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Nu com a mão no bolso

Em Barcelona a nudez não é criminalizada. Esta é uma postura da cidade muito antiga, conhecida por todos que a visitam. Se você quiser pode andar pelado na rua sem que isso seja tratado como delito. Existe um barcelonês (foto) peladão que ficou famoso por tatuar suas nádegas como se fosse um calção e que circula pela Rambla todos os dias. Ou seja: a nudez é um direito dos cidadãos e ninguém pode ser admoestado, criticado ou processado por andar nu. Também no norte da Europa, em especial na Suécia, é comum ver estudantes adolescentes (meninos e meninas) correndo nus pela rua festejando a chegada da primavera, como uma diversão juvenil, sem que isso seja visto como atentado ao pudor.

Enquanto isso, no Brasil, uma mulher foi presa por transitar pelo congresso em Brasília vestindo apenas a sua própria pele. Aqui, na minha cidade, o mesmo aconteceu há alguns anos com uma moça que adentrou um shopping usando sobre o corpo apenas batom e o esmalte das unhas. Ambas foram cercadas imediatamente, cobertas, levadas à delegacia e tratadas como criminosas. Afinal, como ousam desafiar os costumes mostrando suas vergonhas em público? Por certo que, fossem homens, e ainda levariam pipocos e um sonífero mata-leão. Caso alguma dessas cenas viesse a passar na televisão de Barcelona por certo que seus habitantes se espantariam com a ação policial em um caso de nudez. Alguns teriam mesmo se horrorizado com a atitude bárbara de agentes do Estado prendendo cidadãs apenas por terem passeado nuas pela cidade. “Por acaso o corpo é indecente, imoral ou agressivo aos olhos?”, perguntariam. “Não nascemos todos nus? Não andam nus os indígenas e os pequenos?”

No outro lado do mundo mulheres são criticadas e algumas até presas por não usarem o véu. Quando acontece no Irã muito se noticia cada vez que uma mulher sofre algum tipo de violência, física ou moral, por se contrapor aos costumes vigentes e à etiqueta islâmica ao vestir. Os jornais ocidentais escrevem infinitas colunas e imprimem manchetes escandalosas descrevendo a sociedade iraniana como machista, desrespeitosa com as mulheres e cerceadora de suas liberdades. Aqui no ocidente acreditamos ser esta uma violação inaceitável ao direito das mulheres – ou das pessoas em geral – de se vestirem como desejam. Criticamos, atacamos e acusamos os iranianos de serem machistas, atrasados e misóginos, porque não aceitamos que a sociedade determine o que uma mulher pode usar para se cobrir – ou não.

Para um sujeito de Barcelona deve ser confuso nos ver apontando os dedos acusatórios para a cultura iraniana por fazer – em essência – exatamente o mesmo que nós. O que os peitos e as nádegas têm de proibitivo aqui, as madeixas tem por lá. No fim, será sempre a tentativa de cercear a liberdade do outro de se expressar como bem entender. Somos diferentes na superfície e naquilo que censuramos, mas na essência somos por demais semelhantes.

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O Levante de Gaza

Existem fatos cuja grandiosidade não é facilmente perceptível no momento em que ocorrem. Muitas vezes apenas o tempo, com seu sopro incansável, é capaz de lapidar os eventos e mostrar sua importância real. Por esta razão, não há dúvida que os livros de história contarão os acontecimentos de 7 de outubro de 2023 por uma perspectiva completamente distinta daquela que temos hoje. Como poderia ser diferente se temos a informação controlada pelas grandes corporações? Nosso jornalismo é colonizado pelos interesses imperialistas, impedindo que vejamos a realidade do que em realidade ocorreu. Todas as grandes empresas de comunicação do ocidente são francamente sionistas ou controladas por pessoas com laços econômicos com os Estados Unidos ou Israel, o que nos oferece uma perspectiva claramente facciosa dos fatos daquele dia. Só o tempo poderá desfazer a rede complexa de mentiras criadas para disfarçar os crimes horrendos do imperialismo contra os povos subjugados.

Entretanto, mesmo com as informações mentirosas que surgiram, descrevendo atrocidades contra os israelenses que festejavam ao lado do campo de concentração de Gaza – os abusos sexuais, as decapitações, as pessoas incineradas – ainda assim foi possível enxergar a verdade por trás destas versões falsificadas. Até a imprensa israelense foi obrigada a reconhecer as ações criminosas do seu exército e a insanidade da “diretriz Hannibal”, que sacrificou seus próprios cidadãos no intento de matar palestinos e evitar o aprisionamento de reféns. Entretanto, o futuro nos permitirá ver em perspectiva o “Levante de Gaza”, que estabeleceu um basta definitivo da população encarcerada da Palestina sobre os abusos dos invasores sionistas. Esta data será lembrada por gerações como o grito de liberdade de um povo subjugado há 76 anos pelas nações imperialistas, em especial os sionistas e os Estados Unidos.

Mas terão os palestinos, libaneses , iraquianos, iemenitas força para deter o exército tecnológico de Israel? Ora, quando dizem que o poder de fogo de Israel é invencível, nutrido pelos Estados Unidos que, por sua vez, é a maior força bélica do planeta, e que o Hamas e o Hezbollah serão aniquilados mais cedo ou mais tarde, é necessário lembrar o que ocorreu na Coreia Popular nos anos 50, no Vietnã nos anos 70 e há poucos meses no Afeganistão. Inobstante a disparidade incalculável de forças entre o exército imperialista e as forças de resistência, o resultado foi o mesmo: a vitória daqueles que lutavam pela liberdade e pela independência do seu povo. Portanto, a diferença de poder de fogo, apesar de imensa, não foi a determinante em longo prazo; as forças libertárias, mesmo que às custas de enormes sacrifícios, acabaram sempre vencendo no final.

Assim, por mais que Israel tenha apoio irrestrito do Império, a queda do regime sionista – racista, supremacista, teocrático, opressor e excludente – é uma questão de tempo. Mesmo que ocorresse algo improvável, como a derrota completa das forças resistentes do Líbano, Palestina, Síria, Iêmen, Irã e Iraque e todos os grupos que lhes dão suporte, ainda assim a imagem de Israel está profundamente deteriorada na percepção da população do mundo inteiro. As manifestações que denunciam os massacres covardes dos sionistas, contra crianças, mulheres, jornalistas, médicos, enfermeiras numa matança jamais vista no século XXI (e que nos faz lembrar dos horrores nazistas) deixaram claro que o planeta inteiro não aceitará mais a existência de um país que faz do racismo institucional seu principal cimento social.

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O horror sionista deixou uma marca indelével na memória de todos, que hoje em dia rejeita de forma clara a ideia de um “povo escolhido”. Por que razão o Criador escolheria como seu povo predileto aquele capaz de ações demoníacas, que contrariam todas as ideias de fraternidade e que aviltam a noção de civilização? O mundo não vai acordar amanhã esquecendo os horrores e a desumanidade promovidos pelos sionistas de Israel, e não há “hasbara” (propaganda sionista) forte o suficiente para produzir uma amnésia da barbárie contra a população civil que ocorre há 1 ano em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano. Portanto, nos anos vindouros o 7 de outubro será celebrado como o grande “uprising”, o “levante da Palestina”, o marco inicial da liberdade do povo que durante mais de sete décadas lutou contra um sistema opressivo, violento, injusto, racista e imoral. Será uma vitória importante das nações insurgentes contra o imperialismo brutal e assassino, um exemplo de coragem para todas as nações que buscam sua independência e sua autonomia. Essa dívida todos teremos com o povo palestino. Sua força e sua coragem, seu sacrifício e sua resiliência serão exemplo para todas as gerações vindouras.

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Rosebud

Há alguns dias, meu neto de 8 anos veio me pedir para ajudá-lo a fazer uma maquete para levar à escola. Era necessário unir 3 latas de café para fazer uma torre. Entregou para mim as latas para que fossem unidas com fita colante. Quando peguei as latas percebi que estavam vazias mas com as paredes ainda sujas de café.

– Precisa limpar, Zuki, senão vão ficar cheirando a café.

Levei até a pia e comecei a lavar. Ele ficou me olhando por alguns instantes, deu um sorriso e comentou:

– Que sorte eu pedir ajuda exatamente para o especialista.

Na divisão de tarefas da Comuna coube a mim a função de lavar a louça. Esta não era das tarefas mais disputadas entre as que estavam sobre a mesa; afinal já somos 11 comunas, fora os convidados esporádicos; por certo que era uma das funções menos desejadas. Entretanto, lavar a louca, nunca foi um peso para mim. Ao longo dos anos desenvolvi técnicas para fazer deste tempo algo produtivo. Coloco fones de ouvido e fico ouvindo podcasts, entrevistas, as notícias do dia, às vezes músicas e o tempo passa muito rápido.

Entretanto, esta é tão somente uma meia verdade; de certa forma é apenas uma racionalização barata. Mesmo sem as “técnicas”, a verdade é que eu gosto de lavar a louça. Gosto do barulho da água, de organizar os pratos, dos gestos repetitivos e calmantes com a esponja, do cheiro do sabão e de ver tudo limpo no final. Tenho o costume de lavar a própria pia após a tarefa, até deixá-la brilhando. Quando quis descobrir a chave para explicar este meu estranho gosto lembrei que quando criança minha mãe colocava eu e meu irmão mais velho a ajudá-la nas tarefas após o almoço. Era uma rotina diária, e só podíamos brincar depois de terminá-la. Quando bem pequenos ela contava histórias sobre as aventuras de dois garotos: Patrick e Bolão. Quando ficamos mais velhos, ela ligava o rádio e ficávamos escutando “2001”, um programa de ciência narrado por Flávio Alcaraz Gomes, ícone do rádio gaúcho, transmitido pela saudosa Rádio Guaíba (que ainda existe, mas se transformou em um antro bolsonarista). Aliás, foi ele quem adaptou para o rádio brasileiro a “Guerra dos Mundos“, de Orson Welles.

Por certo que a lembrança destas cenas de convívio com a minha mãe no passado criaram pontos de luz na memória, transformando uma tarefa enfadonha em uma atividade quase lúdica. Lá nas profundezas escuras do meu inconsciente profundo ainda escuto a voz da minha mãe contando as histórias enquanto passo detergente nas panelas. Na verdade, qualquer sujeito que procure atividades prazerosas em sua vida acabará encontrando conexões com fatos escondidos do passado.

Em Cidadão Kane o protagonista morre dizendo o nome do fabricante do trenó com o qual brincava no dia em que foi levado de casa para viver com a família que o adotou. Orson Welles desejava, mostrar que a construção do Império jornalístico de Charles Foster Kane (baseado no barão do jornalismo americano William Randolph Hearst) estava ancorada em um trauma do passado: o desligamento precoce dos laços que tinha com a mãe e a família. Aliás, o fato de Kane ter o nome do meio “Foster” (adotivo) já deveria nos acender um alerta. Sua fortuna imensa e seu poder estavam concentrados na solução da dor profunda criada naquele dia, como um buraco negro poderoso que o sugava de volta para aquele momento decisivo.

Todos carregamos nossos “Rosebud” particulares; eles podem ser vistos em nossas manias, fixações, desejos, fetiches, taras e prazeres. Somos constituídos por estas marcas feitas de lembranças do passado, que nos ligam ao prazer e à dor de forma intensa e vívida, mesmo quando a conexão consciente já foi há muito perdida na neblina do tempo.

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Millôr

Quando adolescente e jovem sempre fui fã do jornalista Millôr Fernandes, por seu humor ácido e por uma característica que acho admirável em escritores: assim como Oscar Wilde, ele era um genial frasista. Nesta época eu abria a Veja apenas para ler a coluna do Millôr. Gosto muito de uma frase sua, que uso até hoje, quando vejo um grupo de pessoas falando mal de alguém de forma inexorável e dura: “O mundo tem muitos canalhas, mas estão todos nas outras mesas” (pág. 100). Sendo ele um emérito frequentador de botecos cariocas, essa frase certamente a criou entre um e outro Chopp com os amigos. Ele tinha outra característica que eu achava criativa e original: escrevia uma simples frase e colocava abaixo uma nota de rodapé em caixa baixa do tamanho da folha. Ou seja: funcionava como algumas obras artísticas da pintura moderna, que se resumem a poucos rabiscos em uma tela branca, mas sobre as quais se escrevem gigantescas teses de doutorado, retirando delas muito mais do que o próprio autor seria capaz de imaginar.

Mas, para além de seu humor ácido, sua visão política cheia de ceticismo, e sua rixa histórica com outro ídolo meu, Chico Buarque (que chegou às vias de fato), ele também é uma imagem viva do jornalismo e da sociedade – carioca e brasileira – de sua época. Seus comentários e frases sobre a sociedade e, em especial, as mulheres, são uma forma muito clara de olhar a cultura dos anos 60-70. Por estas razões comprei o livro Millôr Definitivo – A Bíblia do Caos” assim que foi lançado, pois ali se concentravam as suas melhores “tiradas”, seus pensamentos, sua perspectiva política (mesmo sobre fatos datados) e seu humor de acidez inconteste. Categorizados por palavras chave, estão listados 5142 pensamentos, máximas, conceitos, aforismos, devaneios, etc. para se poder absorver o que ele deixou como testemunho, registros de um astuto observador da realidade brasileira.

Entre as suas manifestações, uma me chamou a atenção: a forma como falava despudoradamente das meninas de Ipanema, pré-adolescentes com 13 anos de idade. Imaginem o furor que causaria essa manifestação de admiração sobre o corpo de “crianças” de 13 anos nos dias de hoje, descrevendo-as com sua “graça e sensualidade”. Certamente seria cancelado sem dó, e talvez fosse até criminalmente perseguido. Entretanto, a idade me permite recordar que, quando da publicação destas frases não havia a consciência que hoje temos sobre o tema. Não causou nenhum escândalo suas frases sobre meninas muito jovens, assim como à época não nos chocamos com Caetano ou Jerry Lee Lewis. Não existia a noção, que hoje temos, de proteger a sexualidade emergente das meninas, que ainda eram vistas da mesma forma como os antigos as viam: objetos para o deleite masculino, sem consideração sobre sua maturação afetiva, emocional, psíquica e até social. Ou seja: Millôr escreveu sobre sua época, sobre o entorno no qual se inseria e também com o material do campo simbólico que absorvia e vertia para o papel. É preciso ter com ele a mesma consideração que deveríamos ter com Allan Kardec, Fernando Pessoa e Monteiro Lobato quando se referiram à negritude em seus livros. Se suas obras podem ser criticadas hoje (e devem) elas merecem ser vistas sem anacronismo, inseridas em sua época e avaliadas pelo contexto no qual foram escritas.

De qualquer forma, Millôr continua sendo um dos meus escritores favoritos. Deixou um legado de crítica política inteligente e vigorosa, sem jamais abrir mão do humor como linha condutora de seus textos.

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Tortura

Não se produz justiça tratando desumanamente prisioneiros. Aliás, estes são atos que se chocam contra a carta de direitos humanos. Além disso, traficantes são o resultado de uma sociedade doente, não sua causa. Uma sociedade mais justa não produziria as multidões de drogados que se intoxicam para suportar a realidade, e nem os criaria traficantes que lucram com sua doença. Traficantes não são a causa primária do distúrbio; eles só aparecem para suprir a demanda do vício, criado pelo desequilíbrio social. Muito mais pessoas morrem por álcool e cigarro todos os dias do que por drogas ilegais, mas os “traficantes” (quem faz e vende tabaco e álcool) não são punidos. Curioso, não? E mesmo que fossem eles os causadores do distúrbio, mesmo que os traficantes tivessem criado também a demanda por drogas, nada justificaria a tortura a que eles são submetidos nas prisões. Exatamente por isso, as nações assinam tratados sobre direitos humanos.

Na mente dos direitistas existe um mundo dividido entre sujeitos “maus” e “cidadãos de bem”, mas a verdade é bem mais complexa e está bem longe disso. Nesse mundo de mentiras que criaram, ao se punir exemplarmente os “maus” – e até de forma cruel e definitiva, mas só a maldade dos pobres, por certo – o mundo ficaria melhor. Afinal, cortando as ervas daninhas o gramado ficaria verdejante, não é? Pois o mundo prova o contrário todos os dias. O país mais punitivista do mundo, com quase 2 milhões de prisioneiros, não diminui seus níveis de criminalidade, exatamente porque a iniquidade estrutural é a mãe destes crimes, e não uma chaga moral de uma parcela de seus habitantes. Ou seja: a visão da sociedade que estabelece os defeitos morais como as causas do crime, levando ao punitivismo inexorável como principal remédio, se mostrou uma grande mentira.

Divulga-se que famoso criminoso Marcinho VP está passando por uma preocupante crise psiquiátrica na penitenciária onde se encontra. Ora, o que se poderia esperar? Quem consegue manter a sanidade no sistema prisional brasileiro, onde os detentos são esquecidos e entregues à própria sorte? Não há dúvidas que muitos estão sendo torturados, jogados à própria sorte, mas quem se importa com as consequências psíquicas do confinamento e dos maus tratos? Na perspectiva do fascismo, a criminalidade é uma “infecção que se espalha”, porque seus seguidores não conseguem entender seus determinantes sociais. Se essa tolice de contaminação fosse verdade, porque não se manifesta criando criminosos da Noruega, Suécia, Japão ou Cuba? Por que tantos no Brasil, Argentina, México e Estados Unidos? Se olharmos para os níveis de criminalidade alarmantes desses países, o que salta aos olhos? O que tais países têm em comum? Sim: um capitalismo brutal que reforça desigualdades!! Ora, em sociedades mais igualitárias não há tanta necessidade para roubar, e por isso os níveis de crime são muito mais baixos. A razão de existir um Marcinho VP é a sociedade desigual onde vivemos e uma legislação estúpida e ineficiente sobre drogas. Prender para torturar um criminoso como esse em nada soluciona o problema, apenas cria novos líderes para substituir os trancafiados.

Torturar traficantes na prisão não diminuiu em nada o tráfico de drogas, apenas dá espaço para nossos sentimentos de vingança. Porém, os criminosos sabem das retaliações que receberão na prisão, e suas ações também levam em consideração a maldade que sofrem do sistema, num circo vicioso de culpa e crime, vingança e retaliação. Tratar prisioneiros com desumanidade, afirmando que eles “merecem”, por fazerem o “mal”, não soluciona nada e acrescenta lenha na fogueira da criminalidade.

Por fim, muitos acreditam que condenar a tortura física e psicológica de apenados é o mesmo que não punir. Para estes, tratar os prisioneiros com dignidade seria como absolvê-los de seus delitos, e que tal atitude representaria um estímulo ao crime, pela via da impunidade. Quem afirma isso não tem capacidade de entender que até mesmo os piores criminosos devem ser punidos dentro da lei, pois sem isso regredimos à idade média, aos linchamentos e aos apedrejamentos públicos que, como sabemos, nunca impediram as pessoas de cometerem crimes.

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Brits

Quando eu era pequeno, e ainda mais na infância do meu pai, a influência da Inglaterra era enorme na cultura do Brasil. Não foi a toa que minha família paterna saiu de Manchester e veio para cá há 100 anos: o império tinha muita influência por aqui. Dizer que um carro, um casaco ou um produto qualquer era inglês significava garantir sua qualidade. A Inglaterra, no ocaso da era vitoriana, era vista como o centro intelectual do mundo. Entre outras coisas eles, estabeleceram no Brasil uma prática chamada “preço inglês”. Hoje parece muito comum passar na frente de uma loja e olhar os preços de um produto, seja na vitrine ou na etiqueta com código de barras, mas nem sempre esse foi o padrão. Em países de cultura árabe, ainda se negociam os preços diretamente com os vendedores, hábeis artistas na arte da negociação e do desconto. Quando se viaja para alguns lugares – como o Marrocos – a gente percebe que o preço dos artesanatos, calçados, roupas só é definido na conversa com o vendedor. Já vi preços caírem de 100 para 10 nesse tipo de arte.

O problema é que esse tipo de negociação, onde o valor dos produtos varia de acordo com o comprador, exige muito do vendedor, em termos de talento e tempo. Com a evolução do comércio ficou mais fácil colocar uma etiqueta com uma margem variável de lucro e evitar tanta negociação e tanto tempo despendido para cada venda. Meu pai chamava isso de “preço inglês” e dizia que os jornais anunciavam as lojas da cidade garantindo que os produtos tinham essa precificação. Quem saia de casa já sabia o valor que pagaria por qualquer produto, sem precisar negociar com o vendedor.

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Lembrei disso porque países ligados à “British Commonwealth“, como a Índia e a África do Sul, decidiram não participar da reunião convocada pelo Rei Charles e comparecer à reunião dos BRICS, demonstrando a crescente perda de protagonismo britânico no planeta. Hoje em dia a Inglaterra não tem mais a influência de antes, e não passa de um “puxadinho” dos Estados Unidos, um cãozinho velho e banguela carregado na coleira pela política externa americana; os anos de glória da realeza britânica estão agora definitivamente no passado. O que outrora foi um Império sanguinário, poderoso e extenso – onde o sol jamais se punha – hoje não passa de uma nação decadente, com graves problemas internos, subserviente ao poder imperialista e sem a importância geopolítica de outrora.

Os declínios são da ordem natural das coisas. Primeiro os sumérios, fenícios e egípcios; depois com a Grécia e Roma na idade clássica; mais tarde os franceses, ingleses e agora os americanos. Quando vejo a derrocada da importância da Inglaterra no planeta fica ainda mais claro para mim que nenhum sistema opressivo é eterno, e o consórcio americano israelense, que durante 80 anos nos pareceu sólido, imponente e invencível, será derrubado mais cedo ou mais tarde. O planeta não aceitará por muito tempo a perspectiva supremacista, racista e genocida de Israel. Hoje este país já é um pária internacional, rejeitado por 90% da população do mundo, sendo apoiado apenas pelos governos imperialistas burgueses. Essa situação não pode se manter por muito tempo. Em que época do mundo um exército qualquer procurou as crianças como alvo para suas balas? A barbárie homicida de Israel um dia acabará, e o destino deste país está selado: pode levar mais um ano ou uma década, mas o sionismo será enterrado definitivamente, e o apartheid será apenas uma triste memória para o planeta.

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Sanguinários

Quando escuto as tradicionais acusações dos direitistas e liberais aos “ditadores” comunistas (ou não) e suas listas de mortes – cujos números são sempre criados em “freestyle” ou usando dados do instituto TireyDoku – eu exijo que qualquer avaliação da história destes personagens não ceda às pressões do anacronismo e avaliem o contexto em que estas revoluções foram estabelecidas.

Olhem, como exemplo claro, a história da China e o “século de humilhações” pelo qual passou. Anos de exploração estrangeira, repletos de abusos e o confisco de suas riquezas. Pensem nas derrotas humilhantes nas Guerras do Ópio, a pobreza do seu povo, a espoliação produzida pelos colonizadores ingleses e ficará mais fácil compreender a necessária reação para a liberdade do povo chinês. Sem entender a realidade das múltiplas invasões estrangeiras e as lutas internas fica mais complicado colocar em contexto a libertação da China em 1949 através da guerra civil e a “grande marcha” de Mao Zedong. Entretanto, a ninguém seria lícito imaginar que a entrega da China aos chineses seria feita sem os tradicionais massacres que as nações imperialistas impõem como punição aos povos dominados. É necessário também lembrar o que era a China em meados do século XX e o quanto sofreu durante a invasão japonesa, a perda da Manchúria na segunda guerra mundial e os 14 milhões de mortos que sucumbiram nessa guerra brutal contra o domínio nipônico.

Como não lembrar a história da Coreia, a ocupação japonesa, a tentativa de extermínio de sua língua, de sua história e até dos seus patronímicos? A invasão americana na “Guerra da Coreia” (ou Guerra da Libertação, como é referida na Coreia Popular) exterminou 1/3 da população civil, mandando o país para a idade da pedra com a destruição de todas a sua infraestrutura (a exemplo do que se faz hoje em Gaza) e só quando estudamos a crueldade assassina das forças imperialistas é possível entender a história de Kim Jong-Un, seu pai, seu avô, sua gente e a luta por liberdade e autonomia do povo coreano. Não é justo esquecer o que a França fez com o Haiti e com a Argélia, uma história de dominação repleta de atos da mais absoluta selvageria e covardia. Como apagar a história brutal do Congo, e os 10 milhões de mortos sob o domínio da Bélgica do Rei Leopoldo. Portanto, seria de esperar que a resistência pela liberdade em resposta à esta brutalidade só poderia ser igualmente feroz.

É preciso ter em mente que 14 nações invadiram a União Soviética durante a “guerra civil” (na verdade, guerra de independência) e isso facilita para entender a necessidade que havia de lutar de todas as formas possíveis, pois isso representava a única possibilidade de manter a unidade nacional. Que dizer dos 20 milhões de mortos da União Soviética na luta vitoriosa contra o nazismo de Adolf Hitler e o preço pago pelos soviéticos para que o mundo se livrasse do fascismo da Alemanha? Em Cuba a revolução se estabeleceu na luta contra um governo corrupto e burguês, que mantinha a ilha como um bordel americano e uma gigantesca fazenda de cana de açúcar, mantendo a população miserável, oprimida e subjugada pelos latifundiários e seu sistema semi-escravista. Por acaso estes poderosos, apoiados pelo governo americano, entregariam a soberania de Cuba para os cubanos sem luta e sem violência? Seria condenável a reação violenta de um povo que por séculos sofreu de forma desumana?

E o que falar sobre o Hamas, este partido politico e seu braço armado (a brigada Qassam) e os demais grupos de resistência palestina que lideram uma luta de 76 anos contra os canalhas sionistas, racistas e abusadores, terroristas da pior espécie, violadores e assassinos de crianças? Há como analisar suas ações, em especial o 7 de outubro de 2023, sem levar em consideração as humilhações impostas pelos invasores sionistas nas últimas sete décadas? Há como apagar uma parte da história e manter apenas aquela que nos interessa? Por acaso eram “terroristas” aqueles que atacaram a realeza na França na queda da Bastilha, criando as fundações do mundo burguês no qual hoje vivemos? Ou seriam eles tão somente os bravos lutadores que resistiram ao poder despótico e injusto da cleptocracia monárquica? E a resistência francesa que lutou contra os nazistas em Paris? Seriam terroristas aqueles que lideraram o levante do gueto de Varsóvia? Ou a história provou que eles eram lutadores pela liberdade de seus povos? Será mesmo que a independência dos Estados Unidos, libertando-se da Inglaterra, foi feita com abaixo-assinados, ou foi como todas as lutas libertárias – a ferro e fogo? Ora, não sejamos tolos e ingênuos.

Isso não significa que as guerras de libertação não contenham ações bárbaras violentas, abusivas e até criminosas. Porém, quando vejo críticas a estes eventos do passado é impossível não lembrar de Bertold Brecht: “Dos rios dizemos violentos, mas não dizemos violentas as margens que os oprimem”. Do Hamas reclamamos a fúria, mas fechamos os olhos diante dos 76 anos de massacres, torturas, assassinatos, sequestros, o extermínio de famílias inteiras, o apartheid e a dominação opressiva por parte do Estado terrorista de Israel. O mesmo se pode dizer de todos os grupos de resistência que se levantaram contra a opressão. É preciso aprender a história dos povos para entender suas lutas e seus dilemas. E por fim é fundamental conhecer os personagens que são criticados pelos reacionários para saber em qual contexto eles atuaram.

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As lágrimas de Warren

Quadro de Robert Hinckley sobre os acontecimentos de 16 outubro 1846

Na manhã daquele dia, no distante 16 de outubro de 1886, Gilbert Abbott – um homem tuberculoso que vivia em Boston e que ostentava um vistoso tumor submaxilar – sentou-se em uma cadeira de couro vermelho pensando que aquele poderia ser seu derradeiro dia de vida. Em seu rosto pálido parecia não correr uma gota sequer de sangue quando encarou, à sua frente, a equipe cirúrgica que se aprontava para efetuar a operação de retirada da tumoração. No centro da equipe, ladeado por nomes como Gould, Townsend, Bigelow e Hayward estava John Collins Warren, um dos mais famosos cirurgiões dos Estados Unidos à época. Gilbert Abbott sabia que seu sofrimento poderia ser excruciante, talvez fatal, mas por certo não seria demorado: uma quantidade imensa de dor concentrada em alguns poucos minutos, se tanto. É importante entender que em meados dos século XIX as cirurgias eram necessariamente muito rápidas, pois a velocidade dos cortes era o que permitiria a possibilidade de sobrevida. Os cirurgiões eram verdadeiros “açougueiros”, hábeis na capacidade de cortar os tecidos e serrar ossos com precisão e rapidez. Não havia tempo a desperdiçar; amputações de membros inferiores, em geral por gangrena, eram realizadas em 30 segundos, “pele-a-pele” – habilidade preciosa que tornou famoso o cirurgião escocês Robert Liston. Eram homens embrutecidos pelo trabalho com a dor, o sofrimento e a morte. Tinham um aspecto sujo, grosseiro e bruto e suas ações eram marcadas pela frieza e por um temperamento impávido.

Naquele diz um ator diferente havia sido aceito para participar da cena cirúrgica. O dentista Thomas Green Morton estaria disposto a demonstrar os efeitos sedativos de uma substância que havia experimentado com sucesso na sua prática de odontologia, quando conseguira extrair dentes de pacientes sem que estes experimentassem dor. Para isso uma grande plateia se preparava para assistir a apresentação, ainda que a maioria acreditasse em um retumbante fracasso e um vexame para seus protagonistas.

– Em nossa próxima cirurgia utilizaremos uma substância preparada por um certo senhor Morton, a qual ele atribui a capacidade de tornar insensíveis à dor aqueles que a aspirarem.

As palavras de Warren eram pura arrogância e incredulidade. Na sua visão até então, esses sujeitos e suas “novidades” nada mais eram do que embusteiros, picaretas, farsantes e aproveitadores da credulidade pública. Na plateia de médicos e estudantes ouviram-se risos quando do anúncio. Como ousava alguém abolir a sensação dolorosa que nos foi oferecida pelo Criador como castigo por nossos pecados mortais? Quem poderia ter a pretensão e a ousadia de mudar o que de humano existe em cada dor, cada sofrimento? O clima estava preparado para o deboche, o escárnio e a humilhação pública do pobre dentista; os presentes estavam prontos para uma ruidosa gargalhada.

Thomas Morton aproximou-se e perguntou ao paciente Abbott se ele estava com medo, ao que ele respondeu negativamente. Aproximou dele o globo de vidro repleto de éter sulfúrico (ou éter etílico), substância que era conhecida pelos trabalhadores dos circos há muitos anos como “gás hilariante”, muito usado em suas apresentações. Acercando-se de Abbott, trouxe a cânula para perto de sua boca, pedindo que aspirasse vigorosa e profundamente. “Vai tossir um pouco – avisou – mas logo passa”. Em poucos instantes os lábios do paciente se afrouxaram; logo após os braços penderam ao longo do corpo e perderam o tônus. A mandíbula afrouxou e Abbott passou a dormir como um cordeirinho. Morton voltou-se para John Warren e exclamou, pela primeira vez confiante:

– O paciente está à sua espera, Dr Warren

Deixo aqui a descrição do livro “O Século dos Cirurgiões“, de Jürgen Thorwald, sobre os fatos testemunhados por aqueles que se acotovelavam na arquibancada da sala de cirurgia do Hospital Geral de Massachusetts na histórica data de 16 de outubro de 1846:

“Warren curvou-se em silêncio para Abbott. Impassível como sempre, arregaçou os punhos, tomou o bisturi. E logo, com um movimento fulminante, desferiu o primeiro golpe. Fizera-se na sala silêncio absoluto; ouvir-se-ia perfeitamente a menor manifestação de sofrimento, um gemido, um suspiro. Porém, o paciente não se movia, não se defendia. Perturbado, pela primeira vez, Warren curvou-se mais sobre o operado, praticou a segunda incisão, a terceira, muito profunda. Dos lábios de Abbott não saiu um som. Warren extraiu o tumor. Nada! Nem um ai! Warren cortou as últimas aderências, colocou a ligadura, passou a velha esponja, para limpar o sangue…

E nada… só silêncio… sempre silêncio…

Warren endireitou-se, empunhando ainda o bisturi; estava mais pálido que de costume e o trejeito sarcástico desaparecera dos seus lábios; faíscas saíam dos seus olhos, cheios da luz do prodígio misterioso, inconcebível e, até instante atrás, inacreditável …

– Isto – pronunciou afinal o grande cirurgião – não é nenhum embuste…

De improviso, nas suas faces engelhadas, ressequidas, cintilou um brilho úmido. Warren, o soberbo, o lacônico, o coração empedernido, Warren o homem avesso a toda manifestação de sentimento, chorava.”

Mais de 178 anos já se passaram desta cena memorável, inaugurando a era da cirurgia moderna e o uso da anestesia como elemento indispensável em todo o procedimento cirúrgico, livrando a humanidade de uma história de milênios de dores e sofrimentos. A partir desta data, a possibilidade de corrigir o corpo humano através da invasão pelo bisturi passou a ser uma realidade. Também a partir desse momento, inaugurou-se o nascimento cirúrgico moderno, em que a sobrevida de ambos, mãe e bebê, se tornou a norma. Todavia, se é lícito questionar os abusos desta cirurgia nos tempos atuais, também é justo saudar essa incrível façanha do gênio humano. Aos médicos e a todos que se dedicam a minorar as dores daqueles que sofrem, nossa homenagem.

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Aos mestres com carinho

Meu sonho sempre foi ser professor, como meu pai. Sempre achei esta a profissão mais charmosa, mais desafiante, mais complexa. As vezes vejo pessoas escrevendo sobre as agruras dos seus ofícios e o quanto são difíceis, complexos, profundos e desafiadores. Quando me descrevem seus desafios eu sempre vejo minha imagem de menino, sentado na sala de aula com outros 40 alunos enquanto assistia uma aula sobre assuntos que não me interessavam – como matemática, por exemplo. Na minha frente uma professora, lutando contra o desinteresse de uma multidão, tentando provar o quanto aquele conteúdo poderia ser útil em suas vidas. Aquelas cenas ficaram marcadas na minha mente como a mais fidedigna descrição de um cavaleiro andante solitário enfrentando moinhos de vento ranhentos e inconvenientes. A sua coragem e força de vontade hoje me impressionam.

Somente muitos anos depois da minha experiência escolar eu tive a oportunidade de me colocar na posição de professor. Em todas as vezes que recebi elogios eu respondi de forma direta: “Eu estou dando um curso para adultos, ávidos por um conhecimento específico, pelo qual pagaram e que vai lhes abrir portas na vida profissional. Desta forma, 80% do trabalho – o interesse – já está feito por quem assiste a aula. Como acha que me sairia com crianças ou adolescentes, sem interesse nesse tema, garotos e garotas que naquele momento gostariam de estar conversando ou namorando? Como acha que eu me sairia se o conteúdo que eu ofereço não fosse capaz de abrir portas para alguma vantagem na vida?”

Um bom professor lhe oferece insegurança e angústia; não lhe garante a paz, e sim a espada. O mestre lhe oferece a certeza das incertezas, a compulsão pelo pensamento crítico e segurança para não aceitar respostas fáceis ou definitivas. Um mau professor carrega você para onde desejar, enquanto o bom professor lhe mostra o caminho. Já o mestre lhe descortina a vastidão à frente, aponta para o horizonte e diz: “faça seu caminho”. O mestre Freud já nos ensinava que “as certezas absolutas nos cegam perante novos horizontes; nunca tenha certeza de nada, porque a sabedoria começa com a dúvida”. Desta forma sua pedagogia nos afastava da sedução das convicções inamovíveis e do alívio que elas proporcionam. Pelo contrário: sua sabedoria nos apontava que o crescimento se dá exatamente pelo enfrentamento da angústia de nada saber.

Aos mestres minha reverência e minhas desculpas. Fui um aluno chato, irritante, conversador e irreverente. Desafiava constantemente a autoridade que os pobres professores tinham diante da turma. Fui muitas vezes chamado à atenção, e todas de forma merecida. Essa minha relação de atrito com todas as formas de poder transformou-se, com o passar dos anos, em genuína admiração, a ponto de que agora vejo os professores como os profissionais mais sofisticados. Da mesma maneira, hoje vejo a arte de curar como sendo, em essência, uma pedagogia, e não uma intervenção mecânica sobre organismos disfuncionais. Quanto mais o médico se aperfeiçoa, mas se parece com um professor: ao invés de intervir auxilia o paciente a encontrar dentro de si mesmo a cura que tanto necessita.

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Psicologismo

A ideia ultimamente difundida de que o fascismo surgiria pela proliferação dos “machos inseguros”, produzidos por uma sociedade onde as mulheres estão assumindo cada dia mais postos de comando, é outra tolice que vem sendo espalhada pela camada nas redes sociais, em especial nas franjas mais religiosas e beatas das esquerdas liberais. A redução dos problemas sociais a transtornos ou dificuldades dos indivíduos é uma bobagem que deve ser combatida por quem se situa na porção radical da esquerda, pois que nada mais é que um novo golpe identitário, cujo objetivo é atacar as bases do movimento operário. Isso é infantil demais até para ser debatido.

Por certo que o fascismo encontra um terreno fértil entre os “machos inseguros”, mas nem todos os machinhos em crise reunidos do planeta seriam capazes de criar um modelo de opressão burguesa sobre as massas operárias, usando o aparato repressivo do Estado e da polícia. Isso é puro suco de ideologia. Essa “psicologização” dos fenômenos sociais serve apenas para desviar o foco das questões estruturais que nos impedem de progredir e da inevitabilidade da luta de classes.

A tendência contemporânea de interpretar as tendências sociais em direção ao fascismo utilizando o ferramental produzido pela psicanálise é muito sedutora, e por esta razão largamente usada pelos identitários. Para estes, o rechaço à cultura “woke” não passaria de uma reação aos direitos recentemente conquistados pelas comunidades oprimidas, e os ataques partiriam do opressor-mor da nossa sociedade: o macho branco, cis e heterossexual. Se é verdade que existem homens que não suportam qualquer ideia de equidade, desprezando e se sentindo ameaçados pela maior visibilidade e reconhecimento do trabalho das mulheres, estes não seriam capazes de criar um movimento de supressão das liberdades em direção a um controle opressivo do Estado, como se pode ver nos fascismos clássicos. Tais “machos inseguros” normalmente se reúnem nos bolsões bolsonaristas e nos “chans” compostos por supremacistas e incels, mas não representam uma ameaça concreta, a não ser que se unam aos burgueses que, encampando suas ideias, os usam como massa de manobra para atacar a classe trabalhadora. 

Para os apologistas desta perspectiva o fim do fascismo ocorreria com a abordagem psicanalítica dos seus constituintes individuais ou, quem sabe, por um “outing coletivo”, quando milhões de machos reprimidos e multidões de machistas com comportamentos odiosos e vingativos sairiam do armário, dando vazão aos seus impulsos homoeróticos. Ora, nada poderia ser mais ingênuo e errado do que isso.

O fascismo se combate com política, força, consciência de classe, união popular e revolução. O resto é papo furado.

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