando-a à passagem pelo reino da solidão e do medo. Ela é muito mais do que isso; para além do que se pode expressar em palavras.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Maria

Não há dúvida que a rejeição a Maria do Rosário é porque ela defende direitos humanos. Todos os defeitos que possam porventura ser mencionados sobre sua atuação parlamentar sucumbem diante deste fato: as pessoas não aceitam quem defenda simples direitos básicos das pessoas comuns, como não ser torturado, não ser perseguido por suas ideias, ter tratamento digno na prisão, não ser preso sem uma clara justificativa, direito à ampla defesa, etc. Todavia, para o cidadão médio, contaminado pela propaganda odiosa da direita fascista, isso nada mais é do que “defender bandido”. Mas, e porque mesmo os bandidos não poderiam ser defendidos?

Ao Estado não cabe combater criminosos, mas o crime. A justiça não deve combater o malfeitor, mas suas ações ilegais, pois a ninguém é lícito julgar as razões pelas quais alguém comete delitos; ao judiciário cabe analisar os fatos, não os sujeitos. Esse é um fundamento basilar do direito. Não se pode usar da justiça para atacar indivíduos, a não ser que tenham cometidos atos ilegais e criminosos.

Por mais que os punitivistas tenham dificuldade em aceitar, todo bandido compartilha conosco algo fundamental: a condição humana. Em verdade, quando analisados de perto, os “bandidos” são incomodamente semelhantes a nós, com a diferença que tiveram obstáculos em suas vidas que nós nunca tivemos. Julgar a criminalidade sob um prisma moralista é a marca registrada do fascismo, mas somos parecidos demais para que se possa usar classificações como “bandidos” e “cidadãos de bem”. A experiência recente mostrou que alguns dos crimes mais horrendos realizados no Brasil no período Temer/Bolsonaro vieram daqueles a quem se outorgava o título de “cidadãos de bem”.

Assim, aqueles que defendem os direitos humanos inerentes à esta condição, não estão defendendo ou estimulando o crime, mas resguardando as camadas pobres e desassistidas da sociedade da vingança brutal daqueles que, para defender o modelo concentrador de renda e a propriedade privada, agem de forma vingativa e cruel contra todos que que rebelam e entram na senda do crime. Maria do Rosário escolheu a tarefa mais difícil e mais ingrata. Defender estes direitos essenciais em um país no qual um antigo presidente se jactava em dizer “minha especialidade é matar”, é tarefa para poucos. Precisa coragem e integridade para se manter firme em seus princípios quando o entorno lhe empurra na direção do fascismo mais abjeto e desumano.

Tenho muitas discordâncias com Maria do Rosário em outros pontos. Sendo comunista, é fácil entender o quanto a democracia liberal e o identitarismo estão corroendo as esquerdas no mundo inteiro. Não acredito que essa esquerda possa oferecer um grande diferencial em longo prazo ao abandonar a luta anticapitalista e apostar na divisão planejada da classe operária em identidades digladiantes. Por isso, no primeiro turno, voto em Cesar Augusto Ferreira, candidato do PCO à prefeitura de Porto Alegre. Entretanto, bem sei que as pessoas rejeitam em Maria do Rosário exatamente aquilo que ela tem de mais virtuoso: a luta pela dignidade humana, de qualquer cidadão, inobstante os erros que tenha cometido. No segundo turno, voto com ela.

Por isso, espero que ela vença os candidatos do atraso e seja uma ótima prefeita.

Deixe um comentário

Arquivado em Política

Cristãos

Vou repetir o que já venho dizendo há muitos anos: não tenho mais paciência com o cristianismo. Chega!!! Não aguento mais esses pilantras de fala mansa que roubam dízimo de pobre. Não aguento o conformismo cristão que permite uma sociedade injusta sem se revoltar. Não aguento evangélicos defendendo a podridão de Israel e justificando um genocídio acreditando que Deus “deu a terra” para aqueles – por ele mesmo – escolhidos. Não aguento gente das igrejas falando em “povo de Deus”. Não suporto mais milícias bolsonaristas sendo formadas em igrejas evangélicas. É inaceitável a quantidade gigantesca de pastores abusadores sendo encobertos pela imprensa – afinal, não se deve atacar os “ungidos”.

O Brasil se tornou um evangelistão porque, em nome do “respeito à diversidade de crenças”, passamos a passar pano para a barbárie dos religiosos. Até o espiritismo, que conheço muito bem, me incomoda muito hoje em dia, em especial quando a franja mais reacionária dos espíritas fala de “Jesus governador da Terra”. Ora, por que o governador do planeta deveria ser uma personalidade exaltada pelo ocidente, apesar de ser do oriente médio? Esta ideia disseminada por alguns espíritas nada mais é do que desprezo pelo mundo oriental e islâmico, trazendo o centro do mundo para a Europa e sua religião branca. O espiritismo, assim como todas as religiões cristãs, está tomado por bolsonaristas, reacionários, fascistas e hipócritas.

Sei que esses defeitos morais também existem entre os ateus, mas não vejo dirigentes do ateísmo enriquecendo com a exploração da gente pobre do Brasil. Os agnósticos e os descrentes ficam na sua, curtindo seu positivismo existencialista, normalmente sem incomodar ninguém e sem tentar regular a bunda alheia. Enquanto isso, esses Everaldos, Edires, Malafaias e toda essa corja nojenta ligada à Israel e ao neopentecostalismo se comportam como a linha de frente do atraso do Brasil. São a locomotiva do preconceito, gente asquerosa e desonesta, arrogante e hipócrita.

Portanto, é exatamente isso mesmo que eu quero dizer: as religiões cristãs institucionalizadas em suas infinitas seitas e credos precisam sofrer o golpe de um novo iluminismo, uma nova revolução pela razão, para que possamos sair do buraco obscurantista onde nos encontramos. E todos aqueles que acreditam que a religião, enquanto questionamento do sentido da vida e do universo, ainda tem razão de existir no mundo da infotecnocracia atual, deveriam lutar contra essa carolice moralista e reacionária que se tornou o cristianismo.

E tenho dito. Chega de amor!!!

Aliás, creio que Jesus estaria comigo nessa luta. Afinal, ele também expulsou os vendilhões do templo, não?

Deixe um comentário

Arquivado em Religião

Experiência

“Sem que você tenha trabalhado nesta área durante 30 anos, em três turnos, não terá direito de me criticar”

Não é verdade. Você pode opinar sobre o trabalho de alguém mesmo sem ter trabalhado dessa forma e com essa intensidade. Esse tipo de postura é prejudicial para o progresso e serve apenas para calar a boca dos críticos e permitir que um mau profissional continue fazendo um trabalho ruim apenas porque é velho (ou experiente) e trabalhou demais. Quando Galileu Galilei expôs sua teoria heliocêntrica contrapôs inúmeros pensadores da época com muito mais experiência que ele. Deveria se curvar à autoridade destes? Ou a própria ciência é produzida e criada através da ousadia de alguns pensadores munidos de sua criatividade?

Não é justo se blindar das críticas selecionando quem pode lhe questionar. A todos é garantido o exercício necessário da crítica, mas é verdade também que estas serão levadas em consideração – com maior ou menor crédito – a partir do lugar de onde são emitidas. Por certo que um sujeito com ampla experiência terá mais condições de questionar, mas isso não impede que esteja por vezes (muito) errado. A ninguém parece justo ser impedido de criticar Bolsonaro com a desculpa “seja parlamentar da direita por 30 anos e só depois venha me criticar”. Não, isso seria indecente. 

Por fim, experiência não é tudo, apesar de ser importantíssimo. É perfeitamente plausível que alguém tenha formas melhores de realizar um trabalho ainda que não tenha dispensado o mesmo tempo que outro sujeito mais experiente. Se isso fosse verdade, e pudéssemos silenciar a voz daqueles que cuja opinião não nos agrada, quase ninguém teria condições de criticar a qualidade do trabalho alheio, e seríamos prisioneiros de uma gerontocracia que só atrapalha a renovação das ideias. Assim, não estou afirmando que a experiência é inútil; apenas afirmo que ela não pode ser o escudo perfeito para a incompetência e a blindagem definitiva para as críticas.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Torcidas

Quando eu era criança e adolescente nos anos 70 aqui em Porto Alegre o Inter reinava soberano no RS. Era um time muito bom, a geração Falcão, Batista, Figueroa, Lula, Valdomiro, etc. Não só isso; tinham construído um estádio moderno depois de 15 anos vendo o Estádio Olimpico empilhar campeonatos com os times gremistas de Alcindo, Juarez, Lumumba, Airton Pavilhão, Joãozinho, Babá etc. Pois no mesmo ano que o estádio foi inaugurado inicia-se uma “senda de vitórias” com um time colorado que fez história. Quando da inauguração do estádio foi colocado na marquise a famosa frase “A maior torcida do Rio Grande do Sul”. Na época ninguém reclamou oficialmente, porque o sucesso da época – e o estádio cheio – nos faziam pensar assim.

Todavia, este tipo de impressão – sem avaliação metodológica – era o que regulava os conceitos na era pré-científica. Quando finalmente surgiram as primeiras pesquisas, cientificamente controladas, sobre o tamanho das torcidas, os resultados mostraram (além da grandeza de Flamengo e Corinthians no cenário nacional) que a torcida do Grêmio era bem maior do que a do Inter. O resultado da investigação foi um choque na imprensa da província. Foi surpreendente até aqui entre os torcedores da aldeia, e os colorados, em especial, ficaram estupefatos. Eles realmente acreditavam ser a maior torcida, porque nos anos 70 foi uma festa com Beira Rio, octa, tricampeonato CBD, etc. Parecia mesmo uma torcida grande e, mais importante que isso, maior que a do rival.

Eu ainda lembro do dia que a pesquisa bombástica do Ibope saiu e lembro ainda mais da manifestação do Cacalo no Sala de Redação. O Kenny Braga respondeu dizendo que era mentira, e o que valia mesmo era quem frequentava o estádio. Colocou a cabeça na terra e não quis encarar a realidade. Aliás, os colorados até hoje usam essa retórica, questionando “o que seria considerado um torcedor?”. A verdade é que durante os anos seguintes, e durante as décadas que se seguiram, todas as pesquisas mostraram uma superioridade da torcida do Grêmio sobre a do Inter. Mais ainda, isso se expressa em todas as camadas sociais, desde os muito pobres até os milionários. O Grêmio domina a preferência tanto da torcida da periferia afastada do capitalismo até a mais abastada centralidade da burguesia.

Hoje ninguém mais questiona a superioridade numérica da torcida tricolor. Ainda existe uma guerra de sócios, mas todos sabemos que, apesar de importante economicamente, isso é secundário para avaliar o tamanho da torcida. Entretanto, isso não torna pequena a torcida do Inter; ela é a 8ª ou 9ª maior do Brasil, uma massa enorme de gente que torce por um time. Porém, a ciência das pesquisas resgatou uma verdade histórica que sucumbia a uma narrativa sem embasamento na realidade dos fatos: o Grêmio é a maior torcida do Sul do Brasil.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Road Story

Nos anos 90 eu estava em Camboriú – antes de se tornar a cidade cafona e cheia de novos ricos de agora – com a minha família. Na época meus filhos tinham 8 e 5 anos. Resolvemos voltar para casa depois do almoço, no final das férias de 1 semana no litoral catarinense. Aproveitamos a manhã para tomar o último banho de mar, depois almoçamos e tomei um banho para começar a viagem.

Bem, este foi o problema. Como na época eu tinha um cabelo farto e rebelde, percebi que se saísse para dirigir com o cabelo molhado ele se tornaria um emaranhado obsceno de cabelos, com cada fio apontando para uma localidade distinta do universo. Para evitar isso, resolvi colocar uma touca cirúrgica que guardava comigo para secar o cabelo. Dito e feito: coloquei as malas no carro, ajeitei as crianças e saímos para a estrada, usando minha touca cirúrgia para secar o cabelo.

Alguns quilômetros adiante, já próximo de Florianópolis, percebi ao longe um acidente na estrada. Era possível ver uma fumaça saindo dos veículos envolvidos no acidente enquanto uma fila de carros se formava, diminuindo a velocidade para assistir a cena. Quando me aproximei, percebi que só havia policiais no local e nenhuma ambulância. Fiquei preocupado que houvesse feridos que estariam aguardando a chegada de auxílio e resolvi me apresentar para ajudar. Imediatamente parei ao lado do policial que coordenava o trânsito e gritei:

– Hei, policial!! Eu sou médico. Vocês precisam de alguma ajuda?

O patrulheiro se aproximou do vidro do carro e ficou me olhando por alguns instantes. Depois de um tempo respondeu laconicamente:

– Não precisamos de ajuda. Não houve feridos, apenas danos materiais. Obrigado.

Só me dei conta quando Zeza começou a rir. Ela disse: “O guarda deve ter pensado que tu és um maluco que pensa ser uma mistura de médico com Batman”. Foi então que me dei conta que estava usando aquele bizarro gorro cirúrgico e que o policial teria todo o direito de imaginar que eu era um psicótico que sai de carro pelas ruas procurando avidamente casos para atender.

Talvez minha calvície tenha sido uma forma que Deus criou para eu não pagar mais estes micos

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Humor

Janela

Não deveria causar espanto o fato de que estas meninas parecem estar esnobando os rapazes com quem marcam encontros. Nessa idade – a adolescência – as mulheres são muito poderosas. Em verdade, não haverá momento algum em suas vidas em que serão tão valiosas aos olhos de todos. Todas as heroínas das histórias infantis – de Branca de Neve. Cinderella e até Julieta Capuleto de Verona – eram garotas no fulgor de sua adolescência. O mercado é francamente favorável a elas. Os homens estão por toda parte ávidos por encontrá-las; são desejadas, procuradas, exaltadas, admiradas e têm o mundo aos seus pés. A virada dos 30 anos é, para muitas, um divisor de águas. Na antiguidade quase nenhuma mulher chegava a esta idade sem filhos, o que nos deveria fazer pensar com uma certa estranheza sobre os tempos atuais, quando a maioria ainda não teve filhos. O certo é que, depois de ultrapassada esta barreira, seu valor (aqui entendido como a atração, não os valores morais ou intelectuais) cai progressivamente.

Quando as mulheres de mais idade, por mais lindas e inteligentes que sejam, dizem que não recebem o reconhecimento devido apenas por serem “maduras”, estão apenas dizendo que não ganham mais a atenção desproporcional e exagerada que recebiam no pleno vigor erótico da juventude. Na verdade, estas mulheres maduras sentem na pele algo que os meninos conhecem muito bem: elas passam a ganhar os mesmos olhares que um garoto de 16 anos recebe das mulheres de 20. Lembrem-se: por mais duro que seja aceitar, somos seres destinados à reprodução. Quanto mais nos afastamos da janela reprodutiva menos valor obtemos do entorno social. Apesar da nossa racionalidade ainda funcionamos como uma espécie sofisticada de primatas sem pelos, e nossas atitudes continuam conectadas aos estratos mais primitivos da mente, os quais, fortuitamente, nos garantem a sobrevivência.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Imperfeições

Se a sua parceira não tivesse os defeitos que tanto lhe incomodam, ainda assim lhe escolheria para partilhar a vida? Sem as imperfeições que ela carrega, ainda assim você seria útil ou atraente para ela?

Talvez você não fosse mais interessante para ela, nem necessário. Não é justo abandonar essa perspectiva. Se ela não fosse gordinha, estaria com você? Se ela não fosse pobre, ainda assim se encantaria pela sua “personalidade”? Se ela não fosse insegura, continuaria ao seu lado? Se ela não fosse desequilibrada, ainda sim estaria consigo? Sem sua extremada carência, ainda assim lhe olharia com ternura e carinho?

Agora mude os gêneros acima e pergunte: se você não fosse gordo, feio, pobre, inseguro, frágil, angustiado, dependente ainda assim estaria com sua atual companheira(o)? Pense nisso. Quem seria você se não tivesse as amarras que o prendem ao mundo da contenção? Não há como saber sem passar pela prova, mas existem vários exemplos para nos mostrar o que nos tornamos quando perdemos alguns desses “defeitos”. Pensem no jogador de futebol que aos 24 anos faz seu grande contrato e fica milionário – literalmente da noite para o dia. Olhe a cantora sertaneja que “estoura” nas paradas de sucesso e passa a contar seus milhões. Olhe para o pobre funcionário que ganha na loteria. Depois desses eventos, como ficaram suas vidas? Como ficaram seus valores e suas exigências?

Como nos ensinava Marx, temos os valores da classe em que estamos, não daquela de onde viemos. Somos produto do entorno, do campo simbólico que nos rodeia, e somos uma chama de vida nutrida pelo desejo. Somente podem criticar aqueles que abusam do poder os que, tendo visitado o reino da opulência, colocaram cera nos ouvidos para não escutar suas sereias. Todos os outros se iludem com seus reais valores e limites, que muito mais refletem o quanto podemos do que o valor que realmente temos.

Pensem nisso…

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Psicologismo

A ideia ultimamente difundida de que o fascismo surgiria pela proliferação dos “machos inseguros”, produzidos por uma sociedade onde as mulheres estão assumindo cada dia mais postos de comando, é outra tolice que vem sendo espalhada pela camada nas redes sociais, em especial nas franjas mais religiosas e beatas das esquerdas liberais. A redução dos problemas sociais a transtornos ou dificuldades dos indivíduos é uma bobagem que deve ser combatida por quem se situa na porção radical da esquerda, pois que nada mais é que um novo golpe identitário, cujo objetivo é atacar as bases do movimento operário. Isso é infantil demais até para ser debatido.

Por certo que o fascismo encontra um terreno fértil entre os “machos inseguros”, mas nem todos os machinhos em crise reunidos do planeta seriam capazes de criar um modelo de opressão burguesa sobre as massas operárias, usando o aparato repressivo do Estado e da polícia. Isso é puro suco de ideologia. Essa “psicologização” dos fenômenos sociais serve apenas para desviar o foco das questões estruturais que nos impedem de progredir e da inevitabilidade da luta de classes.

A tendência contemporânea de interpretar as tendências sociais em direção ao fascismo utilizando o ferramental produzido pela psicanálise é muito sedutora, e por esta razão largamente usada pelos identitários. Para estes, o rechaço à cultura “woke” não passaria de uma reação aos direitos recentemente conquistados pelas comunidades oprimidas, e os ataques partiriam do opressor-mor da nossa sociedade: o macho branco, cis e heterossexual. Se é verdade que existem homens que não suportam qualquer ideia de equidade, desprezando e se sentindo ameaçados pela maior visibilidade e reconhecimento do trabalho das mulheres, estes não seriam capazes de criar um movimento de supressão das liberdades em direção a um controle opressivo do Estado, como se pode ver nos fascismos clássicos. Tais “machos inseguros” normalmente se reúnem nos bolsões bolsonaristas e nos “chans” compostos por supremacistas e incels, mas não representam uma ameaça concreta, a não ser que se unam aos burgueses que, encampando suas ideias, os usam como massa de manobra para atacar a classe trabalhadora. 

Para os apologistas desta perspectiva o fim do fascismo ocorreria com a abordagem psicanalítica dos seus constituintes individuais ou, quem sabe, por um “outing coletivo”, quando milhões de machos reprimidos e multidões de machistas com comportamentos odiosos e vingativos sairiam do armário, dando vazão aos seus impulsos homoeróticos. Ora, nada poderia ser mais ingênuo e errado do que isso.

O fascismo se combate com política, força, consciência de classe, união popular e revolução. O resto é papo furado.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Política