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Censura e silenciamento

Como a história cansa de nos dar lições, censurar para esconder as contradições da realidade jamais será solução para nada. Na questão dos algoritmos e do bloqueio de fake news todo mundo acerta no diagnóstico, mas quando é para apontar a solução, continuam apostando na velha alternativa do silenciamento, na supressão e na proposta de não permitir que os “fascistas” (no nosso caso) e os “comunistas” (no caso deles) tenham vez e voz. No fundo, essa proposta é o que classifico como o velho “modelo materno”, que se aplica quando a mantemos os protegidos (as crianças) num estrato onde não têm autonomia por não possuírem ainda condições para se defender. É o que as professoras fazem na escola primária: protegem os alunos do bullying e das brincadeiras maldosas, como uma mãe o faria, porque sabem que são crianças indefesas. O problema dessa proteção é que os protegidos se tornam o objeto do nosso controle. Em nome da sua segurança, impedimos que se tornem sujeitos independentes, evitando que o mal chegue a deles Fazemos isso porque acreditamos na sua incapacidade de lidar com as agressões e ofensas. De novo, como qualquer mãe amorosa faria.

Todavia, chega um momento em que as crianças pedem que as mães não cheguem à porta da escola. O cuidado e o controle que elas recebem das mães (e aqui “mãe” é a função, não a “pessoa”) torna-se um fardo. Não querem mais proteção; querem liberdade. Nesse momento é que entra o “modelo paterno” que, ao invés de impedir a chegada do mal, reforça as qualidades intrínsecas do sujeito para que ele possa, por si, se defender. Assim, ao invés de proibir as piadas com gays, pretos, gordos ou narigudos, o esforço será em reforçar o orgulho de pertencer a qualquer uma dessas identidades. Da mesma forma, ao invés de proibir conteúdo de extrema-direita, a solução seria estimular a perspectiva de mundo do sujeito socialista, internacionalista e fraterno, na construção de uma nova sociedade, assim como mostrar o ridículo das posições fascistas, racistas, sexistas e todas as expressões do fascismo. Entretanto, sem calar, sem cercear, sem proibir, pois nossa experiência com os preconceitos – todos – e mesmo o próprio nazismo deixam claro que as proibições são inúteis.

Isso não significa que não se pode proibir nada. É proibido violar a lei, e para isso as leis são criadas. Entretanto, opinião não é crime, mesmo aquelas perspectivas mais abjetas, como as racistas ou anti-LGBT. Se as proibições motivadas pela sensibilidade do ofendido forem tomadas como lei, chegaremos rapidamente a 1984 de Orwell, onde um Xandão qualquer pode dizer que ser a favor de parto normal (ou ser comunista) pode levar à morte de pessoas (ou ao “genocídio stalinista”). Para se configurar o crime não se exige mais um ato; basta pensar em voz alta e emitir opiniões. Se estas manifestações – repito, mesmo as bizarras – forem passíveis de silenciamento a delicada tessitura da democracia e do livre pensar desaba, pois que a expressão das ideias vai acabar dependendo do humor e dos valores de um títere qualquer que detenha o poder de discriminar o bom do mau, o certo do errado.

Boa parte das pessoas (a maioria?) ainda acredita que “calar os maus” faz sentido. São os mesmos que acham que linchar um criminoso na rua em flagrante é justo, pois, afinal, por que esperar por toda a burocracia da justiça se podemos fazer um “atalho”? Acreditam ser possível combater o crime com mais crime – como fizeram Moro e a Lava Jato. Estes acreditam que, quando calarmos à força quem de nós discorda, estamos corretos, pois o silêncio que se segue nos dá a ilusão do sucesso. “Veja como acabou o racismo, ninguém mais fala mal de negros!!”, quando em verdade este e outros preconceitos continuam na alma dos sujeitos, e seu preconceito se expressa apenas em sussurros, nos cantos, nas surdida, mas vivo e atuante. Repito: de que adiantou calar os comunistas? Que ocorreu com a proibição do nazismo? Olhem a Alemanha de hoje e o sucesso da AFD (Alternativa para a Alemanha)!! Vejam o bolsonarismo, vivo e forte. Analisem a vitória do Milei e de Trump!!

As proibições e o punitivismo são tão sedutores quanto inúteis. Os Estados Unidos – à mais bem sucedida ditadura burguesa do planeta – têm 2 milhões de encarcerados. Se o silenciamento social desses indivíduos tivesse algum sucesso, era de se esperar a diminuição dos níveis de criminalidade e violência, não? Pois o que se vê é o oposto; a tendência no mundo inteiro é o incremento da violência pelo fracasso das promessas do capitalismo. Da mesma forma, o silenciamento da livre expressão de teses contrárias ao nosso entendimento jamais teve sucesso. O proibicionismo sempre fracassou como instrumento pedagógico. Mas cabe lembrar que “Vamos matar o presidente!!não é uma opinião, mas um claro incitamento ao crime. Confundir isso é uma constante naqueles que não gostam da liberdade de expressão. Estes são os mesmo que dizem que gritar “fogo!!!” em um cinema lotado deveria ser proibido, pois colocaria todos em risco, mas sem compreender que “fogo” não é opinião e não expressa uma perspectiva subjetiva e particular do mundo. Essa metáfora é usada até hoje por juristas que desejam limitar a liberdade de expressão, dizendo que ela não pode ser “absoluta”, mas falhando em determinar a quem cabe a decisão final.

Estes que aceitam a “censura do bem” acreditam que ela é justa porque partem da crença que possuem a perspectiva correta do mundo e por isso não haveria problema em silenciar os “errados”. Isso muda de figura quando alguém, um poderoso, um ditador ou um ministro direitista consegue impedi-lo de expressar suas ideias “corretas”.

Aí talvez aí resolva voltar às ruas para exigir liberdade.

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Inquisição

Acho triste e decepcionante ver gente da esquerda contrariada com o fim da censura explícita do Facebook. Para estas pessoas a mentira desapareceria como mágica ao silenciarmos os mentirosos, sem perceber que isso apenas garante a eles ainda mais força. Para um verdadeiro democrata, a liberdade de expressão não pode ter freios nem limites, pois sabe que a mentira só pode ser exterminada com o contraponto da verdade. Por que haveria de ser a censura solução para os enganos e a falsidade? Silenciar vozes que atrapalhavam seu projeto político é exatamente o que os militares faziam após o golpe de 64. Eu mesmo já fui banido dezenas de vezes, e sou repreendido todos os dias por denunciar os crimes sionistas na Palestina. Ou seja: a censura atinge preferencialmente aqueles que se contrapõem às normas sociais burguesas e os interesses do capitalismo global. A solução aventada há alguns anos foi a criação de agências de “checagem”, mas restava a pergunta: quem controla os controladores? O que se viu é que estas agências se tornaram braços do poder burguês, órgãos do Estado Americano e instituições financiadas por bilionários como Soros e Gates, e o resultado só poderia ser o travamento do discurso público. Neste campo, os identitários – adoradores da censura e do silenciamento – são os que estão mais furiosos, porque não conseguem verdades suficientes para contrapor as mentiras que julgam encontrar nas redes sociais. Porém, inobstante as boas intenções que algumas pessoas possam ter, a política do cancelamento e o silêncio imposto a quem expõe divergências é uma prática fascista, de quem tem medo de enfrentar a falsidade apresentando o contraditório da verdade.

Vocês não eram nascidos, mas nos anos 70 e 80 eu saí às ruas contra a censura e levei borracha no lombo por agir assim. Por esta razão dói minha alma ver a esquerda aplaudindo essa aberração. Entendam: não existe censura do bem!! Não existem silenciamentos e cancelamentos bem intencionados; o que estas ações escondem é o medo do debate, o pavor de ver ideias que não gostamos sendo espalhadas e conquistando mentes e corações.

“Ahhh, mas isso vai espalhar ideias fascistas; eles vão tomar conta das redes sociais”. Provavelmente, mas e daí? Precisamos criar um sistema de combate a este discurso através da apresentação de uma perspectiva justa da realidade, e não calando a boca dos opositores. Também é obvio que Mark Zuckerberg não tomou essa atitude por amor à verdade, mas por razões claramente econômicas. As redes sociais estavam se tornando insuportáveis. As milícias identitárias, que querem calar e processar a todos, tomaram conta das esquerdas, impedindo um debate aberto e franco. A patrulha do “politicamente correto” produziu uma geração de hipócritas que falam “é o que acho, mas você sabe que não posso dizer isso publicamente”. O Facebook estava perdendo clientes pelo nível absurdo de censura, e pela checagem fraudulenta que fazia.

A resposta só pode ser pela liberdade irrestrita para pensar e dizer, e não pela perspectiva fascista de censurar, calar e amordaçar os inconvenientes. Por acaso acham mesmo que censurar comentários estúpidos sobre sujeitos trans produz(iu) algum tipo de efeito positivo? Acham que censurar e prender os comunistas produziu o extermínio do ideário comunista? Por acaso testemunhamos o fim do comunismo ou, pelo contrário, ele saiu o fortalecido? Acreditam que censurar os fascistas vai gerar algum benefício? Os nazistas são proibidos na Alemanha e são o grupo que mais cresce!! Nazismo é proibido no Brasil e existem mais de 500 células nazistas à luz do dia. Impedir que as fascistas digam tolices sobre pessoas trans não faz – e nunca fez – nenhuma diferença. E se as razões do Zuckerberg e do Elon Musk são oportunistas e fascistas, nisso não há nenhuma novidade, mas – repito – a solução só poderá ser através do combate sistemático à perspectiva de mundo que eles defendem, e não apoiando a censura. Além disso, a censura no Facebook ataca naturalmente a esquerda, e apenas pontualmente a direita, até porque as agências de checagem são totalmente controladas pela burguesia.

Esse tipo de ingenuidade não tem mais sentido, e lamento que a esquerda embarque nesse erro de forma tão fácil. Aqueles que apoiam soluções de censura, cancelamento e silenciamento sobre opiniões a respeito de temas delicados estão sentados ao lado dos acusadores de Galileu Galilei em seu famoso julgamento em 1633. Aqueles que pagam o preço de escutar o que não querem por um debate franco e aberto em nome do progresso das ideias estarão ao lado do nobre cientista polonês, mesmo sabendo que isso poderá lhes custar prestígio e quiçá a própria vida.

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Arte e tempo

Meu pai costumava dizer “As virtudes são do sujeito e sua genialidade será eterna; já os defeitos são de seu tempo e lá devem ficar”. Com isso procurava relativizar as falhas e defeitos encontrados nas biografias de gênios da literatura, música, artes plásticas e até da ciência. “É injusto, continuava ele, analisar o sujeito fora do seu tempo, alijado de seu contexto, sem a pressão do seu campo simbólico, no tempo e no espaço. Sem levar em conta seu tempo nosso julgamento sucumbe ao anacronismo”.

Esta semana surgiram acusações ao pintor Paul Gauguin pela prática de relações sexuais com menores de idade no Taiti, onde passou seus últimos anos de vida. A discussão gira em torno dos quadros pelos quais Gauguin é mais conhecido, produzidos em seus últimos anos de vida, quando retratou meninas taitianas que serviram não apenas como modelos, mas parceiras em suas aventuras eróticas. Por esta parte obscura de sua vida mereceria ser, na linguagem contemporânea, ser cancelado.

Eu digo que se formos cancelar o pecador – e não o pecado – não sobrará uma obra sequer da vasta produção humana que não sofra cancelamento, seja ela em tela, página ou melodia. Nada restará de pé para que nossa civilização possa degustar sem culpa. Quem ai, dotado de genialidade criativa, estaria isento de ser seduzido pelos próprios monstros internos? Quem, diante da fama, fortuna e o poder que delas deriva, não seria chamado a se lambuzar nos sabores mundanos? Quem pode julgar o sujeito – não o delito – que, podendo errar, errou?

Por essa razão, eu me oponho de forma veemente a todo tipo de julgamento moral de artistas e pensadores. Nada é mais danoso à cultura contemporânea do que a patrulha moralista, em especial a identitária. Nada é mais embutrecedor do que apagar o passado por julgamentos morais do presente. A tentativa de remediar estas falhas, colocando embrulhos de celofane nos malfeitos é ainda pior; a solução encontrada por alguns de mudar as obras, fazendo “correções” para amenizar “erros” é absurda e mutilatória. “Corrigir” Heidegger, Monteiro Lobato, Picasso ou Wagner é destruir a história que circunda seus trabalhos, o que lhes veste de significados e relevâncias.

Deixem os termos racistas, antissemitas, misóginos e homofóbicos intactos e discutam esses fatos abertamente, como uma janela aberta no tempo para enxergar nossos valores mutantes no passado, assim como os erros de lá que desejamos combater aqui. Apagar da história as obras de gênios controversos é um crime de lesa-arte. Ao fim e ao cabo acabamos percebendo que a avaliação moral do artista serve sempre a interesses políticos, e libertar-se desse tipo de constrição é sempre um ato de justiça à própria arte, que será livre ou não será arte.

A partir de uma conversa com Oscar

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Os Homens e o Cuidado

A primeira grande briga que tive contra o identitarismo na pauta da humanização do nascimento foi quando afirmei que os homens também poderiam atuar como doulas, desde que a gestante assim o quisesse e aceitasse. Por causa dessa simples afirmação, movida por um desejo de equilíbrio entre os gêneros, fui atacado e cancelado sem dó, acusado de “machismo”. Justificavam este cancelamento afirmando que os “homens estavam invadindo um espaço feminino”. Respondi explicando que nos últimos 50 anos tudo o que vi na sociedade foram mulheres invadindo “espaços masculinos” em todas as áreas da atividade humana, desde médicas até juízas de futebol, passando por pilotos de avião e presidentes da República – o que deveria ser saudado por todos. Não seria justo que os homens também pudessem se aventurar na seara do cuidado? A luta contra o essencialismo não deveria ser uma via de duas mãos – ou uma faca de dois “legumes”?

De nada adiantou minha resposta; fui xingado, ofendido e cancelado. “Como ousa?“, diziam algumas mais furiosas. Pois se há algo que me constitui é a ousadia. Não tenho problema algum em regar inimizades em nome da defesa de ideias honestas e sinceras – mesmo correndo o risco de estar errado. Não levo estas coisas para o terreno pessoal, mas já passados quase 20 anos ainda acho que minha proposta continua correta. A tese contrária à minha era de que “as mulheres foram desconsideradas por milênios, impedidas de fazer tarefas reservadas aos homens. Não seria justo que as poucas coisas reservadas a elas – como o cuidado – fossem agora divididas com quem já controlava quase tudo”.

Respeitosamente discordei. Acredito na lei biológica que diz ser o hibridismo uma característica que fortalece as espécies. Da mesma forma, sociedades com diversidade de gênero nas tarefas comuns aprendem com a diferença de perspectivas que homens e mulheres podem oferecer. A paralaxe que se produz aumenta nossa capacidade de entendimento dos fenômenos e auxilia na resolução de dilemas. Uma mulher que atua em áreas outrora dominadas por homens oferece mais qualidade a este trabalho e ao mesmo tempo aprende com esta nova função. Homens que atuam no cuidado – de doentes, crianças, velhos, gestantes – também cooperam com uma maior diversidade de compreensão do trabalho enquanto se nutrem com o aprendizado que recebem em seu labor.

Quando estive na China havia uma propaganda na TV sobre novas iniciativas de saúde governo. Uma delas era a incorporação de obstetras do gênero masculino na atenção pública ao parto. Na propaganda um marido avançava para atacar um médico quando ele se aproximava para examinar sua mulher. Uma enfermeira intervém e explica que ele é um obstetra, e que não teria nada a temer. Para aquela cultura, a ideia de um homem examinando as partes íntimas de uma mulher era tão estranha quanto o era para o ocidente no final do século XIX. Hoje parece estranho e bizarro um “doulo”, mas talvez sejam barreiras que o tempo vai desfazer. Como saber?

Eu sou testemunha direta desse processo. Vivo ao lado de 5 netos que são constantemente cuidados pelos seus pais homens. As tarefas de cuidado na Comuna são divididas de forma muito equânime, excetuando-se a amamentação. Posso constatar a qualidade de amor paterno que os meus netos recebem e o quanto isso é fundamental na formação ética que recebem. Para um velho, como eu, que foi criado em uma divisão sacrossanta de tarefas domésticas esta foi uma grande revelação. Ver a pequena revolução do cuidado foi um grande presente que a vida me deu. Por outro lado, existem resistências muito fortes, como esta da qual fui vítima. A psicanalista Vera Iaconelli, em um recente artigo, fala da dificuldade de garantir aos homens esta posição:

“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.(…) Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”

Para que a sociedade esteja legitimamente no caminho da equidade é fundamental reconhecer esta angústia feminina – e por vezes um rechaço explícito – em relação ao cuidado feito pelos homens com a mesma seriedade que entendemos a relutância destes em assumir a posição de cuidadores, onde será necessário muito mais do que habilidades técnicas e força física – que por milênios foram exaltadas como superiores – mas o desenvolvimento de novas aptidões como paciência, delicadeza, afeto, docilidade, compreensão dos limites, carinho e amor incondicional.

Sim, homens podem ser doulas; mais ainda: podem exercer as funções de cuidado com seus filhos, netos e avós; com os doentes, os acamados, os bebês e todo aquele que necessite da “fraternidade instrumentalizada”. Por mais que a ciência tenha adentrado no âmago das células ela jamais foi capaz de afirmar que o gene do amor se situa apenas no cromossomo X.

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Cancelado

A primeira vez que testemunhei esse fenômeno foi há uns 10 anos ao resolver comprar um produto pela Internet quando estava nos Estados Unidos. Recebi o produto pelo correio alguns poucos dias depois da compra e ele veio com um papel onde se lia algo como: “Se o produto tiver qualquer avaria avise-nos antes de fazer sua avaliação no site. Faremos o possível para resolver a questão e estaremos à disposição para ouvir sua reclamação. Não nos avalie negativamente antes de nos dar a chance de resolver seu problema”.

Percebi, pela primeira vez, o quanto valorizavam minha opinião, minha avaliação do produto e o que achei do atendimento. Eles preferiam mandar um produto novo – sem custos!! – do que lidar com uma avaliação negativa na seção de “comentários” da página. Ficou óbvio que uma avaliação muito negativa deveria afastar centenas de potenciais compradores. Imagine olhar os comentários antes de decidir comprar e ler: “Não compre. Quebrou em uma semana e não devolveram meu dinheiro”. Não há dúvida que manter o comprador satisfeito é a política mais segura. Para alguém que passou a vida inteira sem nenhuma alternativa depois de fazer uma compra, esse empoderamento súbito da minha perspectiva como comprador pareceu um milagre, o que foi possível com a popularização das compras on line. Pois naquele singelo bilhete eu estava, em verdade, vendo as primeiras manifestações de um fenômeno tão significativo quanto novo: o surgimento do sujeito solitário que expressa sua opinião sobre produtos publicamente, mas agora com inédita relevância.

Não há dúvida que o medo do comerciante gerou uma necessidade de melhorar os produtos e os serviços. Já fiz reclamações em compras da Amazon por envio errado de produtos cujo conserto por parte dos vendedores custou mais do que o próprio produto que comprei. Ficou evidente que uma avaliação mordaz e negativa poderia causar muito estrago. E não se trata de criticar a força que a ponta consumidora acabou ganhando, longe disso. Porém, outro fato se associou a este “novo poder” garantido ao comprador: não apenas os produtos passaram a ser avaliados, mas também as pessoas. A partir de então, as figuras públicas passaram a ser vistas e tratadas como produtos que consumimos nas redes sociais. Caso elas não cumprissem nossas expectativas, poderíamos usar da nova ferramenta social chamada “cancelamento“. A partir deste novo modelo de interação social, passamos a cancelar gente “à rodo”, pelas mais diferentes razões, mas em especial pelas escolhas políticas, as posturas morais, o comportamento, as manifestações públicas, etc. “Fez o L?”, cancelado. “Votou no Bozo?” cancelado. “Separou da mulher?”, você não vale mais nada. “Talaricou?”, você está fora. “Foi acusado de algo horrendo, como abuso sexual?” então você será destruído impiedosamente, sem direito a perdão, mesmo que no futuro se prove que era tudo mentira.

Nesse novo modelo, o trabalho das pessoas, sejam elas jogadores de futebol, cantores, pensadores, jornalistas, médicos, etc. passou a ser secundário à persona pública do sujeito. O que você faz é menos relevante do que o que parece ser. Hoje inclusive existem “gerentes de imagem”, funcionários que controlam tudo o que o sujeito pode dizer, de que lado deve se postar, se deve apoiar este ou aquele candidato, o que deve dizer sobre a Palestina, a Ucrânia, o aborto, as mulheres, o machismo, os gays, os negros, as trans, o sexo, etc. Isso determinou que hoje em dia nenhuma opinião é real e verdadeira; todas são, determinadas por aqueles que controlam a imagem do “influencer” e são moduladas pelo interesse dos fãs – que em última análise controlam como seus ídolos devem ser.

Hoje o cancelamento é uma adaga que balança sobre nossas cabeças. A mera suspeita de um malfeito não confirmado causou o cancelamento de PC Siqueira, sua depressão e posterior morte. A menina, sobre quem se criou uma série de mentiras sobre o namoro com um comediante, também não suportou a pressão das redes. Outros fizeram piadas que ofenderam identidades (ou identitários) e foram imediatamente cancelados. Calados, amordaçados, enviados para a “Zona Fantasma”, desapareceram ou foram destruídos, mandados para onde são jogados aqueles cuja opinião não podemos tolerar. Ninguém está livre de ser julgado e condenado pelo tribunal da redes, basta ter uma opinião contra-hegemônica.

Sequer estou me referindo à ação autoritária da justiça, que deseja “regular” as redes sociais para evitar “abusos”. Sobre isso o caso Monark (youtuber cancelado por dizer que era a favor da criação de qualquer partido, até mesmo o nazista) é didático ao nos mostra como o conceito de “abuso” pode ser absolutamente subjetivo e também servir oportunisticamente aos interesses dos poderosos. A censura nos ameaça tanto de maneira formal quanto na informalidade das redes. Não…. aqui falo apenas aqui do sujeito que, na condição de relativo anonimato e segurando um celular nas mãos, decreta a destruição de um outro baseado em antipatia, discordância ou mera implicância. Esse sujeito, empoderado como consumidor, é capaz de gerar pequenas – e até grandes – tragédias.

Como diria o filósofo contemporâneo Roger Jones “…as redes sociais nos jogaram ao mesmo tempo na modernidade e na idade média. Basta abrir o “x”, ex-Twitter, e veremos que todo dia há uma nova vítima jogada à fogueira; é assim que funciona. É o mercado da punição, algo que está enriquecendo muita gente, porque funciona como um negócio. Anotem: semana que vem surgirá um novo “monstro” para ser empalado publicamente, porque esse é o combustível, a força que nos impele a ligar o celular e gozar com o novo linchamento. As redes sociais vivem de pecados alheios; esse é o grande barato e o grande lucro desse negócio”.

E você? Já cancelou alguém hoje?

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Patrulheiros

Na foto um policial multa uma banhista em uma praia da Itália em 1957.

Há algum tempo li nas redes sociais os ataques a um músico, um garoto de 20 anos, negro e de periferia, que ganhava a vida compondo músicas de funk. Depois que ficou famoso, e passou a ter notoriedade e dinheiro, descobriram em seu twitter várias manifestações questionáveis.

Eram piadas inocentes, apesar de serem claramente homofóbicas e misóginas, cheias de deboche e humor adolescente. Por causa disso, ele passou a ser duramente atacado pelos identitários e suas patrulhas morais de cancelamento. Continuei a leitura e li que as manifestações eram antigas, feitas ao redor de 6 anos antes da data do cancelamento.

Ou seja, ele escreveu os posts (brincadeiras de mau gosto) quando não tinha mais que 14 anos de idade, o que explicava o tipo de humor infantil utilizado. Fiquei lembrando das coisas tolas e até desrespeitosas (para os padrões atuais) que eu dizia na infância e as piadas que eu contava aos 14 anos de idade e me dei conta do quão violentas e brutais são essas patrulhas.

Imediatamente me veio à mente as patrulhas de costumes do Irã e as polícias que multavam mulheres pela ousadia dos seus biquínis em meados dos anos 50 do século passado. Qual das ofensas é mais perigosa: a nudez do corpo ou aquela da alma?

Punir um garoto recém entrando na vida adulta por piadas bobas que contou durante a puberdade é a suprema injustiça. Mais ainda… quantas dessas pessoas de dedos apontados também não foram preconceituosos nessa fase da vida?

Quando é que vamos superar este tipo de controle moralista, reacionário e religioso sobre o comportamento? Não existe nada de progressista nesse retrocesso das relações, e muito menos humanista e de esquerda.

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Cancelamento

A tragédia de eleger ídolos é o fato inexorável de que eles sempre vão trair esse amor, mais cedo oi mais tarde. Cancelar suas próprias músicas em nome de um movimento “woke” absurdo, autoritário, reacionário e cafona exatamente agora, quando essa moda está em plena decadência, é uma tristeza e uma decepção.

Mas será que ele vai cancelar o resto? Quer apostar como é fácil achar machismo em TODAS as suas músicas, dependendo da paranoia de quem analisa? Pois agora vou cantar “Com açúcar, com afeto” com mais prazer ainda, e vou fazer isso como uma profissão de fé na liberdade da arte e um libelo contra o obscurantismo autoritário da geração “woke”.

Anotem aí: é por esse tipo de censura sobre obras artísticas – ou seu nome atual, “cancelamento” – que a direita ganha força. É uma TRAGÉDIA ver gente da esquerda aplaudindo que músicas, quadros, livros, artigos e debates sejam cancelados, interrompidos e/ou proibidos.

O desastre que a “geração floco de neve” produz no pensamento de esquerda é imensurável. Oferecer a grupos específicos o direito de apagar a memória, cancelar a história e desvirtuar os acontecimentos do passado é digno dos piores pesadelos orwelianos. Quando vejo críticas ao autoritarismo e à censura que estes grupos apregoam é com tristeza que percebo que elas partem da direita, e as vezes até de seus grupos mais extremistas.

Com essa esquerda identitária e autoritária que temos, quem precisa de direita?

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Sobre mandatos coletivos

A detentora desse mandato aparentemente deu um gigantesco tiro no pé. Anotem. Esta atitude pode pavimentar o caminho para a extinção dessa modalidade. Afinal, quem pode aceitar “puxar votos” para uma candidatura coletiva correndo o risco de ser expulsa posteriormente por uma canetada causada por discordâncias de ênfase? Quem se arriscaria a colocar sua representatividade fora por meras antipatias ou brigas intestinas?

Um mandato coletivo tem outra dinâmica, outra ideia, outra proposta. A pessoa defenestrada pelo “Mandata” era co-deputada, e não assessora!!! Essa é a imagem vendida para todos na eleição. Nunca foi dito que aquela que encabeçava a candidatura era a deputada e as outras suas auxiliares, mas que se tratava de um MANDATO COLETIVO!!! Por isso é que muitas pessoas votaram nessa candidatura: para dar poder à cada uma das participantes e às suas propostas – assim como para as outras.

Esse é o ponto central, o que que me fez pensar ainda mais sobre o tema: o cancelamento de uma co-deputada cancela ao mesmo tempo um número enorme de MÃES que se viam representadas pelo seu discurso e pela sua luta contra a violência obstétrica. Quem vai solucionar essa falta e esse buraco representativo?

Repito a pergunta: quem vai aceitar, a partir de agora, a posição de mero “puxador de votos” de uma candidatura pela qual não terá NENHUMA ingerência e de onde poderá ser demitida sumariamente pela detentora do cargo, sem precisar dar qualquer explicação? Quem votará em uma co-deputada que defende suas ideias ou sua identidade sabendo que o seu voto pode ser jogado no lixo por uma canetada autoritária?

Por outro lado, é saudável ver um projeto autoritário ser exposto publicamente.

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Fracassos

“Somos o que resta de uma montanha de escombros”, já dizia meu amigo Max. Os fracassos, mais do que as conquistas, são o que nos moldam e aperfeiçoam. Esta semana tivemos a vitória esmagadora de alguém que representa o atraso, o machismo, a corrupção e a perversão na política para ser o chefe do legislativo federal, numa reprise macabra da eleição de Eduardo Cunha. Tivemos a queda das máscaras lacradoras no Big Brother e o fim do sonho autoritário e farsesco da Lava Jato.

Os ídolos com pés de barro, Moro e Dalanhol, caíram das alturas: um queria ser presidente, o outro desejava uma estátua. Ambos terão que se contentar com o esquecimento. Também vimos um partido à esquerda “cancelar” uma co-deputada de um mandato coletivo – sem direito a defesa – por discordar de um texto publicado nas mídias sociais, na mais escandalosa demonstração de amadorismo político e falta de preparo para as discordâncias naturais e o contraditório.

Se não soubermos aprender com estes fatos então teremos perdido uma oportunidade histórica de fazer a necessária depuração nos quadros da esquerda.

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Cultura do cancelamento

A cultura do cancelamento, que sacrifica pessoas culpadas ou inocentes, não produz uma sociedade mais moral ou ética, mas fomenta uma cultura de falsidades e mentiras.

Um caso típico é o cancelamento de um famoso diretor americano por grupos feministas com a falsa alegação de que, há 20 anos, teria abusado sexualmente de sua filha. Todas as investigações apontaram para a sua inocência, incluindo o depoimento do seu filho que estava presente na cena em questão. Nunca houve qualquer evidência que comprovasse este crime, e nunca ocorreu nenhum fato semelhante em sua biografia, seja antes ou depois do fato. Investigações independentes da polícia, psicólogos, assistentes sociais foram unânimes: o depoimento da menina é falso e foi ensaiado. Todavia, isso não impediu uma perseguição implacável que dura até hoje.

Entretanto, os atores e atrizes de Hollywood sentem tanto pânico de cancelamento por parte dos “liberais” que quase ninguém ousa enfrentar essa gigantesca patrulha midiática, formada de pessoas ávidas em destroçar carreiras e reputações e prontas a cancelar o futuro desses artistas, políticos, escritores e figuras públicas. E pensar que a “Fatwa” decretada contra Salman Rushdie já foi tratada pelo Ocidente como “barbarismo”, mas hoje vemos que não passa de um cancelamento levado às últimas consequências.

Existe uma prepotência da voz diminuta, o súbito esplendor do “popular”, o sujeito sem brilho que descobre o poder da internet para atacar os ícones da cultura, que tanto ama quanto odeia, por se sentir oprimido pelo seu brilho. Moldados à sua semelhança, os artistas morrem de medo de desagradar a imensa plateia que os sustenta. É por esta razão que os grandes formadores de opinião tem posturas “chapadas” em relação aos temas espinhosos. Ou, muitas vezes, unem-se à turba furiosa acriticamente, apenas para não arriscar a perda de seus benefícios.

Se muitas mulheres preferem acreditar que determinado personagem é machista é melhor concordar do que ser vítima de um ataque massivo por parte desse grupo. O mesmo com a homofobia ou o racismo. Quem ousa denunciar abusos dos liberais? Sim, só a direita.

O resultado é uma cultura de falsidades, não uma sociedade justa ou equilibrada. Um modelo que joga para o extremo e rotula dissidências de forma peremptória e inexorável produz mártires ou covardes, mas não estimula o debate livre ou a oxigenação de ideias. Basta uma simples discordância com os cânones dessas áreas para lhe condenar (eternamente!!) como racista, homofóbico, machista ou fascista, bastando para isso discordâncias simples em detalhes colaterais.

Prisioneiros da opinião pública, pouco resta de sinceridade no que se escreve e se diz. Amordaçados pelo politicamente correto ninguém ousa arriscar, pois que um passo em falso pode determinar o cancelamento total e a ruína. O pior é reconhecer que as vozes mais firmes contra o império da hipocrisia estão à direita, pois que a esquerda facilmente sucumbiu ao discurso dos identitários e às falas politicamente corretas.

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