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O Labirinto

Minotauro é uma criatura da mitologia grega que tem o corpo de ser humano, mas a cabeça e o rabo são de touro. Nasceu fruto da relação de Pasífae, esposa de Minos, o rei de Creta, com um touro dado a Minos por Poseidon. O Minotauro é uma criatura que está presente na mitologia grega aprisionado em um labirinto construído por Ícaro e Dédalo (lembram? Aqueles das asas de cera) a mando do rei de Creta. Minotauro era descrito como um ser monstruoso que devorava pessoas vivas. Quando chegou a Creta, Teseu conheceu Ariadne, filha do rei, e a jovem o presenteou com uma espada e um novelo de linha para derrotar o monstro e conseguir escapar. Teseu matou o Minotauro, fugiu do labirinto e salvou seus companheiros.

O parto humano está preso em um labirinto cuja saída, até então, não conseguimos encontrar. Entramos por um caminho sedutor no início do século passado, com a introdução da tecnologia na atenção ao parto. Parecia que a absoluta artificialização do parto permitiria ultrapassarmos os ancestrais medos que acompanham a sociedade desde épocas primevas. Ao contrário do fato inesperado, a previsão de todos os eventos: ao invés da surpresa, o controle dos tempos. Ao invés das mortes e das dores, a vida resplandecente em cada nascimento. Bastaria para isso a absoluta alienação do processo: o parto passaria das mãos das parteiras às mãos dos cirurgiões; ao invés da do ambiente cálido e acolhedor da casa, o frio asséptico e luminescente das salas cirúrgicas. No lugar dos silêncios, os ruídos metálicos, a conversa dos médicos e o choro das mães. Também trocaríamos as bactérias maternas pelos micro-organismos hospitalares, as antissepsias, as roupas esterilizadas e os necessários antibióticos. Quem ousaria não se contaminar pelo entusiasmo da ciência vencendo a natureza, até então, indomável?

Como toda solução mágica, depois do seu esplendor é possível avaliar suas contradições. A alienação das mulheres cobra hoje um preço muito alto. A troca das especialistas, parteiras altamente capacitadas forjadas nos milênios de vigilância do parto, por cirurgiões, teve como resultado o afastamento da arte ancestral da parteria de sua prática cotidiana. Ao mesmo tempo, a epidemia de intervenções se tornou a norma: internações, drogas, isolamento, partos instrumentais, extrações cirúrgicas, infecções, desmame, banhos de luz, afastamento e solidão foram os resultados. Com o tempo fomos percebendo que até a segurança apregoada não era verdadeira: as modalidades cirúrgicas são muito mais arriscadas para mães e bebês do que a vivência puramente fisiológica do parto.

O caminho tecnocrático nos levou a um beco. Mães hoje percebem o quanto lhes foi subtraído com a adesão a um modelo alienante que lhes retirava o controle e a autonomia sobre o próprio corpo e as afastava da vivência plena do processo. Mães e bebês, a díade mais sagrada da história humana, se afastavam mutuamente, e o vazio que se produzia era preenchido com mais tecnologia, mais intervenção. Enquanto isso, a morbidade aumentada relacionada ao abuso das intervenções não podia mais ser escondida. A crise se estabeleceu e a insatisfação surgida entre as mulheres no final do século passado hoje está na voz de toda a gestante esclarecida.

Perdemos o fio, e o Minotauro ainda nos espreita. Nesse cenário, somente Ariadne pode nos conduzir. Ela, que conhece os meandros e os desafios do labirinto, precisa nos oferecer o seu novelo de ciência, conhecimento e sabedoria, para ser nosso guia na busca pela saída. Ela sabe que sem o protagonismo garantido à mulher, sem a visão transdisciplinar no nascimento e sem o embasamento na ciência, estaremos perdidos no labirinto do parto humano, acreditando em soluções ilusórias e em promessas vazias.

PS: Escrevi esse texto a partir do convite de Jan Tritten para participar da “Midwifery Conference”, uma conferência sobre parto e a preservação da arte ancestral da parteria, de 25 a 29 de setembro, na ilha de Creta, na Grécia. Provável participação especial do Minotauro, Ariadne e Teseu. Obrigado, Jan.

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Minotaur is a creature from Greek mythology that has the body of a human being, but the head and tail from a bull. It was born out of the relationship of Pasiphae, wife of Minos, the king of Crete, with a bull given to Minos by Poseidon. The Minotaur is a creature that is present in Greek mythology that was imprisoned in a labyrinth built by Icarus and Daedalus (remember? those of the wax wings) at the behest of the king of Crete. Minotaur was described as a monstrous being who devoured living people. When he arrived in Crete, Theseus met Ariadne, the king’s daughter, and she presented him with a sword and a ball of thread to defeat the monster and escape. Theseus killed the Minotaur, fled the labyrinth, and saved his companions.

Human childbirth is stuck in a maze whose exit, until then, we have not been able to find. We entered a seductive path at the beginning of the last century, with the introduction of technology in childbirth care. It seemed that the absolute artificialization of childbirth would allow us to overcome the ancestral fears that have accompanied our species since early times. Contrary to the unexpected fact, the prediction of all events; instead of surprise, the control of the times. Instead of death and pain, life resplendent at every birth. The absolute alienation of the process would suffice for this: childbirth would pass from the hands of midwives to the hands of surgeons; instead of the warm and welcoming environment of the house, the aseptic and luminescent cold of the operating rooms. Instead of silences, metallic noises, the talk of doctors and the cry of mothers. We would also exchange maternal bacteria for hospital microorganisms, antisepsis, sterilized clothing, and the necessary antibiotics. Who would dare not be contaminated by the enthusiasm of science overcoming nature, hitherto indomitable?

Like any magic solution, after its splendor it is possible to evaluate its contradictions. The alienation of women today takes a very high price. The exchange of specialists, highly trained midwives forged in the millennia of childbirth surveillance, by surgeons, resulted in the removal of the ancestral art of midwifery from their daily practice. The epidemic of interventions became the norm: hospitalizations, drugs, isolation, instrumental deliveries, surgical extractions, infections, weaning, light baths, withdrawal and loneliness were the results. Over time we realized that even the security touted was not true: surgical modalities are much riskier for mothers and babies than the purely physiological experience of childbirth.

The technocratic path has led us to a dead end. Mothers today realize how much was subtracted from them by adhering to an alienating model that removed their control and autonomy over their own body and kept them away from the full experience of the process. Mothers and babies, the holiest dyad in human history, drifted apart from each other, and the void that was produced by this distance was filled with more technology, more intervention. Meanwhile, the increased morbidity related to the abuse of interventions could no longer be hidden. The crisis has settled and the dissatisfaction that emerged among women at the end of the last century today is in the voice of every enlightened pregnant woman.

We’ve lost the thread, and the Minotaur is still stalking us. In this scenario, only Ariadne can lead us. She, who knows the intricacies and challenges of the labyrinth, needs to offer us her novel of science, knowledge and wisdom, to be our guide in the search for the way out. She knows that without the guaranteed agency of women, without the transdisciplinary vision of birth and without the foundation in science, we will be lost in the labyrinth of human childbirth, believing in illusory solutions and empty promises.

PS: I wrote this text after the invitation of Jan Tritten to participate in the “Midwifery Conference”, a conference on childbirth and the preservation of the ancestral art of the parteria, from September 25 to 29, on the island of Crete, Greece. Probably special participation of the Minotaur, Ariadne and Theseus. Thanks, Jan.

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Vozes

É possível falar de humanização do nascimento sem ser político? Seria a humanização da atenção ao parto um tema técnico, científico, positivo, que nada tem a ver com as questões sociais ou com temas mais abrangentes como direitos humanos, reprodução e sexualidade e mesmo o direito à vivência sexual plena?

Lembro de um encontro traumático com um membro do Conselho de Medicina quando este, do alto de sua imperial arrogância, disparou: “Não existe ideologia em Medicina, apenas boa ou má prática médica“. Ou seja: para este conselheiro, a medicina é uma expressão positiva da atividade humana; aplicá-la pressupõe que a verdade precisa ser comprovada a partir de técnicas científicas válidas. Além disso, traz a ideia de ciência cumulativa, ou seja, transcultural, atingindo toda a humanidade, inobstante qual cultura surgiu ou se desenvolveu. Parte da ideia de corpos sem alma, sem história, sem subjetividade, onde um muro se ergue entre os aspectos físicos e as questões anímicas. Por certo, o que este profissional pretende se contrapõe a experiência cotidiana de milhões de médicos que se deparam com as características subjetivas de cada sujeito que os procura. Além disso, é evidente que na manifestação de doenças concorrem aspectos emocionais, psicológicos, afetivos e sociais. Desta forma, na análise das doenças como manifestações de transtornos sociais, a política é uma das ferramentas mais importantes para compreender e tratar o adoecimento.

Partindo deste pressuposto – a influência da cultura e da política na saúde e na doença – eu não acredito ser possível defender a humanização do nascimento sem assumir uma posição ideológica, o que não significa necessariamente adotar uma posição partidária. Mais ainda: eu considero o abandono do debate político um dos grandes erros cometidos pelo movimento da humanização do nascimento nos últimos 25 anos. Sem o saber, adotamos uma posição claramente revisionista, almejando uma ilusória “conciliação de classes” com os detentores do poder, sem nos darmos conta de que, assim como em qualquer luta social, aqueles que tem nas mãos o poder jamais o entregam de forma pacífica. Além disso, a revolução do parto só vai acontecer quando abandonarmos as ilusões juvenis e assumirmos a necessidade de um enfrentamento firme. Sem entendermos que o “direito de parir direito” é uma luta social e que “revolução” significa câmbio de poder, não vamos atingir os fins últimos a que nos propomos.

O mesmo descaso que observo como regra para as vozes femininas na política também observei durante décadas no silêncio das mesmas vozes no que diz respeito ao parto. Portanto, não se trata de silenciar uma mulher em especial, mas reconhecer o temor inconfesso da sociedade patriarcal em escutar vozes dissonantes que possam questionar os “poderes naturais”. Quem teria mais autoridade para questionar como as mulheres são tratadas em seus partos do que elas próprias? Quando gestantes são desprezadas e diminuídas, eu escuto o eco silencioso de centenas de vozes suprimidas, brotando do peito de mulheres assustadas com seus partos, caladas e impedidas de decidir sobre seus corpos. E aqui não ser trata de questionar a fala de Janja sobre o TikTok – sobre a qual discordo – mas de analisar a repercussão violenta contra essa personagem.

Ou seja: os ataques às mulheres que alcançaram, de alguma forma, o poder nada mais são do que reflexos de uma cultura que ainda receia escutar o que elas têm a dizer. Muito do sofrimento que escutamos das mulheres mais velhas está relacionado às palavras não ditas em sua juventude, guardadas no peito, trancafiadas em silêncios dorosos que se transformam em sintomas e lágrimas. Permitir que as energias do parto tenham vazão é cuidar da saúde de todos, tanto quando reconhecer o direito às mulheres de expressarem suas ideias e sentimentos.

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O Parto Sitiado

É para mim uma realidade inconteste que a obstetrícia está sofrendo um cerco; a prática de atenção ao parto está sitiada, enclausurada e amordaçada, e as consequências para a sociedade podem ser trágicas. De um lado, os profissionais sofrem a pressão da sociedade, intoxicada pela mídia que coloca a cesariana como um “avanço civilizatório”, tratada como uma forma superior de atenção às mulheres, um direito garantido às “consumidoras”, uma prática limpa, higiênica, moderna, tecnológica e segura. Sabemos o quanto isso é falso, mas também temos noção da dificuldade de resistir ao paradigma hegemônico. Como consequência, se percebe na atualidade que a demanda pelos partos sem “sacrifício” (sacro ofício, trabalho sagrado) é uma realidade social e jurídica, que obriga médicos a adaptarem suas condutas às demandas do cliente, e não mais às bases científicas que normatizam o proceder e a conduta médica.

Além disso, obstetras são perseguidos de forma cruel e inexorável quando resultados negativos ocorrem, inobstante sua culpa, bastando para isso que não sigam o catecismo da sua corporação – mesmo quando estas regras se afastam claramente dos pilares de respeito à integridade física de mães e bebês. Outro problema urgente surgido pela enxurrada de cesarianas realizadas a pedido, é que esta situação torna inviável a ação ética de obstetras que levam a sério a ideia de não causar dano aos seus clientes. Mais ainda, está cada vez mais claro que não existem recursos – materiais e humanos – para dar conta de tantas cirurgias e suas consequências, em especial aquelas que ocorrem no sistema público de saúde. Portanto, se trata de um drama ético, jurídico e econômico. Por certo que esta tendência alienante da obstetrícia contemporânea agrada aos poderes corporativos e institucionais – médicos, hospitais, indústria farmacêutica, indústria de equipamentos, etc – mas não é o mais seguro para os pacientes que atravessam o desafio do parto e do nascimento.

Alguns dirão que esta situação ocorre pela liberdade de escolha das mulheres, e qualquer cerceamento desta seria um retrocesso. Sempre foi minha visão de que é necessário respeitar aquilo decidido pelos sujeitos, mesmo quando sabemos que se tratam de escolhas ruins. Todavia, numa sociedade de controle massivo pela propaganda, esta escolha das mulheres não pode ser julgada como “livre e consciente”; elas sofrem um bombardeio brutal e cotidiano dos meios de comunicação, os quais moldam seu pensar e constroem seus valores. Portanto, a escolha pela alienação no parto não é livre; é fruto de uma construção social que criminaliza a vivência fisiológica e protagonista do nascimento.

Cabe à sociedade, e em especial às mulheres, a mudança desse cenário. “O parto humano será o que fizermos dele” e, portanto, é nossa responsabilidade construirmos alternativas ao modelo tecnocrático do nascimento. Ele não surgirá por decreto ou por dádiva, mas pelo debate, pela escuta do contraditório, pela elaboração de propostas e acima de tudo por meio da luta incessante por sua implementação.

E que assim seja…

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Macartismo obstétrico

Estamos diante de um dilema crucial para o futuro da assistência ao parto neste país. A sinalização recente aponta para a criminalização do parto normal e a percepção da humanização do nascimento como uma “ideologia exótica”, o que se configura um desastre não apenas para os profissionais que procuram respeitar os direitos reprodutivos e sexuais de suas pacientes, mas também uma tragédia para as próprias mulheres, impedidas definitivamente de exercer o protagonismo sobre seus corpos. O objetivo inconfesso por trás das perseguições aos profissionais do parto humanizado é impedir que as mulheres tenham voz e que possam tomar decisões sobre seus partos; a forma de levar essa ideia adiante é penalizar – até encarcerar – os profissionais do parto que aceitam respeitar os desejos e escolhas de suas clientes.

O resultado imediato será um incremento das cesarianas, que já ultrapassaram 60% do total de nascimentos no Brasil, pois os médicos sempre se protegem usando como escudo a ideologia hegemônica. A longo prazo veremos a absoluta artificialização do nascimento, que transformará as mulheres em “contêineres fetais“, alienadas em definitivo de qualquer decisão sobre seus filhos e como eles chegam ao mundo. Percebam que nenhum médico é processado por (ab)usar de cesarianas, inobstante os resultados – até mesmo desfechos fatais; a tecnologia, mesmo quando sem indicação e sem qualquer justificativa, os protege. Nesse contexto de “macartismo obstétrico”, a paciência, o respeito aos tempos e às subjetividades e a vinculação com as evidências científicas são defeitos, não virtudes. Agir conforme as determinações da OMS e mesmo do Ministério da Saúde do Brasil não é algo a ser elogiado; é uma atitude que coloca médicos em risco.

Para evitar perder sua profissão, ser processado, perder seu patrimônio e até ser preso, o profissional deverá ser incoercível e violento e deverá agir com a mão pesada, sem levar em conta qualquer questão subjetiva. Deverá objetualizar ao extremo suas pacientes, enxergá-la como uma ameaça, e se esconder atrás de práticas ultrapassadas, violentas e perigosas, mas que garantem a satisfação das corporações e das instituições que lucram com a alienação das mulheres e o controle absoluto sobre seus corpos. A lógica é a mesma da polícia: quem reclamar da violência aplicada contra o cidadão é “a favor de bandidos”; quem questionar a violência obstétrica e os abusos das cesarianas está “contra a tecnologia” e estimulando mortes evitáveis. Por trás desses discurso, a “carta-branca” para que médicos e policiais atuem da forma que mais lhes beneficia; a moeda circulante é o medo.

Não se trata apenas de restaurar a justiça, de analisar os fatos, de aceitar os limites da medicina, mas também de compreender que esta injustiça contra os médicos e parteiras que abraçam as propostas da humanização levará a um aumento considerável da morbidade e mortalidade maternas, além de consequências terríveis para os bebês nascidos sob o controle da tecnocracia sem limites. O ataque ao parto normal cobrará um preço alto em vidas humanas.

Este debate não se encerra no julgamento dos profissionais, na sua prisão ou liberdade e na justiça que se fará. O resultado da reação aos avanços da humanização apontará para onde desejamos que se situe o futuro da assistência ao parto. Se apostamos na alienação das mulheres e a penalização da medicina baseada em evidências, o resultado será o pior possível. Julgar médicos que defendem o parto normal e as escolhas informadas de seus pacientes como criminosos que agem dolosamente é uma aberração jurídica inédita, cujas consequências serão sentidas por toda a sociedade.

A escolha precisa ser feita. Que parto desejamos para nossos netos?

Crucial choice

We are facing a crucial dilemma for the future of childbirth care in this country. Recent signs point to the criminalization of natural childbirth and the perception of humanization of childbirth as an “exotic ideology”, and that is a disaster not only for professionals who seek to respect the reproductive and sexual rights of their patients, but also a tragedy for women themselves, who are permanently prevented from exercising agency over their bodies. The unspoken objective behind the persecution of natural childbirth professionals is to prevent women from having a voice and from being able to make decisions about their births; the way to carry this idea forward is to penalize – even imprison – birth professionals who agree to respect their clients’ wishes and choices.

The immediate result will be an increase in Cesarean rates, which have already exceeded 60% of all births in Brazil, as doctors always protect themselves by using hegemonic ideology as a shield. In the long term, we will see the absolute artificialization of birth, which will transform women into “fetal containers”, permanently alienated from any decision about their children and how they come into the world. Note that no doctor is prosecuted for (ab)using c-sections, regardless of the results – even fatal outcomes; technology, even when not indicated and without any justification, protects them. In this context of “obstetric McCarthyism”, patience, respect for time and subjectivity and connection with scientific evidence are defects, not virtues. Acting in accordance with the determinations of the WHO and even the Brazilian Ministry of Health is not something to be praised; it is an attitude that puts doctors at risk.

To avoid losing their profession, being sued, losing their assets and even being arrested, professionals must be uncontrollable and violent and must act with a heavy hand, without taking into account any subjective issues. They must objectify their patients to the extreme, seeing them as a threat, and hide behind outdated, violent and dangerous practices, but which guarantee the satisfaction of corporations and institutions that profit from the alienation of women and absolute control over their bodies. The logic is the same as that of the police: anyone who complains about violence against citizens is “in favor of criminals”; anyone who questions obstetric violence and the abuse of cesarean sections is “against technology” and encouraging preventable deaths. Behind this discourse is the “carte blanche” for doctors and police officers to act in the way that best benefits them; the official language in childbirth is fear.

It is not just about restoring justice, analyzing the facts, and accepting the limits of medicine, but also about understanding that this injustice against doctors and midwives who embrace the proposals of humanization will lead to a considerable increase in maternal morbidity and mortality, as well as terrible consequences for babies born under the control of an unlimited technocracy. The attack on natural childbirth will exact a high price in human lives.

This debate does not end with the trial of professionals, their imprisonment or release, and the justice that will be served. The outcome of the reaction to advances in humanization will indicate where we want the future of childbirth care to be. If we bet on the alienation of women and the penalization of evidence-based medicine, the result will be the worst possible. Judging doctors who defend natural childbirth and the informed choices of their patients as criminals who act intentionally is an unprecedented legal aberration, the consequences of which will be felt by the entire society.

The choice needs to be made. What kind of childbirth do we want for our grandchildren?

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Cesarianas

“Mulheres que fazem cesarianas são muito corajosas. Afinal, são sete as camadas de tecido cortadas. Vocês devem se orgulhar de suas cirurgias”.

Sempre que vejo este tipo de publicação eu fico confuso. Será mais uma peça de exaltação da tecnologia como forma superior de lidar com os desafios do parto? Será o elogio à escolha por uma grande cirurgia, mesmo quando temos milhares de estudos comprovando ser a via natural a melhor e mais segura forma de trazer um bebê à luz?

Não, as cirurgias não são feitas porque as pacientes são corajosas; esta é uma leitura muito errada do que realmente ocorre. Pelo contrário: para alcançarmos taxas obscenas de cesarianas, as mulheres são assustadas, apavoradas e reduzidas aos seus temores mais primitivos até o ponto em que são obrigadas a ceder à pressão do cirurgião. A estrada do abuso de cesarianas é pavimentada com medo e pintada com as tintas do desmerecimento das qualidades inatas de gestar e parir.

Não há como considerar as mulheres levadas à cirurgia como “corajosas”, porque sequer são adequadamente informadas dos múltiplos riscos associados a esta operação. Se tivessem pleno conhecimento dos riscos e ainda assim escolhessem a cirurgia, talvez pudessem ser chamadas de “corajosas”, mas ainda seria necessário acrescentar outro adjetivo: “temerárias”. Mulheres devidamente informadas sobre o que significa privar o bebê de um nascimento natural conhecem os riscos que vão correr e entendem as múltiplas vantagens do parto fisiológico. Estas dificilmente são convencidas a abandonar a via natural de nascimento.

Em várias partes do mundo, e no Brasil em especial, mulheres se submetem a um número abusivo de cesarianas porque, inegavelmente, esta cirurgia traz inúmeros benefícios…. mas para médicos e hospitais, e não para mães e bebês. Nas cesarianas o hospital organiza com mais eficiência os horários dos procedimentos e as enfermeiras controlam melhor o trabalho a ser realizado. Os médicos não perdem seu descanso, nem suas férias, sequer as madrugadas ou fins de semana; muito menos as cesarianas irão atrapalhar seus horários de consultório. Além disso, a cesariana confere aos profissionais blindagem jurídica – não importa quantas cesarianas faça e nem o resultado trágico delas, o cirurgião sempre se protegerá atrás do escudo do “imperativo tecnológico”. A indústria de drogas e equipamentos lucra – e muito – com o excesso de cesarianas; os anestesista e auxiliares cirúrgicos também ganham seu quinhão na “roda da fortuna” das cirurgias sem indicação. A mãe, desempoderada e sem voz, ganha a ilusão de que fez o melhor possível. Afinal, que mais poderia ela fazer, além de alienar seu parto a “quem entende”?

Um dos resultados práticos da aventura intervencionista na assistência ao parto é a crescente incompetência dos obstetras na assistência ao parto. Habilidades de outrora, como as técnicas para atenção ao parto pélvico (bebê sentado), parto gemelar (de gêmeos), partos longos ou distócias de vários tipos estão sendo perdidas. Estas capacidades foram construídas durante milênios de aprimoramento por meio da observação, mas agora estão sendo aniquiladas pelo atalho cirúrgico – sem que existam claros benefícios para o binômio mãebebê. Na verdade, a assistência ao parto no contexto ocidental mais se assemelha a um teatro onde o espetáculo coloca em risco os figurantes (mães e bebês) para que os atores principais (equipe de assistência) fiquem seguros; só a saúde dos pacientes caminha na corda bamba.

A solução? Somente uma revolução do parto liderada pelas próprias mulheres e com a ajuda substancial de médicos, enfermeiras obstetras e obstetrizes, e o suporte luxuoso das doulas e da população em geral – homens e mulheres. Enquanto o parto for controlado por cirurgiões, o nascimento humano será um evento cirúrgico, que apenas ocasionalmente será fisiológico. O parto controlado por parteiras profissionais será fisiológico, humanizado, centrado na mulher e suas necessidades, e apenas ocasionalmente será cirúrgico. Esta é a escolha que as sociedades vão precisar fazer. O abuso de cesarianas não é um ato de coragem ou bravura; é tão somente desinformação de um lado e oportunismo do outro. E a solução para este dilema não está na conciliação de poderes, mas na tomada de consciência por parte das mulheres e na ação política de todos os atores sociais relacionados ao nascimento seguro.

(E, vamos lembrar apenas, mais uma vez, que este texto fala de cesarianas sem uma clara indicação, não a sua… que, todos sabemos, foi muito necessária.)

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Que novidade!!

Precisou os desastes em sequência e a nova eleição de Trump para que acadêmicos decidissem surfar no desastre dos movimentos “woke”. Há mais de uma década que a esquerda revolucionária denuncia que essa “esquerda de costumes” dentro da “esquerda liberal” nada mais é do que uma estratégia da direita para a fragmentação da classe operária, impedindo sua organização. Mais do que distintos, a esquerda anticapitalista e os movimentos identitários são opostos, pois partem de perspectivas que se contrapõe; de um lado as identidades e os sujeitos, enquanto do outro a união da sociedade em torno da luta de classes. É razoável pedir que os identitários encontrem a expressão mais fidedigna de sua visão de mundo na direita liberal, pois seu discurso é mais adaptado a esta vertente do pensamento. Para a esquerda raiz, as lutas antirracista, feminista, anti-xenofobia, etc., não podem ocorrer apartadas da luta de classes e o fim da propriedade privada; não existe possibilidade de vitória por qualquer desses grupos oprimidos que possa vicejar dentro do capitalismo e do imperialismo. 

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Antigamente

Se é verdade o adágio de que “o parto é um evento social que ocorre no corpo das mulheres”, teriam as mulheres no passado, recente ou longínquo, experenciado partos mais rápidos e fáceis? Quanto existe de real nas dificuldades do processo de nascimento e quanto há de cultura nestas dores? Se a sociedade inteira conspira para o nascimento, quais são as responsabilidades do campo simbólico – a forma como simbolizados os eventos – na construção do parto como sinônimo de “dificuldade”, “dor” e “sacrifício”? Como seriam os partos no século XVI? Inobstante sabermos que a ciência obstétrica salva vidas – inclusive e principalmente pela cesariana – qual o seu papel na desvalorização crescente do parto normal, da fisiologia feminina e dos mecanismos adaptativos que formataram o parto humano nos últimos milênios?

Estas são perguntas para entender a situação da assistência ao parto no início do seculo XXI. Hoje, a chance de uma mulher brasileira de classe média ter um parto normal no nosso contexto cesarista não passa de 10%. A cesariana triunfa de forma inconteste, em especial nas camadas mais abastadas da sociedade. Essa evidência demostra a distância entre as ideologias e a materialidade da vida. Teoricamente as mulheres ocidentais teriam uma ampla possibilidade de escolha: podem determinar como serão seus partos, desde nascimentos cirúrgicos até partos na segurança das suas casas. Todavia, a realidade se apresenta diferente e ela é condicionada pelo sistema de poderes que controla esses processos. Por isso as cesarianas já ultrapassam 59% dos nascimentos; no Brasil de hoje um parto fisiológico é a opção minoritária e, nas classes mais altas, a exceção.

Existe uma distância entre a liberdade teórica e a liberdade real, da mesma forma como o capitalismo oferece o “céu como limite”, mas sua realidade mostra a estagnação das classes e a dominação dos “de cima”. Para estes as opções são reais, sendo apenas teóricas para quem é “de baixo”. Quando analisamos friamente, é nítido que as mulheres são condenadas às cesarianas pelo modelo obstétrico “iatrocentrico” (centrado na figura do médico) e controlado pelas necessidades dos médicos, e não pelas reais condições e exigências do binômio mãebebê. Mesmo que, aparentemente, exista uma gama enorme de opções para as mulheres, elas são direcionadas subliminarmente àquelas que beneficiam os donos do poder.

A chance de um parto normal aumenta exponencialmente quando ocorre a decisão de ficar em casa, por exemplo, até 7 cm de dilatação; a forma como uma mulher chega ao hospital é o mais valioso elemento para prever o que vai lhe acontecer. Não deveria surpreender a ninguém que esse é o grande segredo: ficar o mais tempo possível longe dos ambientes insípidos e adrenalínicos do hospital. Desta forma cabe a pergunta, que me parece relevante: como seriam os trabalhos de parto sem a cultura da medicalização, que leva inexoravelmente à alienação das mulheres nos temas do parto e a amamentação? Sem uma cultura de parto formatada pelo medo (e a solução deste drama oferecida à tecnocracia), pairando sobre o parto como um abutre agourento, seriam os partos mais livres, mais rápidos, mas tranquilos e “naturais”?

Estas são as questões fundamentais: qual a parcela de responsabilidade da “cultura do medo” sobre o parto para a criação de um modelo alienante e tecnológico? Por que (ou para quem) as sociedades ocidentais criaram a atual narrativa do parto, que o descreve como violento, agressivo, doloroso e indigno da condição humana? Quem se beneficia com essa perspectiva? Quem ganha com a expropriação do parto e a transformação das mulheres em contêineres frágeis e indignos de confiança? As respostas a estas perguntas serão a narrativa para o nascimento humano no século XXI.

PS: No início deste século havia listas de discussão como a “parto nosso” e a “parto humanizado”. Elas foram fundamentais para o debate sobre as transformações que trazíamos como proposta. Eu escrevia um “tijolão” como esse cada dois dias, apresentando minha perspectiva sobre a assistência e os rumos para o nascimento humano. Quase ninguém lia, assim como quase ninguém vai ler o que está escrito nesse “tratado” aí em cima. Sim, em tempos de Facebook “tratado” é qualquer texto acima de dois parágrafos. Mas… a gente escreve por compulsão, não porque alguém porventura vá se interessar.

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Substâncias Mágicas

Estou iniciando o terço final de um processo respiratório agudo. “Grips”, como se diz. Estou saindo da fase “astênica” e entrando na fase “estênica”. A primeira se refere ao quadro inflamatório inicial, com tosse seca, febre, suores, mal estar, inapetência, fraqueza, cansaço, sono etc. Já a segunda se caracteriza como a fase resolutiva: desaparecem a febre e surgem os fenômenos catarrais, com secreção brônquica, febre ausente, reaparecendo lentamente o vigor físico e a fome. Comentei o fato com algumas amigas da Internet que não são da área médica e todas me fizeram as mesmas perguntas, com algumas minúsculas variações:

– Você já foi ao médico? O que está tomando?

Minha resposta para elas foi:

–  Estas doenças de tipo viral tem seu ciclo bem característico. Duram de 5 a 7 dias. Ou seja, usando ou não drogas, tomando água benta, chá de erva doce ou antibiótico, elas irão embora em uma semana. Acho melhor não usar droga nenhuma que interfira no ajuste autonômico do corpo, obedecendo seus ditames. Sono? Durma. Cansaço? Descanse. Sem fome? Não coma. Sede? Beba água, etc. Acredito que as medicações para melhorar sintomas podem ser úteis, mas somente se eles forem insuportáveis. Penso mesmo que os efeitos adversos dessas drogas são importantes demais para serem negligenciados.

A relação entre medicina e drogas é recente e se incrementou muito no início do século passado com o “Flexner Report” de John Rockefeller e a criação da medicina orientada para a Indústria Farmacêutica nascente. Além disso, ir ao médico é sempre um risco; os médicos hoje em dia, em especial nos atendimentos de urgência, prescrevem sob pressão: de um lado a pressão de seus pares e da indústria de remédios, e do outro lado dos próprios pacientes, que exigem que algo seja prescrito, pois depositam nas drogas a solução mágica para os seus males, o que raramente é o caso. Via de regra não conseguem sair da consulta apenas com conselhos e orientações: é preciso que haja receitas e exames para sacramentar o ato médico. Pergunto: sendo evidente que estou com um quadro respiratório alto (IVAS) o que poderia um médico dizer que eu já não sei? Que poderia ele me prescrever que eu aceitaria tomar? Que conselho útil poderia me dar que eu já não esteja fazendo? Que diferença essa consulta faria no transcurso dessa doença aguda?

Sim, eu me conheço e sei como estas doenças se comportam em mim. Sei também que se o quadro fosse de piora crescente não evitaria uma visita à emergência; porém, não é o caso. Sendo absolutamente racional e usando sempre o bom senso, faço o mesmo há 45 anos: fico em casa, curto a minha gripe, escrevo e leio entre espirros e paroxismos de tosse, fico com a cara inchada, perco litros de catarro pelo nariz, acumulo dores pelo corpo, fico descadeirado e espero pacientemente a tempestade passar. Esse é um excelente exercício para o sistema imunológico, e muito positivo para a economia do corpo. Abster-se das drogas – quando possível – sempre me pareceu uma atitude lúcida.

A réplica de todas teve o mesmo teor, usando quase as mesmas frases:

–  Você não pode ser tão radical. Muitos remédios ajudam pessoas. Deixar de tomar remédio é um erro. Para que esse fanatismo? Tem vergonha de pedir ajuda? Isso não passa de arrogância.

Eu respondi a elas que essa conversa era às avessas. Como era possível que alguém que transitou 40 anos pela Medicina pudesse defender a abstenção das drogas sempre que possível enquanto uma paciente defendia seu uso indiscriminado? Expliquei que não havia nada de “fanatismo” em uma postura pessoal. Não sinto necessidade de usar, por que deveria tomar? Exatamente por conhecer as drogas e seus dilemas prefiro não usá-las, a não ser que seus benefícios ultrapassem – em muito – seus potenciais malefícios.

– Não vou discutir com você. Esta é uma conversa estéril; eu tenho minha opinião e você está encastelado na sua.

Foi o que disse uma delas, evidentemente contrariada e, ao que tudo indica, ofendida com minha postura de evitar o uso de remédios. Foi esta reação indignada que me pareceu digna de um comentário. Houve também o comentário de uma médica: “Sou médica há 36 anos mas minha postura é bem diferente em relação a sua; entretanto tenho a tranquilidade de opinar e não colocar de modo tão enfático posições no mínimo questionáveis. Espero que fiques bem e em paz!! Boa noite!!”

Os médicos também não suportam que se questione o uso irrestrito de drogas. Pergunto: por que questionar o “Império das Drogas” os deixa tão ofendidos, ressentidos e até magoados? É como se o seu conhecimento sobre “qual remédio usar para o quê” fosse o elemento primordial de sua arte, o elemento que sustenta seu significado e importância social; retire-se isso e o seu valor desaparece. Eu as vezes penso que na hecatombe nuclear que se avizinha os médicos – já sem as drogas e sem os hospitais – se tornarão inúteis, pois a perspectiva mais ampla da “ars cvrandi” deu lugar à iatroquimica, deixando pouco espaço para a empatia, o acolhimento e o acoselhamento. Os médicos deixaram de ser sábios para se tornarem técnicos e especialistas. Terá sido uma boa troca?

Outra questão me deixou intrigado: por que essa vinculação de “doença ——> drogas químicas” ficou tão naturalizada a ponto de não se conceber um transtorno clínico qualquer sem que ela seja preponderante? Como pudemos criar uma ligação tão violenta entre quadros sintomáticos agudos (dos quais 95% tem resolução espontânea em poucos dias!!) e a necessidade – ou até obrigação!!! – de usar produtos da indústria trilionária de medicamentos?

Por outro lado, sei bem como é o outro lado da moeda: experimente dizer para um paciente “não faça nada, não precisa usar nenhuma medicação” para ver a reação. Muito lançam um olhar de fúria, como a dizer: “paguei, quero receita!!”. Entretanto, em muitas oportunidades esta é a frase mais justa e ética a dizer. Como educar as pessoas a pensar racionalmente sobre estas alternativas se somos bombardeados diuturnamente com a ideia de que “a verdade está lá fora”? Ou seja, para o capitalismo, a cura dos sofrimentos (só) pode ser alcançada através de algo que você acrescenta ao seu corpo, algo que lhe falta, do qual está carente. Seria uma droga, que concentra o poder de lhe devolver a paz perdida, a resposta que aguardamos? Não creio, mas para mudar esse roteiro é necessário, por parte do profissional, muita firmeza, segurança e carisma; por parte do paciente, uma forte transferência. Uma junção bem mais rara de encontrar.

Creio que a razão para tamanha conexão entre doenças e drogas pode estar em uma hipótese que carrego há muitos anos, a qual aponta para a sutil e insidiosa doutrinação que as crianças e seus pais recebem nas primeiras consultas depois do parto e nos primeiros anos de vida. É ali que se planta a semente de que “há remédio para tudo”, fazendo-nos crer que a solução para as dores e as doenças está fora de nós, em pílulas, xaropes, pastilhas e injeções, uma ideia que carregamos pelo resto da vida. Não surpreende que os adolescentes, diante da angústia mordente sobre sua sexualidade, seu futuro, sua capacidade, seu brilho e seu valor, apelem para as soluções exógenas, seja cheirando ou fumando substâncias mágicas para seus sofrimentos físicos e emocionais.

Quando eu tinha apenas 6 anos de idade e era atacado por estas febres infantis minha mãe me dizia: “Você vai ficar com febre, vai tremer e depois vai suar por todo o corpo. Depois vai ficar frio de novo, vai tremer de novo; as sensações vão voltar e desaparecer mais umas vezes e assim por diante. É assim mesmo que o corpo se ajusta. Não se assuste e não tenha medo. Estarei aqui se precisar”. Passei a acreditar na sabedoria destes processos adaptativos desde muito cedo, e fui obrigado a esquecer os abusos da medicina quando me foram ensinados. Minhas conhecidas se despediram e não creio que voltem a falar comigo. Neste instante devem estar falando para as amigas: “não imagina o que tem de fanático anti-remédio por aí

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Bandeiras

Nessa época eleitoral é importante estar atento para as falsas bandeiras. Aqui está uma história que ficou marcada na minha memória, e que deve ter ocorrido há uns dez anos. Certa vez fui convidado a falar em uma cidade de tamanho médio no interior do Brasil. O convite veio direto da secretaria de saúde, na pessoa do seu secretário municipal. Quando lá cheguei fui amavelmente recebido pela sua assessora que me mostrou o prédio da câmara e apontou o lugar onde deveria esperar até ser chamado. Não demorou muito e pediram para que eu compusesse a mesa para os trabalhos da noite. Falei por mais de uma hora sobre a importância da garantia do protagonismo à mulher no processo de parto e nascimento e no significado de capacitar doulas – e as próprias famílias – para darem conta desse evento numa perspectiva humanista e embasada em evidências científicas. Penso que a palestra foi bem recebida pelos participantes, e a prova foi as excelentes perguntas e manifestações que se seguiram à minha fala.

Terminado o encontro, me preparei para voltar ao hotel e descansar do dia corrido, visto que meu avião sairia muito cedo. A assessora do secretário, entretanto, me fez um convite para acompanhá-lo, junto com um grupo de ativistas da cidade, a um jantar. Foi o que fiz. Lá chegando conversei animadamente com as ativistas, todas doulas e enfermeiras, que estavam entusiasmadas em trazer um curso de doulas para a cidade e para influenciar na gestão municipal no sentido de criar uma “lei de doulas”. A tudo eu respondia com o pouco de experiência que tinha pelas visitas a inúmeras cidades pelo interior do Brasil. Enquanto isso, o secretário ao meu lado apenas escutava. Era um rapaz jovem, não tinha 40 anos, estava de terno e gravata e usava “brilhantina” no cabelo. Pertencia a um partido de direita que havia elegido o prefeito três anos antes, e ele agora pretendia concorrer a uma vaga como vereador, depois de sua experiência na administração pública.

Em determinado momento, ele me disse:

– Olha doutor, muito obrigado pela sua presença na cidade. Gostei da sua palestra. Entretanto, não entendo nada desse assunto. Sou um completo ignorante neste tema. Sou da área de gestão, entende? Tenho dois filhos e ambos nasceram de cesariana, porque assim minha mulher escolheu. Sabe, para mim tanto faz, cesariana, parto normal, essas coisas todas. Afinal, o corpo é dela não é? Minha esposa não queria correr riscos, acho que o senhor entende. Também não estava interessada em sentir dor; ela é muito fiasquenta sabe? Qualquer dorzinha já a abala muito; jamais suportaria as dores de um parto.

Escutei silenciosamente e não fiz comentários. Aprendi a duras penas que as convicções fortemente arraigadas surgidas de estratos irracionais não podem ser confrontadas em curto prazo com qualquer abordagem racional, mesmo quando apresentamos fatos, estudos e evidências. Estes recursos retóricos simplesmente se chocam contra uma parede rígida de crenças, as quais ajudam a suportar as contradições. Ele continuou:

– Porém, minha assessora teve o parto dela com uma doula e descobriu seu nome na Internet. Achei que isso poderia ser uma bandeira para utilizar na próxima eleição. Serei candidato à vereança. Acho que isso pode atrair a atenção do eleitorado feminino. Que acha?

Pôs a mão no bolso, retirou um santinho e me entregou. Nele o perfil era característico dos agroboys: a mesma brilhantina e o terno com gravata, misturados com palavras impactantes como “progresso”, “renovação”, “juventude”, “dinamismo”, etc. Entretanto, neste momento eu percebi, com vergonha e um pouco de tristeza, que para ele eu era um “santinho ambulante” e uma peça de propaganda de sua campanha. Pelas suas palavras ficou claro que ele estava tão distante dos ideais da humanização do nascimento quanto um urso polar está da Antártida. Eu estava, sem o saber, fazendo parte de um esquema que pretendia angariar votos usando a isca do parto humanizado, mas para um candidato que não tinha nenhum compromisso real com a ideia. Pensei que, de certa forma, a culpa era minha por não saber o que havia por trás do convite. Por outro lado, a mensagem havia sido transmitida, o recado havia sido dado e as pessoas que participaram do evento receberam uma semente do que poderia ser um mundo em que o parto fosse mais livre, sem ser dominado despoticamente por interesses de outra ordem. Não sei o quanto estive errado em aceitar o convite, e até hoje guardo essa dúvida.

De qualquer forma, passei a pensar que, muito mais do que as palavras de apoio e de suporte aos nossos ideais, um candidato precisa ser aquele que vive intensamente o que prega. É necessário que seu discurso não fique confinado às palavras, mas que esteja em sua história, no seu trabalho, no seu cotidiano, na educação dos filhos, na forma como conversa com os colegas de trabalho e como interage com os amigos. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde, as máscaras acabam caindo e por fim nos mostra a real essência que se esconde por detrás dos disfarces.

Nessa eleição vote pensando nisso…

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Conciliação e ruptura

As estratégias de combate à expropriação do parto não se resumem a debates estéreis e filigranas filosóficas. Existe uma materialidade evidente que emerge dos estudos e que nos oferece uma rota segura – porém mais difícil – de transformação. Por muitos anos, diante do crescimento evidente e sustentado da intervenção no processo de nascimento, ocorreu um debate sobre qual seria o futuro da obstetrícia. De um lado se situam aqueles que, entusiasmados por uma perspectiva tecnológica e movidos (mesmo sem o saber) pelo “imperativo tecnocrático” (que impulsiona as ações humanas em direção à complexidade tecnológica), acreditavam que o absoluto domínio da tecnologia sobre o ciclo gravídico-puerperal era o nosso porvir radiante. Para estes a gestação e, em especial, o parto, eram fardos demasiadamente pesados para serem carregados pelas mulheres. Liberadas destes encargos – gestar e parir – estariam livres de suas imposições fisiológicas para alçarem voos muito mais altos, conquistando espaços historicamente exclusivos para os homens. Os “casulos humanos” e as exterogestações povoam o imaginário de quem sustenta a tese de que as mulheres têm direito a esta liberdade, e que não recaia mais sobre seus ombros o peso de garantir a sobrevivência da espécie.

Do outro lado se encontram aqueles que percebem que o parto, assim como o concebemos, é constitutivo da nossa espécie. “Somos como somos porque nascemos de uma forma bizarra, particular e única”, e modificação das bases fisiológicas e afetivas do nascimento tem a potencialidade de transformar de tal maneira a nossa estrutura de sujeito que as gerações futuras em nada serão semelhantes àquelas de hoje, onde o parto ainda ocorre através do esforço e da resiliência das mulheres diante das dificuldades inerentes ao processo. Por certo que o movimento de Humanização do Nascimento no mundo inteiro foi criado diante do risco de abandonar a configuração multimilenária do parto em nome de uma aventura tecnológica, causando estragos semelhantes ao que ocorreu três décadas antes quando fizemos o mesmo projeto para a alimentação infantil, trocando a amamentação pelas mamadeiras e fórmulas artificiais. Tal processo, como bem sabemos, produziu uma tragédia incalculável para a saúde – em especial para as crianças de povos menos favorecidos economicamente. Por esta razão, muitas instituições se lançaram em projetos multicêntricos de valorização do parto normal, desde as pequenas ONGs locais de proteção ao parto normal até a OMS (Organização Mundial da Saúde). Porém, desde o princípio ficou claro que as estratégias para este combate eram duas que são, ao meu ver, inconciliáveis.

A primeira desejava uma “conciliação” com as forças hegemônicas da obstetrícia – os médicos, as instituições, os hospitais, a mídia – enquanto a outra percebia não haver possibilidade de conciliação e sequer cooperação, posto que não se trata de uma disputa ideológica, mas pelo poder, o domínio sobre os corpos grávidos. Para estes últimos, enquanto a obstetrícia for controlada por cirurgiões – com pouco ou nenhum apreço pelo parto normal e nenhuma habilidade para os desafios emocionais do processo – a taxa de cesarianas continuará alta, assim como o risco inerente a estas cirurgias para ambos, mães e bebês. Só os lucros aumentam com a intervenção, tanto para médicos quanto para as instituições hospitalares, indústria farmacêutica, indústria de equipamentos, etc. A solução para a questão da expropriação do parto não será através da academia, dos estudos e das pesquisas (importantes mas insuficientes), mas através da luta das mulheres exigindo partos com mais segurança e autonomia.

Um estudo de 2021 publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology deixa clara a existência de uma conexão entre os controladores do parto e as taxas de intervenção – como a cesariana. Existe um decréscimo sustentado de nascimentos cirúrgicos nos últimos anos concomitante com o aumento da atenção ao parto sendo realizada por enfermeiras obstetras. O gráfico acima não deixa dúvidas sobre a importância de abandonar a perspectiva conciliatória – tentando convencer os cirurgiões a não usar sua arte cirúrgica nos partos – e transformar o atendimento de forma radical, retirando dos médicos a primazia para a atenção aos partos normais. Para mudar a face do parto é essencial mudar quem exerce poder sobre ele.

O estudo de 2021 apenas demonstra o que falamos há mais de duas décadas: não existe possibilidade de mudança se continuarmos a usar o mesmo sistema fracassado. É preciso mudar pela raiz. Controlar o parto é uma questão de poder, e este deve estar nas mãos das próprias mulheres, para que possam decidir seu destino e o de seus filhos. Educar médicos para o valor e a importância do parto normal se mostrou um fracasso para o objetivo de humanizar o parto e garantir sua segurança; a forma mais eficiente de fazer esta revolução é garantir que o nascimento esteja nas mãos das especialistas na fisiologia de nascer: as parteiras profissionais – enfermeiras obstetras e obstetrizes. Sem isso continuaremos o autoengano que nos iludiu nos últimos 25 anos.

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