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Leo Lins

O comediante Leo Lins foi condenado a 8 anos de prisão e 300 mil reais em multas por fazer piadas consideradas desrespeitosas com minorias, debochando de velhos, gays, crianças com deformidades físicas, etc. An questão não é se as piadas que ele conta são adequadas, boas, edificantes ou até respeitosas, mas se o Estado tem o direito de determinar que tipo de piadas podem ser contadas. A meu ver, e para muitas pessoas que não se deixaram seduzir pelo discurso identitário, ser preso por contar piadas é o fundo do poço da justiça autoritária brasileira. Parece certo que Juca Chaves tinha mais liberdade criativa durante a ditadura militar dos anos 60 do que um comediante atualmente.

Eu já assisti vídeos curtos das apresentações desse comediante e nunca gostei, e apenas por isso não assistirei a um show seu. Não gosto das piadas, acho apelativas e, acima de tudo, sem graça. Ou seja: não faço sobre elas uma análise moral, acho que lhes falta graça, humor. Entretanto, é óbvio que ninguém é obrigado assistir, muito menos gostar deste tipo de espetáculo, porém prender e multar alguém por contar piadas é absurdo, inaceitável, imoral e inconstitucional!! Conte a piada que quiser, só vai rir quem achar graça. Se acham inadequado, façam como eu: ignorem. Mais ainda: a ideia de tratar as minorias atingidas pelos chistes como “coitadinhos” que precisam ser protegidos de piadas não os ajuda. Esse é um modelo “maternal” que protege às custas da infantilização, e isso impede a conquista da maturidade. Quem deseja ser maduro deve renunciar às proteções excepcionais e fortalecer seu ego, ao invés de tentar impedir os gracejos alheios. Repito: essas proibições e criminalizações fazem mal aos grupos minoritários. Aqueles sujeitos ou grupos que desejam ascender à posição de protagonista necessitam abandonar a posição de vítimas (mesmo quando o são).

Creio ter deixado claro que a minha defesa é em tese. Eu já assisti vídeos desse humorista e percebi que no seu show ele força a barra. Tipo: vou contar uma piada de negro, gay, velho, mulher, deformidades físicas ou sobre lésbicas só para causar, para dizer que faço o que eu quiser, que brinco com qualquer coisa. Para mim soa falso e forçado; portanto, sem graça. Apesar disso, jamais aceitaria que esse tipo de piada fosse proibida, exatamente porque essa perspectiva proibicionista é comprovadamente inútil. As piadas do Juca Chaves (“comi muito a senhora sua mãe”) eram “proibidas” na minha juventude, mas na escola todos sabíamos de cor e salteado todas as “proibidonas”.

Tenho como uma regra de vida que nada pode criminalizar o humor. Nada mesmo. Pode fazer piada com qualquer coisa. Aliás, sobre assuntos delicados, o Ricky Gervais faz várias piadas em seu show; tudo depende do contexto. Estabelecer sacralidade sobre determinados assuntos é péssimo para ideias, propostas, a necessária transformação do mundo, as religiões, as personalidades, os grupos oprimidos e para as minorias. Proponho um exercício: imagine que seu filho Betinho chega no primeiro dia de escola, lugar onde as crianças exercitam tudo, inclusive a maldade. Todavia, seu filho nasceu com um problema: ele tem alopecia, é carequinha e não tem cabelo algum. Agora imagine a professora apresentando Betinho para a turma e dizendo “crianças, escutem: é proibido fazer piadas com o Betinho por ser careca”. Isso seria um desastre para o Betinho, pois seria excluído dos grupos e estaria sempre sendo visto como o protegido do sistema, infantilizado, sem desenvolver sistemas e estratégias de adaptação e proteção. O que a professora deveria fazer é não dar importância alguma para isso, reforçar sua autoestima, exaltar suas virtudes e ensiná-lo a se defender. Protegê-lo, como fazemos com as minorias por meio da lei, não ajuda esses grupos, muito menos o Betinho. Para muitos é difícil entender a perspectiva de quem diz que os grupos e os sujeitos – por si só – precisam desenvolver sistemas de proteção e defesa. Quem traduz o mundo pela visão materna terá sempre dificuldade para entender o mundo pela perspectiva da paternidade.

A proibição de gracejos sobre temas escolhidos (quem escolhe sobre o que se pode fazer piada?) seria a “lei seca” das piadas, que apenas as faz acontecer entre sussurros ou em locais fechados e seguros – e por esta razão mesmo elas se espalham. A sociedade não se move por decretos ou por proibições; só o que nos faz avançar é a lenta sedimentação de novos valores, que insidiosamente se espalham pela cultura. Proibir é mais do que inútil; isso amplifica a ação que se tenta combater. Por trás desse tipo de estratégia está a crença der que o judiciário pode modificar a cultura, quando a verdade é que ele apenas reflete os valores de determinadas culturas. A luta contra discriminações ou preconceitos não pode ser feita pelas leis, mas pela lenta sedimentação de valores na cultura. Compare este tipo de censura aplicada aos humoristas brasileiros com a liberdade dos comediantes de “stand up” como Ricky Gervais ou Dave Chappelle que fazem piada com tudo, literalmente qualquer coisa. Fazem até piada com abuso sexual(!!), mas sempre alertam para o cuidado especial com o contexto, o campo simbólico que envolve de significados qualquer anedota. Não gostar do tipo de piada é legítimo; proibir é abuso.

Minha discordância é que criar estas proibições, legislações e aumentar penas não defende as minorias, pois este tipo de ação jamais protegeu ninguém na história da humanidade. Repito: o que as proibições e as leis fizeram contra o nazismo, o álcool ou o comunismo? O que fará com o racismo? O que fará com o debate sobre o machismo? A resposta é clara: nada, pois o proibicionismo nunca produziu efeitos positivos na cultura. O que muitos pretendem é cercear a possibilidade de pensar, de expressar, de dizer piadas, mas é claro, só de alguns grupos. Não pode chamar de símio um grupo, mas pode chamar outro de gado.

E sobre as leis, acho que devem ser cumpridas. Quem desrespeitar as leis deve pagar sua dívida à sociedade. De toda maneira, sou contrário a qualquer lei que ataque a livre expressão de ideias e opiniões, por mais ofensivas que estas sejam, pela mesma razão que sou a favor de que qualquer partido tenha o direito de mostrar a cara e não se esconder em partidos de fachada.

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Violência

Você achou justa a ação do Hamas em 7 de outubro?

Essa é uma das perguntas mais prevalentes nos últimos tempos, mas serve como régua moral para classificar aqueles que se posicionam sobre o drama da Palestina. Em primeiro lugar, nada é “justificável” numa guerra, mas tudo que nas guerras ocorre precisa ser colocado em contexto. Não podemos nos perder em armadilhas lógicas. Os mais de 75 anos de massacres não poderiam ser interrompidos com abaixo-assinados ou ações nos tribunais, até porque Israel sempre desprezou as decisões da ONU. Além disso, é preciso reconhecer que se não fosse pela violência não haveria sequer a revolução francesa burguesa de 1789, que acabou com quase todas as monarquias europeias; sem a tomada violenta dos revolucionários Franceses e hoje seriam ainda súditos do Rei, e a democracia apenas um sonho e uma utopia. Culpar a violência reativa do Hamas e nada dizer sobre o holocausto palestino continuado é a narrativa racista e supremacista do sionismo.

Sim, acho que o combatentes reunidos da resistência palestina agiram de forma justa, mesmo que eu seja um proponente da paz. Achar que o Hamas é um grupo terrorista – como faz a imprensa burguesa – é jogar o jogo do imperialismo. O Hamas lutou com as armas que eram possíveis. Aliás, a sua ação no 7 de outubro será descrita no futuro como uma das maiores ações de guerra da história moderna. Esta ação, apesar das vítimas produzidas pelo exército fajuto de Israel, era o único caminho possível para a paz, pois a libertação de um povo subjugado há mais de 70 anos jamais se faria com tapinhas nas costas. O próprio Nakba – a expulsão forçada de 750 mil palestinos de suas casas – só aconteceu através de ações de terrorismo e de massacres por parte do nascente estado de Israel, as quais se mantém até hoje. Assim sendo, a resposta Palestina só poderia ser violenta, até porque todas as tentativas pacíficas falharam escandalosamente. Todos os acordos tentados com os sionistas foram descumpridos por Israel, porque jamais houve qualquer interesse na paz ou na criação de dois estados independentes e soberanos. Criticar a reação palestina às sete décadas de assassinatos, abusos, torturas, prisões arbitrárias, limpeza étnica e estupros é aceitar a narrativa do Império e o discurso vitimista do sionismo. O Hamas apenas agiu de acordo com as regras de violência que os próprios sionistas estabeleceram ao roubar as terras palestinas.

Para manter a ocupação de Israel e a brutalidade desumana como sempre foi praticada foi necessário controlar a opinião mundial através do uso da imprensa burguesa. Essa é a razão pela qual os massacres do Nakba só há pouco foram descobertos pelas pessoas do mundo inteiro. Hoje em dia, com a proliferação de smartphones, ficou impossível esconder a realidade do genocídio que está sendo cometido contra as populações oprimidas. Por esta razão, desde o princípio dos massacres Israel procura atingir a imprensa. Eles sabem que é preciso impedir a realidade chegar à todos no planeta. Quando o mundo inteiro puder saber a verdade, o racismo e a essência pútrida do sionismo supremacista acabarão imediatamente. Exterminar o modelo opressor de Israel é uma tarefa de todo o cidadão do mundo. A Palestina somos todos nós. Ao mesmo tempo em que os jornalistas são alvos preferenciais dos genocidas sionistas, canalhas mequetrefes de Hollywood se empenharam para impedir que a jovem e premiada jornalista palestina Bisan Owda concorresse ao Emmy, entre elas Selma Blair e Debra Messing, duas conhecidas sionistas que apoiam o massacre de crianças e a morte indiscriminada de palestinos. Felizmente para a parte saudável do planeta, esses monstros não conseguiram levar adiante seu projeto de silenciamento e It’s Bisan from Gaza and I’m Still Alive, – Aqui é Bisan de Gaza, e ainda estou viva – venceu o Emmy como melhor documentário.

Portanto, essa crítica ao “terrorismo” do Hamas – como se o Estado de Israel não fosse uma entidade ilegal e terrorista por excelência – é tosca e historicamente injusta, além de ser mentirosa, mas apenas sobreviveu por tantos anos porque existe um controle imenso sobre a imprensa internacional. Os mesmos jornais que acusam a Rússia de ser “anti-LGBT”, ter invadido a Ucrânia sem razão, ou que chamam Maduro e Xi Jinping de “ditadores” acusam os guerreiros que lutam pela liberdade da palestina de terroristas, sem mencionar o terror de Estado que é praticado pela potência de ocupação há mais de 7 décadas. Esqueceram de noticiar o que agora é conhecimento oficial: a maior parte das mortes no ataque de 7 de outubro 2023 foram causadas pelos helicópteros israelenses, usando a “Diretiva Aníbal”. E as mortes causadas pelo Hamas – que por certo ocorreram – foram atos de resistência à uma opressão obscena e continuada, violenta e indigna. Agiram a exemplo dos “freedom fighters” da Argélia, da Resistência Francesa, dos Vietcongs, dos russos em Leningrado e dos coreanos na ocupação japonesa e americana. Em verdade, “Terrorismo” é a forma como os opressores chamam aqueles que resistem aos seus abusos, mas eles são os guerreiros da liberdade do seu povo, e usam as ferramentas possíveis para empreender esta luta.

Aqueles que falam das “vidas inocentes” que foram perdidas na ação de resistência do Hamas respondam estas perguntas simples: digam até que ponto aguentariam o abuso dos colonos israelenses, grupos formados pela escumalha da Europa e da América. Depois que seus pais fossem torturados, seus irmãos fossem mortos, sua irmã abusada e seu filho preso, vocês continuariam a pedir “licença” aos invasores? Continuariam a apostar no “amor”? Tentariam, pela milésima vez, uma alternativa pacífica? Ou usariam armas semelhantes àquelas usadas por quem lhes massacra para, pelo menos, manter o que lhes resta de dignidade e para salvar a vida da sua família? Respondam com honestidade: qual seria o limite? Até quando suportariam? Não é aceitável que tenhamos uma postura ingênua sobre as forças materiais e econômicas que produzem os conflitos. Num contexto de agressões e abusos continuados apenas a reação violenta seria capaz de salvar a Palestina. Quem acredita em “legitima defesa” do sujeito precisa aceitar a “legítima defesa do povos”, até porque a própria ONU reconhece o direito de resistência violenta e armada dos povos ocupados!!! A liberdade é uma conquista dos homens, e para isso devem usar as armas que estiverem ao seu alcance.

Hamas e Palestina, neste momento, são a mesma coisa. O Hamas representa o maior, mais armado e mais capacitado grupo de defesa da Palestina. Portanto, defender a Palestina significa dar apoio irrestrito ao Hamas que, pela sua história e pelas próprias eleições realizadas em Gaza, é o legitimo representante das aspirações de liberdade do povo palestino. Qualquer um que tente deslegitimar o Hamas, acusando-os de “oprimir” o povo palestino, estará mentindo.

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Enfim , a barbárie

Em Israel os políticos de vários partidos e uma parte imensa da população debatem abertamente se a tortura e os abusos de prisioneiros políticos da Palestina devem ser legitimados e aceitos como práticas legítimas e até justas pelo sistema penitenciário. Os jornais e alguns ativistas tratam os torturadores como heróis, que não poderiam ser atingidos pela justiça. A desumanização dos palestinos chega a um nível em que suas vidas valem menos do que a dos bichos de estimação dos racistas e supremacistas do país. Se a simples existência desse debate já não é a demonstração cabal da total degenerescência de uma nação, então teremos que criar uma nova definição para a perversidade humana. Estamos à beira de um colapso ético no planeta, e se nada for feito pelas nações do mundo para barrar o terrorismo de Israel e os gravíssimos crimes contra a humanidade cometidos pelos israelenses, seremos todos cúmplices da barbárie lá instalada. Eu exijo do governo brasileiro a imediata ruptura de toda e qualquer conexão com Israel, tanto diplomática, comercial, acadêmica ou cultural. Se isso não for feito – em nome de uma fidelidade aos interesses americanos – então o governo brasileiro estará assinando um atestado de parceria com os crimes de lesa humanidade cometidos pelos fascistas sionistas.

Apenas imaginem se as torturas nas prisões de Ketziof, Nafha e Ramon estivessem ocorrendo na Coreia do Norte, em Cuba ou na Rússia de Putin. Como a mídia ocidental estaria descrevendo os horrores dos prisioneiros torturados? Ora, bem sabemos como seria. No Iraque, na prisão de Abu Ghraib, as torturas contra os prisioneiros capturados pelo exército eram sistemáticas e, pelas fotos vazadas à imprensa, pudemos ver que eram fonte de diversão para os soldados americanos. O mesmo aconteceu no Vietnã e antes na Coreia, mas por certo que foram frequentes em todos os lugares invadidos pelo imperialismo nos últimos 100 anos. Entretanto, a imprensa só se manifestou de forma tímida, e apenas depois do vazamentos de imagens das masmorras destes lugares; não fosse por isso e ainda não saberíamos o inferno que os soldados imperialistas produziram por lá. A brutalidade nas prisões israelenses apenas reflete o padrão de desumanização produzida pelo Império, da qual conhecemos apenas a ponta do Iceberg pois, como bem sabemos, a história sempre é contada pelos vitoriosos.

É preciso criar um muro de proteção da civilização contra a barbárie, e ele precisa usar as armas possíveis: Boicote a todos os bens e serviços que venham de países como Israel, onde a tortura é celebrada pela população nas ruas. Desinvestimento de qualquer negócio que inclua parceiros com Israel e, por último e talvez mais importante, aplicação de sanções comerciais para estrangular o nazisionismo de forma a impedir que a selvageria racista venha a se expandir, contaminando todas as nações do mundo com o discurso extremista e segregacionista. Não há espaço mais para negociações; com torturadores e fascistas a conversa é outra. É preciso ser firme no combate à obscenidade que se estabeleceu na Palestina pelos invasores, se é que ainda sonhamos com a paz.

Veja mais aqui.

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A obrigação moral de resistir

Não fiquem bravos comigo: a libertação da Palestina é o grande clamor civilizatório da nossa época. Não há como me calar diante da necessidade de apoiar a grande luta libertária do século XXI.

Não me perguntem se eu aceito os ataques do Hamas às bases militares sionistas situadas ao lado de Gaza. Sim…. eu aceito as bombas, os foguetes, os ataques e as emboscadas, sim. Por mais que sejam inaceitáveis e injustificáveis a violência e a brutalidade, há que aceitar a motivação de tais ações heroicas. Entendo perfeitamente que aos palestinos, depois de sete décadas de massacres e humilhações, só restava a possibilidade do ataque militar aos fascistas de Israel. Acreditar que depois de 75 anos de massacres haveria consideração e interesse de debater a questão palestina por parte dos invasores é uma ingenuidade que os palestinos não se permitirão nunca mais.

Ou por acaso a liberdade dos povos se consegue com abaixo-assinados? Por acaso o fim da monarquia na França e a ascensão da burguesia ao poder na Revolução Francesa se deu por uma petição no Avaz? Os americanos venceram os ingleses e conquistaram sua independência através do diálogo? A liberdade da Argélia do jugo horrendo da França se deu numa mesa de bar? E o que houve com todas as colônias em África que se libertaram do colonialismo? Por acaso sua liberdade ocorreu numa sala acarpetada na ONU?

Seria justo pedir moderação a quem sofre a barbárie racista e colonial há décadas? A estratégia do consenso e da diplomacia funcionaria agora, depois de jamais ter produzido resultados? O que houve com Camp David? Qual o resultado dos acordos de Oslo? E por que exigimos diálogo por parte dos Palestinos, mas jamais exigimos isso dos brancos europeus invasores sionistas? Por que os passos para a paz são exigidos apenas de quem é oprimido, mas não da parte opressora? Porque nós (as vitimas do imperialismo) somos pressionados a dialogar, esperar, aceitar, suportar e nos resignarmos, enquanto aos invasores é oferecido tudo: aviões, armas, foguetes, canhões, tanques, o controle da narrativa e ainda por cima uma máquina gigantesca e mortífera de propaganda?

Se a guerra é necessária que seja aceita, lutada e vencida. Chega de abuso, chega de racismo e apartheid. Chega de opressão e morte. Os povos de todo o planeta exigem: Palestina livre!!!

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Paixão pela mudança

Se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor, como já dizia Paulo Freire. Se a gente não combate o abuso em si, mais cedo ou mais tarde todos iremos exigir nosso quinhão de opressão no mercado da violência. Se a luta contra o arbítrio só nos inflama quando toca nossos interesses – ou nossas feridas – então não é paixão pela mudança, é apenas oportunismo.

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Sobre Sombras e Nódoas

Num dia um assassinato estúpido na frente da família numa festa de aniversário. No outro, um caso de abuso sexual por parte de um médico. Ambos, inquestionavelmente, produzidos por cidadãos de bem. Em comum nos dois casos a simpatia pelo presidente que se dizia a favor da tortura e que tinha como livro de cabeceira a biografia de um monstruoso torturador.

No caso da morte em Foz do Iguaçu é difícil dizer algo sobre a estupidez em forma bruta, que ceifou a vida de um pai de família cujo crime foi homenagear seu candidato na festa de aniversário. Muito ainda vai se falar sobre esse assassinato brutal, motivado por intolerância criminosa, e incentivado pelo próprio mandatário principal da nação. Entretanto, eu gostaria de me debruçar sobre o caso de abuso sexual ocorrido em uma maternidade do Rio de Janeiro. Por ter trabalhado em maternidades por mais de três décadas da minha vida eu lamento profundamente pelas pacientes atingidas por estes crimes, mas também penso mais além, nas repercussões que essa ação produzirá sobre toda a profissão médica – que depende de forma muito intensa da confiança que os pacientes depositam nos profissionais.

Como confiar nos médicos agora, se por trás de um sorriso ou um simples exame físico pairar o espectro da desconfiança? Como deixar as pacientes seguras de que por trás de pedidos e avaliações simples não se escondem intenções malévolas? Toda a ação médica se baseia no processo transferencial, a confiança em um suposto saber do profissional sobre o nosso corpo, nossa doença, nosso organismo e as razões pelas quais adoecemos e como podemos nos curar. Nesse processo ocorre uma entrega: oferecemos ao médico nossa intimidade mais profunda: nossas histórias, sentimentos, emoções, medos fragilidades e o nosso corpo.

O respeito por parte dos profissionais a esta oferta que vem dos pacientes é a pedra angular sobre a qual se constrói o vínculo, sem o qual nenhuma cura profunda é possível. Como diria o psicanalista húngaro Michael Balint, “o melhor remédio que um médico pode oferecer ao seu paciente é ele mesmo”. pois curador é o mais significativo remédio que se pode oferecer. Quando essa confiança se quebra, as conquistas para a saúde são apenas superficiais, incapazes de atingir o processo profundo de cura – que depende de uma modificação das rotas patológicas do sujeito.

Demonstrações públicas de desrespeito a esses limites, maculando a sacralidade desse encontro, tem efeitos devastadores. Garotos recém formados, com as calças arriadas e fazendo gestos que imitam vaginas, demonstram a falta de seriedade com que estes jovens profissionais encaram o compromisso com a profissão que têm pela frente. É preciso encarar esse problema com a gravidade que demanda. O ensino excessivamente técnico da medicina, a falta de embasamento humanístico, a objetualização dos corpos, o afastamento afetivo dos clientes e o distanciamento emocional com sua dor são subprodutos de uma medicina desvinculada da alma, a porção do sujeito que nos transforma de amontoados de células, nervos, ossos e matéria… em seres humanos.

Portanto, é essencial que o ensino médico seja, desde o princípio, carregado de conteúdo das ciências humanas, como psicologia, sociologia, antropologia, psicanálise e filosofia. Sem essa base sobre os sentidos fundamentais da “arte de curar”, e o constante reforço destes pontos durante toda a carreira médica, não formaremos nada mais do torneiros mecânicos de luxo, que tudo sabem sobre as partes danificadas e nada sobre o conjunto curioso de elementos que nos torna gente.

Os fatos que se somam nos mostram uma lenta e insidiosa degenerescência da arte de tratar os sujeitos nas sociedades contemporâneas. As ações da corporação médica, que aderiu em massa ao discurso bolsonarista e ao ideário da extrema direita, produzem um divórcio desta parcela da sociedade com seus propósitos mais profundos. É impossível pensar na saúde de um povo sem questionar as razões estruturais que nos fazem adoecer. É inconcebível que os médicos da atualidade virem as costas às necessidades essenciais da população e se coloquem ao lado da classe burguesa, tratando a grande massa da população como estorvo. Fatos escandalosos como estes são muito tristes, e afetam a todos nós.

Todavia, há que se entender que esses fatos não se expressam num vácuo conceitual. Existe uma sombra gigantesca que paira sobre o país, e que nos mostra a necessidade de depurar essa doença que nos consome. Para buscar esta cura faz-se necessário extirpar a nódoa que corrói o coração do Brasil.

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As dores silenciosas e as tragédias mudas

Eu passei 40 anos escutando a perspectiva feminina do mundo, com suas dores, dramas, tragédias, gozos e prazeres. Sempre me senti ao lado delas, tentando entender o mundo pela sua perspectiva, olhando as cores da vida com seus olhos Houve um tempo em que eu até me vi e me entendi como feminista; afinal, por que não seria, já que acredito nos valores da equidade de gêneros e na grandiosidade do ser feminino?

Vários fatores me fizeram abandonar esta ilusão. Sim, ilusão porque por mais que eu pudesse me considerar assim, as mulheres jamais aceitaram minha condição; no máximo me trataram de forma derrogatória, com o termo “feministo“, depreciativo e desvirilizante, para depois me tratar como “esquerdomacho” diante do primeiro – mesmo que sutil – deslize. Com o tempo desisti de conformar meu pensamento ao que elas esperavam de mim. Hoje eu digo que o feminismo é “um movimento de mulheres para mulheres”. Mas, repito a pergunta do vídeo: se tal movimento pretende mudar a sociedade como um todo, por que escutamos apenas um lado?

Um fator que me fez abandonar qualquer proximidade com o feminismo identitário foi o caso que já foi até exposto aqui: o caso da garota Mariana, que teria sido vítima de um estupro num clube em Santa Catarina. Durante meses vi a campanha das feministas colocando o rosto do jovem acusado (que, de tanta exposição, eu lembro do nome: André) como o abusador, mesmo antes de finalizado o processo. Fotos nas redes sociais, manifestações, passeatas. Aqui em Porto Alegre houve uma, no parque Farroupilha.

Depois de meses de agressões infinitas nas redes sociais veio o veredito: inocente. E a sentença foi ratificada pela segunda instância, por unanimidade. O caso tomou notoriedade pela forma bruta e grosseira como a “vítima” teria sido tratada pelo advogado de defesa de André, e isso fez com que tanto juiz quanto advogado fossem chamados à atenção pelos órgãos correcionais. Em verdade tratava-se da exaltação de profunda indignação contra uma menina que de todas as formas tentou destruir a vida desse rapaz.

A verdade é que este caso está repleto de provas que absolvem o garoto. Desde o circuito interno de TV no clube e na rua, até suas conversas de Whatsapp, o depoimento das suas próprias amigas, do motorista do Uber e do porteiro do prédio. Os exames toxicológicos negativos, o desaparecimento do vestido, a tentativa de incriminar o filho de um milionário da Rede Globo, etc. Tudo apontando para uma relação consensual, passageira e seguida de culpa e arrependimento por parte da moça.

Não vou debater suas motivações e suas falhas morais por que não quero me ocupar dela, mas da disparidade desse caso. Não me interesso pela figura dela e seu erro, mas pela pessoa esquecida: a real vítima, o rapaz que teve a vida destruída por uma acusação falsa.

Não há dúvida alguma de que o estupro é um crime horroroso que merece punição. Por certo que ainda existem milhares ocorrendo de forma vergonhosa, sem que as mulheres possam se defender. Todavia, a existência dessa chaga social não pode justificar o linchamento covarde de um sujeito em nome de um problema que é cultural. Não se pode prender um russo com falsas acusações apenas porque a Rússia está em guerra e não gostamos deles. Não se pode prender um negro inocente porque outros negros cometeram crimes e não se pode desgraçar um jovem rapaz porque outros garotos cometeram esse delito.

De todas as mulheres que eu vi publicando cartazes acusatórios com o nome do rapaz não vi NENHUMA reconhecendo seu erro e se desculpando. Vale a lógica “Ok, esse não era, mas apanhou pelos outros”. Ninguém veio a público – na minha bolha – se desculpar pelo julgamento acusatório e pela falsidade que disseminou. Eu pergunto: e se fosse seu filho, seu pai, seu irmão? Como você se sentiria? Manteria sua fidelidade à revanche feminina ou teria cuidado para não acusar alguém inocente?

Por isso me emocionou o depoimento da cineasta feminista que passou um ano entrevistando jovens do Movimento dos Direitos Masculinos. A virada que esta escuta produziu em sua perspectiva de mundo é emocionante. Quando ela fala das “falsas acusações de estupro e pedofilia” que se tornaram corriqueiras eu lembrei do sofrimento desse rapaz. Todos se emocionam (com justiça) com a dor de uma mulher vítima de abuso sexual, mas por que ninguém diz uma palavra sobre a dor de um garoto que sofreu uma campanha de linchamento gigantesca pelo crime de transar com uma menina em uma festa, com pleno consentimento?

Por que apenas as dores dela deveriam ter voz?

Quem puder, assista esse depoimento. Vale a pena. Eu achei a palestra do TED e os comentários desse Youtuber realmente valiosos.”

Texto de Sergei Ustalov

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Abusos sexistas

Na mesma semana que uma música de Chico Buarque é cancelada por ser pretensamente “machista” uma lojista e “influencer” de São José dos Campos-SP coloca um cartaz proibindo a entrada de homens na frente da sua loja no shopping – porque sua presença seria incômoda para as mulheres. As desculpas para estes atentados à livre expressão e à livre circulação, ao meu ver, são absurdos e indecentes.

Não são apenas os fanáticos religiosos e os anticomunistas as ameaças à democracia, até porque estes nunca ousaram cancelar músicos e proibir a entrada de um gênero em um espaço de uso público. Os identitários e sua perspectiva autoritária, sectária são um risco ainda maior porque suas propostas são travestidas de “boas intenções” e “proteção às minorias”.

Imaginem um bolsonarista impedindo gays, trans ou negros de entrar em seu estabelecimento. Pensem no escândalo que seria. E se fossem judeus? Entretanto, vetar expressões artísticas e proibir circulação de homens dentro de lojas não causa nenhum furor – ou infinitamente menos do que deveria. Quantos abusos mais serão necessários até percebermos que a lei é para proteger a todos, e não apenas os grupos que desejamos beneficiar?

Não há defesa para discriminação e sexismo. O cartaz é discriminatório, inconstitucional e francamente ilegal. Posso entender o que a levou a fazer isso, mas nada justifica esse tipo de discriminação de gênero.

Imaginem se fosse o contrário: “Proibido Mulheres” em um bar, no estádio de futebol, ou na Casa do Estudante – um caso famoso aqui em Porto Alegre nos anos 80. Pior: imagine que um grupo de transexuais tivessem, por mais de uma vez, entrado no estabelecimento fazendo zoeira, bagunça, falando alto ou apenas sendo inconvenientes. Em função destes contratempos a dona, cheia de justificativas, coloca um cartaz à vista de todos: “Proibido entrada de transexuais”.

IMAGINEM O (JUSTO) ESCÂNDALO!!!

Vejam… a situação é grave porque a dona do estabelecimento não se refere aos comportamentos inadequados na loja, tipo espiar, ficar olhando as modelos, censurar namoradas, etc. Não… ela acusa o gênero masculino, todos os homens, sem distinção. Se alguém faz isso com negros, gays, indígenas ou mulheres isso tem um nome: preconceito, e inclusive tal conduta está tipificada no código penal. Por que poderia ser justo impedir que o gênero masculino fosse proibido de entrar em uma loja quando uma ínfima minoria causou problemas?

O argumento do “código de vestimenta” – ou seja, impedir que alguém sem camisa entre na loja – não cabe. Você pode pedir para que um sujeito sem camisa saia da loja, mas não pode aceitar um sujeito ser expulso por ser gay ou negro. E também não poderia expulsar um sujeito (ou impedir sua entrada em áreas publicas) por ser homem.

Se a gente quer banir os preconceitos precisa ser contra todos, sem exceção, e não apenas os preconceitos que nos atingem. Discriminar os homens pelo mau comportamento de alguns poucos não pode ser tolerado.

Sexismo e racismo são iguais em sua expressão danosa e destrutiva.

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Kyle

Outra opinião para ser cancelado…

Liberais americanos disseram que Kyle Rittenhouse, que foi a uma manifestação de rua vestido com um rifle automático, merecia ter sido atacado, pois “estava pedindo”. Disseram eles: “Afinal, quem sai na rua assim está querendo o quê?”

Gente, os liberais!!! Os mesmos que atacam (com justiça) esse mesmo argumento quando se volta contra as mulheres, e que afirmam que esta lógica é torpe. Aqueles que dizem que a forma como você se apresenta não dá direito aos outros de tomarem atitudes ou fazer qualquer julgamentos de caráter.

Coerência gente, coerência…

Kyle Rittenhouse atirou em 3 brancos. Sabiam que um deles levou um saco de merda para atirar nos adversários e que estivera internado em um hospício até poucos dias antes? E que um outro foi armado com uma pistola para a passeata, e só ao apontá-la para Kyle foi atingido? “As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam”, como diziam Tunay e Sérgio Natureza, e por isso é importante ter em mente o risco que é julgar os casos pelas aparência, pela superfície. Quando examinamos o que realmente ocorreu a história se transforma. Se uma pequena horda sair correndo atrás de você gritando “mata”, e logo depois um cara bater na sua cabeça com um skate e lhe jogar no chão e por fim um outro puxar uma pistola contra sua cabeça enquanto você está caído… acreditam que aí se caracteriza legítima defesa? Ele não atirou em ninguém antes de ser agredido, e foi atacado POR SER QUEM ELE ERA!!!

Aliás, os abusadores de meninas dizem: “queriam que eu fizesse o que? Eu apenas reagi. Sou homem.”

A lógica que aqui tento comparar é a de que um sujeito não pode ser atacado pelo que aparenta, e a aparência de alguém não pode ser justificativa para uma agressão. Aliás, a polícia burguesa usa essa mesma lógica para massacrar a população negra diariamente. Sair de casa com capuz, carregar uma furadeira na rua, ter alguma coisa nos bolsos, sair à noite sendo negro, etc… é o que a polícia diz para justificar suas abordagens brutais, que muitas vezes terminam em morte.

Será a culpa dos negros e dos pobres? Seria uma furadeira uma real ameaça (na perspectiva dos policiais)? Uma mulher de roupas curtas e provocantes/sedutoras é algo atraente, mas estas roupas não podem dar direito a que alguém abuse dela. Um sujeito com um rifle é uma provocação, mas não é uma agressão em si. Ninguém pode agredir ou tentar matar um sujeito apenas porque se acha intimidado por quem ele é ou como está vestido, Essa é a analogia.

Aliás, para quem quiser saber, eu acho que uma mulher com roupas sensuais em lugares que podem conter psicopatas é um brutal equívoco, mas isso não dá direito a ninguém de atacá-la. Ir para uma passeata de protesto com uma arma semiautomática é uma profunda estupidez, mas isso não dá aos passantes o direito de tentar matá-lo.

Não é justo usar a condição de alguém – rico, branco, homem, ou com passado comprometedor – como prova de culpa, ao mesmo tempo em que não se pode usar a condição da suposta vítima – mulher, gay, trans, etc – como um escudo para crimes. Para julgar é preciso se ater aos fatos. Caso contrário será puro preconceito.

PS: Kyle Rittenhouse é um garoto mimado, fascista, racista, supremacista racial, idiotizado pela mídia, “gun lover”, admirador de um presidente psicopata, estúpido e um perfeito produto dos tempos atuais. Houvesse uma cultura de armas (e amparo legal) aqui, como a que existe nos Estados Unidos, e teríamos um fac-símile desse modelo. Veríamos muitos garotos bolsonaristas a andar de garrucha pelas ruas, provocando os transeuntes. Se imitamos descaradamente um touro na calçada e uma estátua da liberdade chinelona, porque não copiaríamos garotos justiceiros? Todavia, dos crimes dos quais Kyle Rittenhouse foi acusado, ele é inocente. Não há como aceitar que ele seja culpado pela forma como se apresenta, da mesma forma como nenhuma mulher é culpada por vestir-se de forma atraente ou sedutora. Ao meu ver fez-se justiça.

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Puritanismo no Século XXI

“A jovem puritana”, de David Lipsy

O puritanismo do século XXI, em especial no que diz respeito à sexualidade, é um projeto social absolutamente bizarro. Por trás de uma ideia nobre – a proteção das pessoas contra os abusadores – produziu um sistema social onde a exaltação das virtudes físicas e da atração sexual se tornaram pecaminosas. Ele prejudica mais as mulheres do que os homens, mas sua abrangência e pervasividade na cultura são inacreditáveis. A própria exaltação da beleza feminina e sua inefável sedução passaram a ser vistas como criminosas ou “diminutivas”. O sexo agora é tratado como um contrato asséptico. A beleza passou a ser ofensiva. Qualquer aproximação masculina, pela imantação do desejo, é vista como potencial assédio.

A resposta que me dão é “ahhh, você fala isso porque nunca foi abusado”. Até fui, mas não acho que minha experiência traumática possa servir de regra para o resto do mundo. A cura para a violência sexual jamais será o puritanismo inútil ou a penalização do desejo!! Não se combate o abuso destruindo a paixão e o próprio sexo.

O puritanismo daqueles personagens que dizem defender as mulheres é inacreditável em sua criatividade. E não se trata de um fato isolado; é uma narrativa disseminada que pretende retirar das mulheres qualquer resquício de erotismo, transformando-as em almas impolutas e destituídas de um corpo desejável.

Hoje mesmo minha amiga me dizia que dá graças a Deus ter nascido nos anos 70. Eu, que nasci na aurora dos anos 60, digo o mesmo. Eu me vejo MUITO mais prafrentex e na crista da onda que essa legião de Boko-mokos que perambulam por aí com proibições cafonas. Vejo garotos perdidos e culpados em relação aos seus desejos, martirizados pela atração que sentem pelas meninas, cheios de dedos apontados. Mas vejo igualmente meninas desencontradas, confusas, igualmente culposas, sem saber o que fazer com seus desejos tornados conflituosos.

Falo desse tema porque fui adolescente durante os anos 70 e 80 e fico chocado com a liberdade que tínhamos naquela época, e o quanto disso foi retirado pela onda puritana que assola o mundo. Hoje não é mais permitido “sexualizar o corpo das mulheres” – como se corpos não fossem naturalmente erotizados. Isso é um escândalo. Mulheres não podem mais exercitar sua sexualidade narcísica fora das regras de grupos que tem controle sobre a política dos corpos, e nós homens temos que curtir essa culpa tola por objetualizar seus corpos. O que está acontecendo com o mundo? Por que agora, depois de termos ultrapassado séculos de constrição, a livre expressão do desejo e da própria sexualidade passa a ser pecaminosa de novo?

Mas isso nem é o pior… as vezes imagino o que seria do nosso país se a genialidade de Chico Buarque tivesse esperado algumas décadas a mais para descer à Terra e somente agora resolvesse nascer e ser músico. Chico não poderia cantar NENHUMA de suas canções, pois que todas elas seriam vetadas pela Santa Inquisição da Pureza Virginal.

Felizmente Chico veio antes e escreveu essa pérola, apenas para dizer que essa onda puritana é essencialmente uma agressão à natureza…

“O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza, nem nunca terá
O que não tem conserto, nem nunca terá
O que não tem tamanho

O que será que será
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido”

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