Minotauro é uma criatura da mitologia grega que tem o corpo de ser humano, mas a cabeça e o rabo são de touro. Nasceu fruto da relação de Pasífae, esposa de Minos, o rei de Creta, com um touro dado a Minos por Poseidon. O Minotauro é uma criatura que está presente na mitologia grega aprisionado em um labirinto construído por Ícaro e Dédalo (lembram? Aqueles das asas de cera) a mando do rei de Creta. Minotauro era descrito como um ser monstruoso que devorava pessoas vivas. Quando chegou a Creta, Teseu conheceu Ariadne, filha do rei, e a jovem o presenteou com uma espada e um novelo de linha para derrotar o monstro e conseguir escapar. Teseu matou o Minotauro, fugiu do labirinto e salvou seus companheiros.
O parto humano está preso em um labirinto cuja saída, até então, não conseguimos encontrar. Entramos por um caminho sedutor no início do século passado, com a introdução da tecnologia na atenção ao parto. Parecia que a absoluta artificialização do parto permitiria ultrapassarmos os ancestrais medos que acompanham a sociedade desde épocas primevas. Ao contrário do fato inesperado, a previsão de todos os eventos: ao invés da surpresa, o controle dos tempos. Ao invés das mortes e das dores, a vida resplandecente em cada nascimento. Bastaria para isso a absoluta alienação do processo: o parto passaria das mãos das parteiras às mãos dos cirurgiões; ao invés da do ambiente cálido e acolhedor da casa, o frio asséptico e luminescente das salas cirúrgicas. No lugar dos silêncios, os ruídos metálicos, a conversa dos médicos e o choro das mães. Também trocaríamos as bactérias maternas pelos micro-organismos hospitalares, as antissepsias, as roupas esterilizadas e os necessários antibióticos. Quem ousaria não se contaminar pelo entusiasmo da ciência vencendo a natureza, até então, indomável?
Como toda solução mágica, depois do seu esplendor é possível avaliar suas contradições. A alienação das mulheres cobra hoje um preço muito alto. A troca das especialistas, parteiras altamente capacitadas forjadas nos milênios de vigilância do parto, por cirurgiões, teve como resultado o afastamento da arte ancestral da parteria de sua prática cotidiana. Ao mesmo tempo, a epidemia de intervenções se tornou a norma: internações, drogas, isolamento, partos instrumentais, extrações cirúrgicas, infecções, desmame, banhos de luz, afastamento e solidão foram os resultados. Com o tempo fomos percebendo que até a segurança apregoada não era verdadeira: as modalidades cirúrgicas são muito mais arriscadas para mães e bebês do que a vivência puramente fisiológica do parto.
O caminho tecnocrático nos levou a um beco. Mães hoje percebem o quanto lhes foi subtraído com a adesão a um modelo alienante que lhes retirava o controle e a autonomia sobre o próprio corpo e as afastava da vivência plena do processo. Mães e bebês, a díade mais sagrada da história humana, se afastavam mutuamente, e o vazio que se produzia era preenchido com mais tecnologia, mais intervenção. Enquanto isso, a morbidade aumentada relacionada ao abuso das intervenções não podia mais ser escondida. A crise se estabeleceu e a insatisfação surgida entre as mulheres no final do século passado hoje está na voz de toda a gestante esclarecida.
Perdemos o fio, e o Minotauro ainda nos espreita. Nesse cenário, somente Ariadne pode nos conduzir. Ela, que conhece os meandros e os desafios do labirinto, precisa nos oferecer o seu novelo de ciência, conhecimento e sabedoria, para ser nosso guia na busca pela saída. Ela sabe que sem o protagonismo garantido à mulher, sem a visão transdisciplinar no nascimento e sem o embasamento na ciência, estaremos perdidos no labirinto do parto humano, acreditando em soluções ilusórias e em promessas vazias.
PS: Escrevi esse texto a partir do convite de Jan Tritten para participar da “Midwifery Conference”, uma conferência sobre parto e a preservação da arte ancestral da parteria, de 25 a 29 de setembro, na ilha de Creta, na Grécia. Provável participação especial do Minotauro, Ariadne e Teseu. Obrigado, Jan.
Minotaur is a creature from Greek mythology that has the body of a human being, but the head and tail from a bull. It was born out of the relationship of Pasiphae, wife of Minos, the king of Crete, with a bull given to Minos by Poseidon. The Minotaur is a creature that is present in Greek mythology that was imprisoned in a labyrinth built by Icarus and Daedalus (remember? those of the wax wings) at the behest of the king of Crete. Minotaur was described as a monstrous being who devoured living people. When he arrived in Crete, Theseus met Ariadne, the king’s daughter, and she presented him with a sword and a ball of thread to defeat the monster and escape. Theseus killed the Minotaur, fled the labyrinth, and saved his companions.
Human childbirth is stuck in a maze whose exit, until then, we have not been able to find. We entered a seductive path at the beginning of the last century, with the introduction of technology in childbirth care. It seemed that the absolute artificialization of childbirth would allow us to overcome the ancestral fears that have accompanied our species since early times. Contrary to the unexpected fact, the prediction of all events; instead of surprise, the control of the times. Instead of death and pain, life resplendent at every birth. The absolute alienation of the process would suffice for this: childbirth would pass from the hands of midwives to the hands of surgeons; instead of the warm and welcoming environment of the house, the aseptic and luminescent cold of the operating rooms. Instead of silences, metallic noises, the talk of doctors and the cry of mothers. We would also exchange maternal bacteria for hospital microorganisms, antisepsis, sterilized clothing, and the necessary antibiotics. Who would dare not be contaminated by the enthusiasm of science overcoming nature, hitherto indomitable?
Like any magic solution, after its splendor it is possible to evaluate its contradictions. The alienation of women today takes a very high price. The exchange of specialists, highly trained midwives forged in the millennia of childbirth surveillance, by surgeons, resulted in the removal of the ancestral art of midwifery from their daily practice. The epidemic of interventions became the norm: hospitalizations, drugs, isolation, instrumental deliveries, surgical extractions, infections, weaning, light baths, withdrawal and loneliness were the results. Over time we realized that even the security touted was not true: surgical modalities are much riskier for mothers and babies than the purely physiological experience of childbirth.
The technocratic path has led us to a dead end. Mothers today realize how much was subtracted from them by adhering to an alienating model that removed their control and autonomy over their own body and kept them away from the full experience of the process. Mothers and babies, the holiest dyad in human history, drifted apart from each other, and the void that was produced by this distance was filled with more technology, more intervention. Meanwhile, the increased morbidity related to the abuse of interventions could no longer be hidden. The crisis has settled and the dissatisfaction that emerged among women at the end of the last century today is in the voice of every enlightened pregnant woman.
We’ve lost the thread, and the Minotaur is still stalking us. In this scenario, only Ariadne can lead us. She, who knows the intricacies and challenges of the labyrinth, needs to offer us her novel of science, knowledge and wisdom, to be our guide in the search for the way out. She knows that without the guaranteed agency of women, without the transdisciplinary vision of birth and without the foundation in science, we will be lost in the labyrinth of human childbirth, believing in illusory solutions and empty promises.
PS: I wrote this text after the invitation of Jan Tritten to participate in the “Midwifery Conference”, a conference on childbirth and the preservation of the ancestral art of the parteria, from September 25 to 29, on the island of Crete, Greece. Probably special participation of the Minotaur, Ariadne and Theseus.Thanks, Jan.
É possível falar de humanização do nascimento sem ser político? Seria a humanização da atenção ao parto um tema técnico, científico, positivo, que nada tem a ver com as questões sociais ou com temas mais abrangentes como direitos humanos, reprodução e sexualidade e mesmo o direito à vivência sexual plena?
Lembro de um encontro traumático com um membro do Conselho de Medicina quando este, do alto de sua imperial arrogância, disparou: “Não existe ideologia em Medicina, apenas boa ou má prática médica“. Ou seja: para este conselheiro, a medicina é uma expressão positiva da atividade humana; aplicá-la pressupõe que a verdade precisa ser comprovada a partir de técnicas científicas válidas. Além disso, traz a ideia de ciência cumulativa, ou seja, transcultural, atingindo toda a humanidade, inobstante qual cultura surgiu ou se desenvolveu. Parte da ideia de corpos sem alma, sem história, sem subjetividade, onde um muro se ergue entre os aspectos físicos e as questões anímicas. Por certo, o que este profissional pretende se contrapõe a experiência cotidiana de milhões de médicos que se deparam com as características subjetivas de cada sujeito que os procura. Além disso, é evidente que na manifestação de doenças concorrem aspectos emocionais, psicológicos, afetivos e sociais. Desta forma, na análise das doenças como manifestações de transtornos sociais, a política é uma das ferramentas mais importantes para compreender e tratar o adoecimento.
Partindo deste pressuposto – a influência da cultura e da política na saúde e na doença – eu não acredito ser possível defender a humanização do nascimento sem assumir uma posição ideológica, o que não significa necessariamente adotar uma posição partidária. Mais ainda: eu considero o abandono do debate político um dos grandes erros cometidos pelo movimento da humanização do nascimento nos últimos 25 anos. Sem o saber, adotamos uma posição claramente revisionista, almejando uma ilusória “conciliação de classes” com os detentores do poder, sem nos darmos conta de que, assim como em qualquer luta social, aqueles que tem nas mãos o poder jamais o entregam de forma pacífica. Além disso, a revolução do parto só vai acontecer quando abandonarmos as ilusões juvenis e assumirmos a necessidade de um enfrentamento firme. Sem entendermos que o “direito de parir direito” é uma luta social e que “revolução” significa câmbio de poder, não vamos atingir os fins últimos a que nos propomos.
O mesmo descaso que observo como regra para as vozes femininas na política também observei durante décadas no silêncio das mesmas vozes no que diz respeito ao parto. Portanto, não se trata de silenciar uma mulher em especial, mas reconhecer o temor inconfesso da sociedade patriarcal em escutar vozes dissonantes que possam questionar os “poderes naturais”. Quem teria mais autoridade para questionar como as mulheres são tratadas em seus partos do que elas próprias? Quando gestantes são desprezadas e diminuídas, eu escuto o eco silencioso de centenas de vozes suprimidas, brotando do peito de mulheres assustadas com seus partos, caladas e impedidas de decidir sobre seus corpos. E aqui não ser trata de questionar a fala de Janja sobre o TikTok – sobre a qual discordo – mas de analisar a repercussão violenta contra essa personagem.
Ou seja: os ataques às mulheres que alcançaram, de alguma forma, o poder nada mais são do que reflexos de uma cultura que ainda receia escutar o que elas têm a dizer. Muito do sofrimento que escutamos das mulheres mais velhas está relacionado às palavras não ditas em sua juventude, guardadas no peito, trancafiadas em silêncios dorosos que se transformam em sintomas e lágrimas. Permitir que as energias do parto tenham vazão é cuidar da saúde de todos, tanto quando reconhecer o direito às mulheres de expressarem suas ideias e sentimentos.
Estamos diante de um dilema crucial para o futuro da assistência ao parto neste país. A sinalização recente aponta para a criminalização do parto normal e a percepção da humanização do nascimento como uma “ideologia exótica”, o que se configura um desastre não apenas para os profissionais que procuram respeitar os direitos reprodutivos e sexuais de suas pacientes, mas também uma tragédia para as próprias mulheres, impedidas definitivamente de exercer o protagonismo sobre seus corpos. O objetivo inconfesso por trás das perseguições aos profissionais do parto humanizado é impedir que as mulheres tenham voz e que possam tomar decisões sobre seus partos; a forma de levar essa ideia adiante é penalizar – até encarcerar – os profissionais do parto que aceitam respeitar os desejos e escolhas de suas clientes.
O resultado imediato será um incremento das cesarianas, que já ultrapassaram 60% do total de nascimentos no Brasil, pois os médicos sempre se protegem usando como escudo a ideologia hegemônica. A longo prazo veremos a absoluta artificialização do nascimento, que transformará as mulheres em “contêineres fetais“, alienadas em definitivo de qualquer decisão sobre seus filhos e como eles chegam ao mundo. Percebam que nenhum médico é processado por (ab)usar de cesarianas, inobstante os resultados – até mesmo desfechos fatais; a tecnologia, mesmo quando sem indicação e sem qualquer justificativa, os protege. Nesse contexto de “macartismo obstétrico”, a paciência, o respeito aos tempos e às subjetividades e a vinculação com as evidências científicas são defeitos, não virtudes. Agir conforme as determinações da OMS e mesmo do Ministério da Saúde do Brasil não é algo a ser elogiado; é uma atitude que coloca médicos em risco.
Para evitar perder sua profissão, ser processado, perder seu patrimônio e até ser preso, o profissional deverá ser incoercível e violento e deverá agir com a mão pesada, sem levar em conta qualquer questão subjetiva. Deverá objetualizar ao extremo suas pacientes, enxergá-la como uma ameaça, e se esconder atrás de práticas ultrapassadas, violentas e perigosas, mas que garantem a satisfação das corporações e das instituições que lucram com a alienação das mulheres e o controle absoluto sobre seus corpos. A lógica é a mesma da polícia: quem reclamar da violência aplicada contra o cidadão é “a favor de bandidos”; quem questionar a violência obstétrica e os abusos das cesarianas está “contra a tecnologia” e estimulando mortes evitáveis. Por trás desses discurso, a “carta-branca” para que médicos e policiais atuem da forma que mais lhes beneficia; a moeda circulante é o medo.
Não se trata apenas de restaurar a justiça, de analisar os fatos, de aceitar os limites da medicina, mas também de compreender que esta injustiça contra os médicos e parteiras que abraçam as propostas da humanização levará a um aumento considerável da morbidade e mortalidade maternas, além de consequências terríveis para os bebês nascidos sob o controle da tecnocracia sem limites. O ataque ao parto normal cobrará um preço alto em vidas humanas.
Este debate não se encerra no julgamento dos profissionais, na sua prisão ou liberdade e na justiça que se fará. O resultado da reação aos avanços da humanização apontará para onde desejamos que se situe o futuro da assistência ao parto. Se apostamos na alienação das mulheres e a penalização da medicina baseada em evidências, o resultado será o pior possível. Julgar médicos que defendem o parto normal e as escolhas informadas de seus pacientes como criminosos que agem dolosamente é uma aberração jurídica inédita, cujas consequências serão sentidas por toda a sociedade.
A escolha precisa ser feita. Que parto desejamos para nossos netos?
Crucial choice
We are facing a crucial dilemma for the future of childbirth care in this country. Recent signs point to the criminalization of natural childbirth and the perception of humanization of childbirth as an “exotic ideology”, and that is a disaster not only for professionals who seek to respect the reproductive and sexual rights of their patients, but also a tragedy for women themselves, who are permanently prevented from exercising agency over their bodies. The unspoken objective behind the persecution of natural childbirth professionals is to prevent women from having a voice and from being able to make decisions about their births; the way to carry this idea forward is to penalize – even imprison – birth professionals who agree to respect their clients’ wishes and choices.
The immediate result will be an increase in Cesarean rates, which have already exceeded 60% of all births in Brazil, as doctors always protect themselves by using hegemonic ideology as a shield. In the long term, we will see the absolute artificialization of birth, which will transform women into “fetal containers”, permanently alienated from any decision about their children and how they come into the world. Note that no doctor is prosecuted for (ab)using c-sections, regardless of the results – even fatal outcomes; technology, even when not indicated and without any justification, protects them. In this context of “obstetric McCarthyism”, patience, respect for time and subjectivity and connection with scientific evidence are defects, not virtues. Acting in accordance with the determinations of the WHO and even the Brazilian Ministry of Health is not something to be praised; it is an attitude that puts doctors at risk.
To avoid losing their profession, being sued, losing their assets and even being arrested, professionals must be uncontrollable and violent and must act with a heavy hand, without taking into account any subjective issues. They must objectify their patients to the extreme, seeing them as a threat, and hide behind outdated, violent and dangerous practices, but which guarantee the satisfaction of corporations and institutions that profit from the alienation of women and absolute control over their bodies. The logic is the same as that of the police: anyone who complains about violence against citizens is “in favor of criminals”; anyone who questions obstetric violence and the abuse of cesarean sections is “against technology” and encouraging preventable deaths. Behind this discourse is the “carte blanche” for doctors and police officers to act in the way that best benefits them; the official language in childbirth is fear.
It is not just about restoring justice, analyzing the facts, and accepting the limits of medicine, but also about understanding that this injustice against doctors and midwives who embrace the proposals of humanization will lead to a considerable increase in maternal morbidity and mortality, as well as terrible consequences for babies born under the control of an unlimited technocracy. The attack on natural childbirth will exact a high price in human lives.
This debate does not end with the trial of professionals, their imprisonment or release, and the justice that will be served. The outcome of the reaction to advances in humanization will indicate where we want the future of childbirth care to be. If we bet on the alienation of women and the penalization of evidence-based medicine, the result will be the worst possible. Judging doctors who defend natural childbirth and the informed choices of their patients as criminals who act intentionally is an unprecedented legal aberration, the consequences of which will be felt by the entire society.
The choice needs to be made. What kind of childbirth do we want for our grandchildren?
Há pouco li um texto curioso sobre as consequências do “sexo casual”. Não está bem explicado no texto, mas creio que foi definido como um encontro onde o sexo ocorre sem que exista uma conexão afetiva mais profunda e consequente. Ou seja: dois “ficantes” que resolvem usufruir dos prazeres sexuais sem que haja um compromisso formal, apenas pelo prazer que oferecem reciprocamente.
O texto descrevia os inúmeros problemas decorrentes desse tipo de encontro, usando como argumento teses pouco ortodoxas. Entre elas a ideia de que as “auras se fundem” durante o sexo, e que essa energia “permanece com você” por no mínimo 5 anos (como mensuraram essa impregnação?). Aponta para que, ao se relacionar sexualmente com alguém, você agrega parte da energia da pessoa com quem compartilhou a cama. Se ela for densa, instável, “carente de luz e amor” você incorpora essas características em sua própria aura. Pode inclusive tomar para si o carma de outra pessoa, caso ele(a) esteja carregado de “energias ruins”. Aqui se expressa, sem máscaras, a face mais moralista e conservadora do espiritualismo, usando de teorias sem evidências para criminalizar a livre expressão sexual. Este texto poderia ter sido escrito nos anos 30, e distribuído como um “manual para moças de família”. Por sorte o mundo mudou, e hoje este tipo de discurso não tem tanta popularidade quanto na minha juventude, quando a virgindade ainda era um tema frequentemente debatido. Essa perspectiva conservadora sobre o sexo – usado apenas como fonte de prazer – está fortemente arraigada na sociedade patriarcal, e para justificar esse preconceito criam-se teorias estapafúrdias como a impregnação de “energias” de outros parceiros e a “contaminação espiritual”.
Tais teorias em tudo mimetizam o furor microbiológico do final do século XIX onde todas as enfermidades eram explicadas pelas bactérias e pelas contaminações, fazendo do outro uma fonte de sujeira e de máculas físicas, geradoras de doença. O mesmo ocorre hoje, mas com elementos mais sutis; ao invés de bactérias, fungos e protozoários, agora falamos de energias sutis e carma. Tudo muito cafona, como, aliás, é típico do espiritualismo cristão, que herdou do catolicismo toda essa cultura de pecado e essa carga imensa de culpa. Fica evidente que a sexualidade com sua poderosa força criativa ainda vai receber por muito tempo a censura de conservadores, pelo medo do que possa ocorrer com uma sociedade onde o sexo seja livre. Não é à toa que o parto, elemento especial de expressão da sexualidade, continua sendo tolhido, amordaçado, cerceado, contido, controlado e domesticado, para jamais ocorrer sem o olhar controlador e censurador da sociedade.
Ainda vai demorar um bom tempo até que as pessoas possam parir e transar em paz, sem culpas e sem medos artificiais!!!
Uma mulher deitada de costas é como uma tartaruga encalhada. Nessa posição a tartaruga não consegue chutar, lutar, arranhar e correr tão facilmente. Quando a mulher está deitada de costas, a estrela do show se torna o “cuidador”. Afaste este personagem – ou faça-o agir apenas quando deve – e ela se tornará a “estrela” em seu próprio parto. Para o cuidador é importante manter aquela parturiente de costas, submissa, pois esta é a forma de manter o controle sobre ela. Não por acaso a posição “civilizada” de parir é idêntica a todas as formas de submissão entre mamíferos superiores. Por esta razão, mais do que um ato operacional, a posição de decúbito dorsal tem um importante valor simbólico no sentido de controlar e domesticar as forças reprodutivas.
Há basicamente três tipos de escritos médicos que eu me acostumei a ler, tanto na literatura em geral quanto na internet. Existem milhões de textos nessas categorias, e não poderia ser diferente. Ao lidar com a vida, a morte e todas as manifestações da libido, não seria possível à medicina deixar de produzir escritos sobre a profusão de emoções que permeiam as consultas e tratamentos, desde os encontros em consultório até as cirurgias sofisticadas e complexas que são correntes na atualidade. Poucos lugares são mais privilegiados para entender o drama da vida humana do que aquele onde se encontram os guardiões da doença e do sofrimento, da redenção e da cura. Não à toa, grandes literatos foram médicos, como Moacyr Scliar, Arthur Conan Doyle, Anton Tchekov, Ferdinand Céline, Oliver Sacks, William Somerset Maugham, François Rabelais, John Keats, etc…
O primeiro tipo de texto que eu reconheço é o escrito técnico, não o trabalho científico academicamente estruturado, mas aquele onde o objetivo é expor um caso clínico, uma história que ocorre ao redor de um diagnóstico e um tratamento, mesmo que envolto por reflexões de ordem filosófica ou ideológica. Nestes, o centro é a patologia, a doença, a enfermidade como um ente que se apossa do sujeito, toma conta dele e, por fim, o faz sucumbir – ou se salvar, normalmente pela ação médica. Nestes casos a patologia é a protagonista, como uma sombra maligna que ameaça o sujeito que, desesperado, se joga nos braços da medicina em busca de salvação.
O segundo tipo tem como foco o paciente. Durante anos me acostumei a ler histórias onde médicos escrevem sobre as curiosidades que os pacientes lhes contam. Por vezes o paciente é tratado como ingênuo, desatento, inculto, que trata suas doenças por nomes curiosos e “errados” e traz à consulta fantasias sobre o funcionamento do corpo. Diz coisas “engraçadas”, como “operar-se da pênis” (o apêndice) ou que teve “febre interna”. A descrição dos clientes é muitas vezes jocosa e, por vezes, desrespeitosa. Por certo que existem também as descrições de dramas, visões pessoais, dilemas terríveis, alegrias esfuziantes e as perspectivas dos doentes sobre a própria doença e a morte. Na área do parto e nascimento são muito frequentes as descrições do parto quem têm como foco as lutas do casal por uma gestação digna, os dilemas da gestação, a busca pelo protagonismo, as escolhas pelo parto normal, a decisão pelo local de nascimento, a luta contra o sistema e os resultados colhidos nestes desafios.
O terceiro grupo é sobre o próprio médico. Neste tipo especial de texto, o médico é o centro das histórias e é sobre sua atuação que gira o núcleo dramático da narrativa. Sua atenção, a precisão do diagnóstico, a descoberta da doença rara, a paciência, a argúcia, a persistência, a coragem são valores que frequentemente aparecem nessas descrições. Também é usual o paternalismo típico do discurso médico, a postura bondosa e condescendente e as narrativas heroicas, onde o médico é travestido de super herói, que sacrifica seu tempo, sua saúde e sua família em nome da cura dos seus pacientes.
Neste último grupo, e bem mais raro, se encontram os textos que estimulam posturas críticas em relação à ação da medicina e ao próprio proceder médico. Essas são as narrativas mais importantes e de qualidade superior, pois que pressupõem a coragem de tocar nas próprias feridas, tanto sobre o significado último da arte médica na cultura quanto nas fragilidades do médico, seus medos, suas angústias, suas aspirações, seus desejos e suas fantasias de onipotência. O profissional que tem a coragem de se olhar no espelho e descrever a si mesmo com a dureza necessária já é merecedor de toda admiração. Poucos ousam apontar suas máculas e falhas; aqueles que o fazem, demonstram força e um singular senso de integridade.
Não há dúvida que a medicina é um palco especial para as narrativas da vida. Ela está presente no seu início e no seu fim, com um olhar especial sobre as pontas da nossa curta passagem por este plano, mas também sobre todos os percalços dessa travessia complexa e tortuosa. As reflexões dos médicos se tornam extremamente criativas quando quem as escreve se afasta do ufanismo arrogante do “salvador” ou do “abnegado curador” e se aproxima do sujeito com todas as fragilidades humanas a quem foram oferecidas as ferramentas de um saber milenar para levar adiante seu ofício. O médico sofistica sua escrita quando descreve o choque entre o saber do médico e os dramas e dores do seu paciente como um encontro de almas, pois é dessa matéria única que são feitas as consultas.
Em meados dos anos 80, um pouco antes da minha formatura e o início da residência em ginecologia e obstetrícia, decidi fazer uma análise da relação entre as fases da lua com dois fenômenos conhecidos: o inicio do trabalho de parto e o parto propriamente dito. Meu objetivo era bem simples: esclarecer a influência das fases da lua com o nascimento humano, já que popularmente esta relação era feita, mas sem uma metodologia adequada para sua avaliação. Era muito comum encontrar, inclusive entre os médicos, comentários ao estilo: “plantão passado foi terrivel, mas é compreensivel: era lua cheia”. Entretanto, eu sempre achei que este era um viés de observação. Ou seja: por ter sido um dia com excesso de atendimentos o observador se preocupava em saber a fase da lua; fosse um dia sem partos ele sequer se importaria com isso.
Diante disso, resolvi tabelar todos os nascimentos e as internações em trabalho de parto de 1⁰ de janeiro a 31 de dezembro de um ano especifico do hospital escola onde eu havia estudado e estava prestes a cursar a residência. Fui aos arquivos do hospital e dividi essas ocorrências entre as fases da lua para ver se alguma correlação poderia ser encontrada entre estes dois fenômenos: a posição do nosso satélite em relação sol e a emergência dos sinais que iniciam a expulsão fetal. Feito isso, era necessário tabular e usar fórmulas matemáticas de bioestatística para encontrar – ou não – uma relação de causalidade.
Nesse interim eu me formei e comecei a fazer plantões no centro obstétrico do hospital. Num desses plantões eu recebi na emergência uma paciente com queixa de contrações. Era mais de meia-noite e o plantão estava bem calmo. A gestante chegou acompanhada do marido e ambos pareciam muito ansiosos. Mostrou seu cartão do pré-natal e os exames protocolares. Primeiro filho, 39 semanas de gestação, pressão ok, batimentos fetais idem. Sem intercorrências na gestação. Fiquei avaliando os exames com uma demora proposital, esperando testemunhar uma contração. Nos 15 minutos em que ficou na sala, ao lado do companheiro, nenhuma contração foi relatada. Pedi que a atendente a ajeitasse na mesa de exames, e só quando se ergueu da cadeira relatou que estava sentindo uma cólica no útero, que foi rápida e sem muita intensidade. Ao fazer o exame vi que ela tinha não mais do que 2 centímetros de dilatação, contrações frágeis e somente duas cada 10 minutos. No jargão obstétrico, “pródromos” (pró – dromo, precursor, aquele que corre na frente). Recomendei que voltassem mais tarde. Diante da minha indicação o marido me encarou de forma preocupada dizendo:
– Doutor, não há condições. Já é madrugada e moramos na Restinga (bairro afastado da cidade). Não temos dinheiro para pagar um taxi de novo. Para nós é muito caro; somos pobres e esse gasto seria impossível. Como o senhor mesmo disse, ela pode iniciar as dores fortes dentro de 1 ou 2 horas, talvez até antes. Ou depois, mas como saber? Não tem como ela ficar aqui aguardando?
Senti a angústia do casal e entendi a preocupação. Resolvi conversar com o contratado de plantão, o qual aceitou a ideia de deixá-los no hospital esperando as contrações, já que o centro obstétrico estava vazio e, para eles, um retorno mais tarde seria por demais dispendioso. Era o que chamávamos de “baixa social”, uma internação determinada por fatores não médicos, mas relevantes. Essa é uma prática muito comum, que existe em qualquer lugar até hoje. O casal agradeceu, ficaram a noite toda dormindo, as contrações desaparceram e apenas voltaram ao amanhecer. Passei o caso para o novo plantonista que estava assumindo o plantão e este resolveu induzir, usando soro com oxitocina. Sim, precisavam fazer aquele bebê nascer, “já que a paciente havia ficado a noite inteira sem desenvolver um franco trabalho de parto e ocupando um leito que poderia ser necessário mais tarde”. Foi instaurada a indução e eu fui para casa.
Ao sair do plantão ainda estava escuro e percebi que aquela noite havia sido de lua cheia, mas o plantão tinha sido monótono e com poucos casos. Cheguei em casa, peguei todas as minhas anotações sobre partos e fases da lua e guardei em uma pasta, onde então até hoje. Nunca mais me interessei por este estudo. Aquele caso corriqueiro me havia feito perceber que, no mundo ocidental e nas sociedades complexas, é impossível observar a relação dos fenômenos da natureza com as gestantes e o parto. As influências externas são tantas e tão mais intensas que seria impossível depurar os casos de suas interferências de ordem social. A paciente daquela noite internou sem necessidade médica real e recebeu um soro pela manhã igualmente sem ser preciso, apenas porque seu parto tinha que se enquadrar na ideologia obstétrica de nossa época e na grade dos tempos de seus assistentes. Nada naquele nascimento foi natural; inobstante a fase da lua, e se ela poderia ter alguma influência no parto, tudo foi atropelado por fatores sociais e por crenças médicas, impedindo que qualquer correlação pudesse ser observada.
Lacan deixou claro que a “palavra matou o real”. Não existem mais “partos naturais”, pois que estes ficaram perdidos num passado muito remoto, sobrevivendo apenas enquanto fantasia ou utopia. O parto, inserido na linguagem, é o que nossas mentes fazem dele; é um evento da cultura que ocorre no corpo das mulheres, carregando consigo o reflexo dos nossos valores e das nossas crenças. Envolto nesse contexto simbólico ele não pode ser mais avaliado pela suas características primitivas, fisiológicas e “naturais”. A mulher que poderia parir esse “bebê natural” já não existe mais; expulsos do paraíso, somos todos condenados a parir e nascer no contexto da palavra.
Se é verdade o adágio de que “o parto é um evento social que ocorre no corpo das mulheres”, teriam as mulheres no passado, recente ou longínquo, experenciado partos mais rápidos e fáceis? Quanto existe de real nas dificuldades do processo de nascimento e quanto há de cultura nestas dores? Se a sociedade inteira conspira para o nascimento, quais são as responsabilidades do campo simbólico – a forma como simbolizados os eventos – na construção do parto como sinônimo de “dificuldade”, “dor” e “sacrifício”? Como seriam os partos no século XVI? Inobstante sabermos que a ciência obstétrica salva vidas – inclusive e principalmente pela cesariana – qual o seu papel na desvalorização crescente do parto normal, da fisiologia feminina e dos mecanismos adaptativos que formataram o parto humano nos últimos milênios?
Estas são perguntas para entender a situação da assistência ao parto no início do seculo XXI. Hoje, a chance de uma mulher brasileira de classe média ter um parto normal no nosso contexto cesarista não passa de 10%. A cesariana triunfa de forma inconteste, em especial nas camadas mais abastadas da sociedade. Essa evidência demostra a distância entre as ideologias e a materialidade da vida. Teoricamente as mulheres ocidentais teriam uma ampla possibilidade de escolha: podem determinar como serão seus partos, desde nascimentos cirúrgicos até partos na segurança das suas casas. Todavia, a realidade se apresenta diferente e ela é condicionada pelo sistema de poderes que controla esses processos. Por isso as cesarianas já ultrapassam 59% dos nascimentos; no Brasil de hoje um parto fisiológico é a opção minoritária e, nas classes mais altas, a exceção.
Existe uma distância entre a liberdade teórica e a liberdade real, da mesma forma como o capitalismo oferece o “céu como limite”, mas sua realidade mostra a estagnação das classes e a dominação dos “de cima”. Para estes as opções são reais, sendo apenas teóricas para quem é “de baixo”. Quando analisamos friamente, é nítido que as mulheres são condenadas às cesarianas pelo modelo obstétrico “iatrocentrico” (centrado na figura do médico) e controlado pelas necessidades dos médicos, e não pelas reais condições e exigências do binômio mãebebê. Mesmo que, aparentemente, exista uma gama enorme de opções para as mulheres, elas são direcionadas subliminarmente àquelas que beneficiam os donos do poder.
A chance de um parto normal aumenta exponencialmente quando ocorre a decisão de ficar em casa, por exemplo, até 7 cm de dilatação; a forma como uma mulher chega ao hospital é o mais valioso elemento para prever o que vai lhe acontecer. Não deveria surpreender a ninguém que esse é o grande segredo: ficar o mais tempo possível longe dos ambientes insípidos e adrenalínicos do hospital. Desta forma cabe a pergunta, que me parece relevante: como seriam os trabalhos de parto sem a cultura da medicalização, que leva inexoravelmente à alienação das mulheres nos temas do parto e a amamentação? Sem uma cultura de parto formatada pelo medo (e a solução deste drama oferecida à tecnocracia), pairando sobre o parto como um abutre agourento, seriam os partos mais livres, mais rápidos, mas tranquilos e “naturais”?
Estas são as questões fundamentais: qual a parcela de responsabilidade da “cultura do medo” sobre o parto para a criação de um modelo alienante e tecnológico? Por que (ou para quem) as sociedades ocidentais criaram a atual narrativa do parto, que o descreve como violento, agressivo, doloroso e indigno da condição humana? Quem se beneficia com essa perspectiva? Quem ganha com a expropriação do parto e a transformação das mulheres em contêineres frágeis e indignos de confiança? As respostas a estas perguntas serão a narrativa para o nascimento humano no século XXI.
PS: No início deste século havia listas de discussão como a “parto nosso” e a “parto humanizado”. Elas foram fundamentais para o debate sobre as transformações que trazíamos como proposta. Eu escrevia um “tijolão” como esse cada dois dias, apresentando minha perspectiva sobre a assistência e os rumos para o nascimento humano. Quase ninguém lia, assim como quase ninguém vai ler o que está escrito nesse “tratado” aí em cima. Sim, em tempos de Facebook “tratado” é qualquer texto acima de dois parágrafos. Mas… a gente escreve por compulsão, não porque alguém porventura vá se interessar.
O acrônimo B D S M significa Bondage, Discipline, Sadism and Masochism. Parecem palavras retiradas do lema de uma milícia de extrema direita, mas na verdade são práticas sexuais que incluem algum nível de violência consentida. Gente amarrada, humilhada, castigada, uso de sadismo e masoquismo. Não faço nenhuma crítica de ordem moral quanto a isso, em absoluto. Todos devem saber onde amarrar seu desejo, e se responsabilizar por ele. O limite? A lei. Em verdade creio que estas práticas tem o mesmo valor de fetiche quanto casar virgem, frequentar a igreja e ter 10 filhos. Cada um com sua fantasia; aliás, gosto da tese de que o pudor é a mais sofisticada das perversões. Afinal, como bem dizia Caetano:
A gente não sabe o lugar certo De colocar o desejo Todo beijo, todo medo Todo corpo em movimento Está cheio de inferno e céu Todo santo, todo canto Todo pranto, todo manto Está cheio de inferno e céu O que fazer com o que DEUS nos deu? O que foi que nos aconteceu? Todo homem sabe que essa fome É mesmo grande Até maior que o medo de morrer Mas a gente nunca sabe mesmo O que quer uma mulher
Aliás, grande tema para debater. Nos congressos de BDSM uma das questões mais debatidas é a importância dos “passwords” ou “safewords”. Tipo: numa encenação sadomasoquista como saber se o sujeito está atuando, ao estilo “ai, ai, ai, não aguento mais, não me bata”, ou quando REALMENTE está sufocando ou sofrendo demasiado com a dor pelo castigo imposto (e até então consentido)?
Esse debate, por distante que possa parecer, eu lancei no universo do parto. Afinal quando um “não aguento mais” é uma atuação e um simples pedido de ajuda diante das incertezas do processo de parir e quando é um real limite para o sofrimento, e a consequente desistência de um projeto de parto normal? Como saber se devemos entender o valor contextualizado do pedido ou o valor bruto da palavra? Exatamente porque os domínios de expressão podem ser confusos eu dizia que, para partos também deveriam existir “palavras passe”, senhas, sinalizadores de que “agora é prá valer”, ou “chega dessa brincadeira”. Isso poderia criar mais garantias para as mães e mais segurança para os cuidadores.
Mas se “parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, que dizer dos outros aspectos na vida sexual onde um “não” poderia querer significar outra coisa, muitas vezes até o oposto? Bem… nesse caso perdemos a oportunidade de estabelecer qualquer debate; o mundo de hoje fechou essa porta. Eu sempre digo que nesse caso – nos prolegômenos do ato, no chiaroscuro do apagamento neocortical – o “não” deveria ser desnecessário.
Aos homens eu digo: se houver qualquer hesitação, por mais sutil que seja…. fuja. Não vale a pena arriscar. Para as meninas digo: respire fundo e diga com todas as letras o que (não) quer; não espere que os homens entendam racionalmente negativas gemidas quando seu cérebro está quase apagado diante da afluência de hormônios. Isso fará com que na área sexual, contrariamente à toda linguagem humana, os valores das palavras venham a perder seu simbolismo e terão sentido exclusivamente denotativo. No atual cenário das fricções de gênero, não vale a pena correr qualquer risco.
Meu velho carro driblava os obstáculos como um verdadeiro craque do asfalto, mas as circunstâncias do caminho me obrigaram a diminuir a marcha. Mulheres agoniadas aguardavam seus filhos fazendo fila tripla em frente à escola, enquanto escutavam música nos automóveis. O fluxo, que já era lento, aproximava-se da estagnação. Minha impaciência me fez contrair o cenho, mas percebi que a excitação do reencontro com os colegas era mais perturbadora do que as agruras de um trânsito caótico. Quinze anos já se haviam passado. Quanta vida, quantas histórias haveria para contar. Como estaria Nadine? Sabia, por amigos em comum, que ela trabalhava no mesmo hospital em que fizemos residência. Sabia também que estava só, em uma solteirice que poucos compreendiam. Maximilian acabara de formar sua filha mais velha, e na cerimônia de formatura é que havíamos nos encontrado pela última vez. Com Max, também tive poucos encontros nos últimos anos, mas é difícil para uma figura ímpar como ele passar despercebido. Quem não me falava dele por ele me perguntava.
O tráfego morosamente se refez próximo ao velho colégio marista. Os poucos agentes de trânsito não conseguiam dar conta da balbúrdia de carros, motocicletas e escolares movendo-se em todas as direções. Pisei no acelerador para vencer a inércia quando um espaço se abriu entre meu carro e o micro-ônibus que se encontrava à frente. Subitamente, quando a rotação do motor começava a aumentar, uma criança surgiu correndo, cruzando inadvertidamente à frente do meu carro. Reflexamente, tirei o pé do acelerador e pisei no pedal do freio, produzindo um guinchar de pneus e um baque, que projetou meu corpo à frente. Ao ver a imagem do menino passando perigosamente na minha frente, gritei: “Ei, moleque! Preste atenção! Olhe quando atravessa!” Ainda tive tempo de olhar a criança transpor a rua e alcançar a calçada oposta. De lá, na companhia dos colegas, lançou seu olhar para mim, entre assustado e envergonhado.
Meu grito irrefletido me trouxe à memória uma cena, que brotou das minhas lembranças da época logo após a formatura na faculdade de medicina. Aconteceu poucos meses antes do “incidente” na sala de emergência. Eu ainda era um residente tecnocrata, inseguro e imaturo, tentando imitar da melhor maneira possível as atitudes e posturas de meus professores. É uma história do tempo em que eu, Max e Nadine éramos colegas de residência no hospital-escola onde por alguns anos trabalhamos juntos. É também a história de um grito, tão irrefletido como o que eu acabara de dar, mas muito mais profundo e significativo, e que de alguma maneira modificou minha forma de entender o intrincado mecanismo de sentimentos e emoções que brotam quando trabalhamos na cumplicidade do nascimento humano.
Na nossa época de residência, havia um médico contratado do departamento de obstetrícia que era recém-descasado.
Rico, filho de uma família de médicos famosos, tinha sempre o carro da moda, as roupas da moda e — depois da separação — as meninas da moda. Era possuidor de uma postura tipicamente padronizada de atuar em medicina, o que não causava nenhuma estranheza. Era apaixonado pelas novas conquistas tecnológicas incorporadas à gestação e ao nascimento, em especial as ecografias e as analgesias de parto. Uma vez me disse que eu deveria aprender a manejar adequadamente o fórceps porque minha geração de obstetras usaria as peridurais de uma forma quase que obrigatória e, dessa forma, o fórceps de alívio seria um instrumento muito mais importante do que costumava ser. Dizia isso de uma maneira absolutamente honesta, sem perceber o que algum tempo depois eu descobriria ser a equação perversa da tecnocracia. “Criamos o veneno para depois vender o antídoto”, como sempre me repetia Max. Quis o destino zombeteiro que meu colega contratado viesse a falecer anos depois de uma complicação anestésica advinda de uma cirurgia plástica estética. Costumava levar suas “namoradas” ao plantão de obstetrícia do hospital para lhes mostrar os partos. Sendo ele um quase quarentão, adorava levar as namoradas de 20, 25 anos para mostrar “como nasciam os bebês”. A corja de invejosos do CO costumava dizer que depois disso ele saía do hospital e demonstrava como eles eram feitos. Pura maledicência.
Em uma dessas visitas, entrou no plantão obstétrico uma dessas “namoradinhas”. Era uma linda jovem, de pouco mais de 20 anos. Tinha olhos verde-água (era tudo o que eu podia ver por detrás da máscara e do gorro). Tinha a pele clara, o que é muito comum por essas bandas de colonização alemã e italiana. O corpo era um elogio à perfeição das formas, e só depois fiquei sabendo que se tratava da Glamour Girl recentemente eleita. O decote da roupa cirúrgica era bem generoso de forma que… bem, estou fugindo do assunto.
Naquele dia, eu é que estava incumbido dos nascimentos que chegavam na zona restrita, onde ficavam as salas de parto, e estava atendendo uma gestante nos seus puxos finais. Deitada de costas, amarrada na mesa, olhava para o teto e tentava fazer suas forças da melhor maneira possível. Na sala repleta de estudantes e enfermeiras, tratava-se de apenas mais um parto. A mulher suava, ofegava. As enfermeiras punham-se atrás dela e gritavam coisas como “força mãezinha”, “força comprida”, “assim não, você está fazendo tudo errado”. Banalidades do atendimento institucional. Eu evidentemente em nada ajudava, e o melhor que fazia era não engrossar o coro de gritos da sala. Lá pelo terceiro ou quarto puxo, percebi que um belo exemplar feminino adentrava a sala e postava-se no canto da mesma. Era a convidada de olhos verdes. Voltei-me para ela e disse um “boa noite” seco. Já havia sido comunicado pelo meu superior que ela queria assistir a um parto, e que eu procurasse ser gentil com ela. Ok,pensei, gentileza é comigo mesmo.
Lá estava ela. Olhava para os demais presentes na sala com um misto de excitação e apreensão. Juntou as mãos ao peito, como que a rezar, e silenciosamente ficou a observar. Tinha o olhar fixo no períneo sangrante da paciente (sim, havia uma episiotomia aberta) e seus belos olhinhos verdes se comprimiram diante da visão do sangue escorrendo. Mas não disse nada, talvez porque tivesse sido avisada para não atrapalhar.
Minha paciente continuava seus esforços para expulsar o bebê. Deitada com as pernas presas nas perneiras da mesa ginecológica, sua dificuldade era redobrada, mas eu era ainda um pobre obstetra iniciante. Tinha fé nos postulados que me guiavam; acreditava ser o parto um evento médico, controlado por especialistas, que dominavam a técnica de forma apurada, com o objetivo de salvar as mulheres de uma natureza cruel. “A natureza é uma má obstetra”, já dizia um antigo adágio obstétrico, e assim eu fui doutrinado na escola médica. Por essa razão, minhas pacientes deveriam ficar na posição que mais me facilitava a intervenção, a manipulação e, em última análise, o auxílio que eu lhes poderia oferecer. “Mulheres parindo são como equilibristas em uma corda bamba no 40o andar… e você é a rede”, disse-me uma vez um professor de obstetrícia, incorporando nessa frase a violência do conceito de “inevitabilidade do desastre”, tão admirada pelos estudantes de medicina. Essa era a base ideológica do ensino obstétrico: “Mulheres não são dignas de confiança”. Santo Agostinho realmente deixou seguidores em todas as áreas da cultura.
Max olhava para meus partos iniciais com a delicadeza silenciosa dos sábios. Preferia não me aborrecer com algo que eu ainda era incapaz de compreender. Entretanto, seu silêncio me inquietava. Parecia querer dizer algo com sua mudez, e eu me irritava cada vez que ele via uma cena como esta e apenas sorria para mim. Um, dois, três… estava quase nascendo. O cabelo negro do nenê contrastava com o rubro sangue que brotava do períneo de sua mãe. Ele parecia esforçar-se, mexendo sua cabecinha para frente.
— Agora, mãezinha… é sua chance. Ele vai nascer agora. Força, coragem! — gritei.
Mais uma força e…. pronto. Nasceu uma… menina! Antes que a paciente pudesse expressar uma palavra qualquer, de alegria ou alívio, escutei algo que por muitos anos ainda ecoa nos meus ouvidos.
Um grito.
Um grito lancinante. Um grito do fundo, das entranhas, dos porões dos nossos sentimentos. Um berro incontido, impulsivo. Um som profundo, do âmago, da escuridão das nossas emoções inconfessas. Olho para trás, entre assustado e iniciando a ficar contrariado.
Era a bela menina de olhos verdes. Trazia as mãos a segurar a cabeça, que pendia para frente. Seu corpo se curvara, e apoiava as nádegas na parede atrás. Os joelhos se dobraram. O gorro estava levemente deslocado, mostrando uma bela madeixa de cabelos dourados a lhe cair no rosto. As lindas esmeraldas que trazia nos olhos estavam umedecidas pelas lágrimas que escorriam pela face e molhavam a máscara cirúrgica. Já não chorava mais; soluçava. Uma enfermeira ajudou-a se erguer, e abraçada a ela continuou a chorar, baixinho. No centro da sala, a mãe, alheia ao que estava acontecendo, já afagava seu filho nos braços. Gritava junto com seu bebê, dizendo “É uma menina, uma menina”. Não havia pai naquele cenário. Certamente eu era o único homem a presenciar aquela cena. Chamei a auxiliar ao meu lado e lhe disse em voz baixa, mas com indisfarçável irritação:
— Por que ainda não tiraram essa menina da sala? Não perceberam que ela não tem preparo emocional para participar de um parto?
A auxiliar então levou a menina, ainda chorosa, para fora da sala de parto. Apalpei o útero para sentir-lhe a firmeza depois da saída da placenta. Parecia firme o suficiente para promover a parada de sangue que brotava da ferida placentária. O bebê já estava no berçário, junto aos neonatologistas, e a mãe mantinha o olhar preso no teto, talvez imaginando como estaria seu filho e revivendo na memória os momentos que cercaram o evento que acabara de ocorrer.
Resolvi trocar minhas luvas antes de iniciar a sutura da episiotomia. Ainda lembro a ritualística para isso, mas não tenho nenhuma saudade desse tempo de obscuridão na minha prática. A episiotomia era uma das rotinas irrefletidas, automáticas e sem embasamento que realizávamos cotidianamente, sem que tivéssemos uma discussão sequer sobre a racionalidade do seu uso. Minha conduta era realmente robótica, mas eu era um habitante da Matrix que sequer tinha noção das forças que controlavam minha atitude e minhas condutas. Antes de colocar o novo par de luvas esterilizadas, saí da sala para ver o que estava acontecendo com a garota. Ela já estava recomposta, mas ainda tinha seu rosto vermelho. O contraste do verde dos seus olhos com o vermelho do seu pranto fazia uma combinação de inesquecível beleza. Suspeito que muitas vezes fiz minha mulher chorar apenas para desfrutar desse deleite estético. A bela Glamour Girl olhou-me e, entre soluços, disse:
— Obrigado, doutor, por me deixar participar do parto. Desculpe minha reação. Desculpe o meu grito e as minhas lágrimas. É que… sabe… é que…
— Pode falar… — falei, lançando-lhe um sorriso de pseudobenevolência.
— É que é tão lindo! Uma criança nasceu. É tão maravilhoso; tão fantástico. Um ser humano nasceu. Que coisa linda, linda! É incrível…
Estava sorrindo. Um sorriso infantil. Seus olhinhos verdes brilharam, e pude ver a criança por trás da sensualidade de uma bela mulher.
— Ok, entendi — disse eu. — Fique calma. Não se preocupe, quase ninguém notou.
Dei-lhe um abraço, e percebi que ela voltava a chorar. Amadores, pensei eu. Quando veem isso, perdem a compostura. Gritam, se escabelam, choram…
Entretanto, as lágrimas e o grito da bela menina haviam produzido uma modificação que eu ainda não havia avaliado por completo. Eu estava atordoado pela impressão sonora, mas muito mais pelo seu significado profundo. Queria saber porque alguém se deixava impressionar dessa forma por um evento que para mim aparecia tão banal e corriqueiro. O que havia de “especial” e “maravilhoso” que me escapara? O que havia escondido por trás do grito da Glamour Girl?
Voltei para a sala para terminar a minha cirurgia ainda sem entender as razões da minha inquietude. Ainda havia uma episiotomia a ser costurada. Despedi-me da bela loirinha de olhos verdes sem nunca ter podido ver seu rosto, que se manteve sempre escondido atrás da máscara. Dirigi-me para a sala de parto, sem imaginar que algo de muito grave estava acontecendo. Porém, quando novamente entrei na sala, para minha surpresa e atordoamento, havia outra mulher deitada sobre a maca. Não era a mesma que eu havia ajudado a dar à luz. Era outra. Por alguma estranha razão, eu olhava agora para outra pessoa. O grito da Glamour Girl ainda ecoava nos azulejos da sala, entrando nos meus ouvidos como uma sirene de alerta. Eu parecia ter acordado para algo através daquele som, e a transformação me aparecia agora diante dos olhos.
Eu havia visto um milagre, um assombro da existência humana, e só agora tinha me apercebido. Como por encanto pude enxergar o que a bela menina dos olhos de esmeralda havia me descrito. A paciente que eu havia atendido dera lugar ao que eu agora estava vendo: um prodígio da vida. Anos de dessensibilização não tinham conseguido apagar completamente a chama que existe em cada um de nós. Ainda restava algo para recuperar.
O ritual de passagem promovido pela escola médica coloca os jovens estudantes dentro de uma escolha complexa e difícil, porém inconsciente. Como todo rito, o ritual de formação dos médicos pressupõe uma passagem, um percurso. Nessa viagem, precisamos primeiramente nos despojar de nossas crenças antigas, assim como de nossos valores. É fundamental que assim seja, porque o novo status que conquistaremos no final do processo dispensa a condição antiga. Os estudantes iniciantes de medicina, assim como quaisquer indivíduos, não diferenciam o corpo “erotizado” que possuímos do corpo “real” que é seu novo objeto de estudo. Continuamos a ver a alma, a história, a dor e o fim quando avaliamos um corpo outrora habitado por vida. Uma das tarefas mais importantes do processo iniciático da medicina é retirar a alma dos corpos, para que, assim destituídos, possam ser mais facilmente entendidos pelos alunos. Essa é uma das mais complexas tarefas, porque pressupõe a perda da capacidade de sentir o que o outro sente. Algum nível de isolamento afetivo é quase que obrigatório como mecanismo de proteção do ego, porém o que se vê é a tentativa de isolar o profissional de toda a dimensão que não seja técnica. Esse processo leva o aluno/iniciado a incapacitar-se para a leitura das emoções e das dificuldades afetivas, levando-o a se enclausurar em um mundo biológico e asséptico. O que infelizmente encontramos depois da formatura é um grupo de novos médicos absolutamente aderidos ao modelo que lhes foi passado, negando, até mesmo em si próprios, os aspectos espirituais e transcendentais de suas existências.
Em contrapartida, como fechar os olhos aos eventos plenos de espiritualidade e afeto existentes no nascimento humano? Como lhes negar a essência sexual, viva e pulsante? Como impedir que um evento que conjuga vida, morte e erotismo não altere nossa percepção da vida? “O nascimento humano é uma bofetada no niilismo”, me diria Max.
Voltei a olhar para a mulher deitada à minha frente e que mantinha os olhos fixos em algum ponto reconfortante da parede de sua memória. Por alguns minutos, fiquei atônito, pensando no que havia de significado em tudo aquilo. Cheguei bem perto e olhei para ela, quase idêntica à outra, mas muito mais viva e muito mais bela. Ali estava a “impostora”, que algumas mulheres me desvendariam a existência. Era também a “mulher destruída” que Débora me mostrara logo após o nascimento de seu primeiro filho. Uma mulher modificada, forjada na chama de suas dores, esculpida pelo cinzel do seu cansaço, que tateia no breu de seus medos os limites a que pretende atingir. Aquela que veio tomar o lugar da “outra”, que morre metaforicamente no parto para deixar nascer uma nova mulher. Que loucura!, pensei eu ainda atordoado.
A bela menina de olhos verde-água tinha razão. A vida se perpetuando, se refazendo, se recriando. E eu estava aqui quando tudo aconteceu. Eu estivera no epicentro do acontecimento mais marcante na vida de várias pessoas, e não havia percebido até então a amplitude daquele instante mágico. Saí de novo da sala, para ver se podia encontrar a garota. Ela já havia partido, e provavelmente já estava contando para alguém o que vira há pouco. Que pena. Eu queria lhe dizer que ela possuía algo que eu estava prestes a perder, mas que algo dentro de mim se recusava a entregar. Eu queria dizer que o seu grito também existia dentro de mim, mas preso, silencioso e calado. Queria lhe dizer que esse silêncio machucava, doía, mas que eu fora ensinado a não chorar, não me emocionar, não gritar. Queria dizer que o seu grito me ajudou muito, e que ela jamais vai poder entender o quanto.
Prometi para mim mesmo que jamais permitiria me petrificar, me anestesiar. Se quisesse poderia gritar, me escabelar, rir, chorar. Não iria me insensibilizar com a beleza da vida ou com o amargor da morte. O grito da bela menina me ensinou que o que de mais humano nós temos não pode ser jogado fora como se fôssemos máquinas previsíveis. O belo da vida, assim como os seus mais escuros espectros, merecem de nós o sorriso e a lágrima de veneração.
Segui meu caminho em direção ao hospital ainda com a tonalidade dos belos olhos da Glamour Girl a impregnar minhas lembranças. A saudade de Max e Nadine me fez mais uma vez pisar no acelerador, mas dessa vez com cuidado redobrado. Faltava pouco para o nosso reencontro.