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Chinelões*

Nesse assunto eu até tenho lugar de fala: fui oficial das forças armadas durante 6 longos anos, logo após me formar na universidade. Desta forma, conheci por dentro as organizações militares e as pessoas que as compõem durante os anos em que trabalhei no HACO. Tive uma razoável oportunidade de ver como funciona o mundo da caserna, como se relacionam, como se expressam, como pensam e como agem. Portanto, nada do que apareça do comportamento de oficiais envolvidos nas questões da política me é estranho. Quando escutei os áudios gravados por membros de altas patentes planejando explicitamente um golpe contra a democracia, sem qualquer dúvida quanto às suas intenções golpistas, que inclusive incluía a execução de membros do judiciário e o próprio presidente, três coisas me chamaram à atenção:

1- O linguajar chulo, rasteiro, recheado de palavrões, caracteristico dos ambientes onde só circulam homens, onde a boa educação é coisa e maricas, a grosseria é a regra, a autoridade está acima da razão e as boas maneiras são sinal de fraqueza. O sotaque destes áudios soa de forma muito familiar para mim; parece algo adquirido nas escolas militares, pois é muito semelhante a maneira como estes “soldados graduados” conversam entre si.

2- Um tipo de arrogância e prepotência que é característico dos militares de altas patentes. Tomam decisões como se houvessem recebido alguma delegação divina para agir em nome do povo. Falam de “liberdade”, “patriotismo”, “amor ao Brasil” como se fossem os guardiões desses valores, podendo agir a despeito da vontade expressa do país. Para eles, as eleições são sempre roubadas, mas apenas quando os candidatos da direita são derrotados. Também é evidente uma postura violenta, assassina e fora da lei. Para eles, matar Lula, Alkmin e ministros do supremo seria apenas uma fase necessária do projeto. “Aguardamos sua ordem, presidente”.

3- O caráter reacionário. São sabujos, covardes, garotos de recado do exército americano. Olham para a matriz como se houvesse uma obrigação tácita de obedecer às suas determinações. Falsos patriotas, misturam palavras de ordem de caráter ufanista com postura genuflexa diante dos interesses corporativos e da ordem politica conservadora. Em todas as oportunidades defendem a ordem burguesa, sem pestanejar. São, em sua grande maioria, atrelados ao imperialismo, fazem cursos nos Estados Unidos, estão conectados pelo uso de armas, tecnologias e pela ideologia imperialista. Atuam como cães de guarda do capitalistas americanos.

As falas destes oficiais produziram um “flashback”, me fazendo recordar tais personagens da minha juventude. Infelizmente, a imagem que eles mostram agora – no plano de golpe e assassinato – parecem estar em perfeita sintonia com o que eu guardo na memória: o mesmo pendor golpista, o mesmo linguajar chulo, bagaceiro e de baixo nível, a mesma forma grosseira e inculta de tratar das questões políticas e o desprezo pela democracia. Isso me faz pensar que é urgente uma reforma nessa fábrica de golpistas incultos subservientes ao imperialismo que são as escolas militares. Também acho necessário a completa reformulação das Forças Armadas, para que se tornem verdadeiramente fiéis e leais ao poder civil, sem as mamatas e os vícios que recebem desde o seu surgimento, com os salários astronômicos, salários abusivos de desembargadores da justiça militar, as pensões vergonhosas para filhas “solteiras”, os cursos nos Estados Unidos, a justiça militar corporativista e as aposentadorias cheias de irregularidades. Reformar o generalato é uma emergência nacional. Se nada for feito, esse tipo de militar entreguista estará de prontidão para a próxima possibilidade de golpe. Que, podem apostar, será logo ali, ao dobrar a esquina…

* Chinelão é uma expressão do Rio Grande do Sul e que significa equivale a dizer que o insultado é bagaceiro (sujeito de baixa moral), pobre, mal arrumado, descomposto, mal educado, tudo isso junto. Também se usa, mais contemporaneamente, dizer chinelo, no mesmo sentido. Usa-se a forma feminina, também, chinelona.

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Proposta demagógica

Mais uma vez: retirar recusos do fundo partidário é uma posição reacionária. Descapitalizar as eleições trata a escolha popular como algo menor, como se financiar a democracia fosse algo desprezível e de menor importância. Continuo absolutamente contrário a esta proposta, pelas razões que já expus. Essa proposição fortalece os partidos da direita, os conservadores e obolsonarismo. Equivaleria a usar o dinheiro dos sindicatos para debelar a crise, causando um enfraquecimento das instituições de proteção ao trabalhador. Não faz sentido algum abrir mão de avanços da democracia – como é o fundo partidário – através de propostas populistas para enfrentar a crise. O fundo partidário oferece paridade de armas aos partidos!!! Não se justifica enfraquecer a democracia em nome de uma crise; existem muitas outras formas de capitalizar o governo sem prejudicar as eleições e os partidos de esquerda. Esses fundos foram criados pra dar mais transparência e equidade para as eleições.

Quem sabe tiramos recursos da compra de armas de Israel ou deixamos de financiar a policia assassina? Quem sabe finalmente taxamos os bilionários? Não, a proposta é fazer valer o poder econômico da direita e da burguesia, através do estímulo ao financiamento próprio das campanhas. Quem seria eleito sem dinheiro público? Ora… os empresários, os políticos já eleitos, os milionários, s elite financeira, etc, e não o trabalhador simples, o pedreiro que mora na Lomba do Pinheiro e quer representar sua comunidade ou o funcionario público que deseja uma valorização para o servidor do Estado. Se essa proposta vier a vingar, apenas os ricos terão dinheiro suficiente para financiar suas campanhas; os pobres não terão condições sequer para entregar um santinho. “Proponho a gente cancelar o 13º salário de todos. Não seria uma coisa fixa, apenas um direcionamento pra essa causa, para essa necessidade. Como uma atitude dessas poderia enfraquecer a democracia? Por favor eu queria mesmo entender“.

Ora, estou sendo irônico; não é da população pobre ou da democracia que devemos tirar recursos!!! Essa proposta enfraquece a política, mas só através da política poderemos resolver a crise, até porque foi ela mesma – e as nossas péssimas escolhas – quem criou todos os males que agora enfrentamos. 

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Birthright

Lembrei hoje de um colega da escola médica porque na época da faculdade ele fez a conhecida viagem de “intercâmbio” de jovens para Israel – chamada de Taglit, ou Birthright Israel – que muitos, se não todos, judeus de classe média faziam ainda quando bem jovens. Quando voltou estava transformado, com incontido patriotismo por Israel. Perguntei a ele, por curiosidade, qual sua opinião sobre a região, o país, as guerras, a construção da nação e sua experiência com o povo de lá. Ele me descreveu detalhadamente sua perspectiva sobre o “conflito” na Palestina, trazendo uma visão totalmente enviesada, que é exatamente para o que servem estas viagens com a juventude judaica: produzir uma lavagem cerebral profunda, para introduzi-los na narrativa sionista.

Na sua explicação escutei todos os clichés que me acostumei a ouvir a partir de então sobre “um povo sem terra para uma terra sem povo”, “a guerra dos bárbaros árabes contra os bravos judeus”, “os heróis da independência”, “a villa in the jungle”, “a única democracia entre ditaduras sangrentas” etc. Outra coisa que me chamou a atenção foi sua visão sobre “Sabra e Chatila“. Ele estava em Israel exatamente na época da invasão e ocupação do sul do Líbano, quando ocorreu o massacre do campo de refugiados palestinos por milícias cristãs libanesas. Na madrugada do dia 15 de setembro de 1982, o Exército de Israel ocupou Beirute Ocidental, mesmo depois de se comprometer a não fazê-lo, tendo como contrapartida a saída da OLP para a Tunísia. “Tão logo a ocupação foi concluída, as tropas israelenses – comandadas por Ariel Sharon – cercaram os campos de refugiados de Sabra e Chatila. No dia 16 de setembro, o alto comando israelense autorizou às tropas falangistas cristãs, sedentas de sangue, a entrarem nesses dois campos de refugiados para realizar uma chacina contra a população civil que ali vivia, concretizando a vingança pela morte do ultradireitista Bachir Gemayel, presidente do Líbano ocupado”. (Breno Altman, vide mais aqui). Um filme muito interessante sobre este massacre patrocinado por Israel (entre tantas outras atrocidades) é a animação “Valsa para Bashir“. 

Tão logo voltou ao Brasil, sua explicação sobre o massacre que ocorreu tão próximo de si, está em plena sintonia com as narrativas sionistas que percorrem o campo simbólico até hoje. “Permitimos que dois inimigos nossos – libaneses e palestinos – se matassem mutuamente. Onde está a falha ética? Eles que se entendam”, explicou-me, de forma altiva. Na época eu nada sabia sobre a causa Palestina, o Nakba, e a resistência da OLP. Também acreditava que Yasser Arafat era um “terrorista”, que os árabes eram selvagens e que os sionistas desejavam a paz; por ignorar tantos aspectos importantes do conflito, lembro com vergonha de ter concordado com vários dos seus argumentos. Afinal, como poderia contestar, quando toda informação sobre a região na época era filtrada por uma imprensa claramente imperialista e favorável ao colonialismo?

Hoje resolvi olhar no seu Facebook para saber o que ele pensava sobre o massacre de agora, os 30 mil palestinos mortos, as crianças amputadas, o horror do genocídio contra a população civil, a limpeza étnica e, sem surpresa, percebi que ele se mantém aferrado ao preconceito sionista, usando palavras de ordem que vão desde “os palestinos não existem”, “vamos destruir o Hamas”, “eles morrem porque usam crianças como escudos humanos” e até “é imoral comparar o holocausto com essa guerra”. E, claro… não poderiam faltar os ataques a Chomsky, todos os judeus que apoiam a Palestina e os indefectíveis ataques ao presidente Lula e à esquerda, pelo crime de se posicionarem contra o mais brutal massacre contra civis do século XXI. O Birthright cumpriu seu objetivo, e manteve um sujeito prisioneiro de uma ideologia racista e supremacista desde a juventude até quase a velhice. Não há como não reconhecer a potência de um modelo que engessa mentes utilizando o holocausto como fonte de inspiração e identidade.

Com tristeza percebi que a faculdade de Medicina não é capaz de criar profissionais capazes de um olhar crítico sobre a sociedade, prontos para enxergar esta profissão de uma forma mais abrangente e complexa do que as simples tarefas operacionais de classificar, diagnosticar doenças e aplicar sobre os pacientes as drogas que nos ensinaram a prescrever. Acabamos sendo o sustentáculo de uma sociedade capitalista e patriarcal, sem perceber o quanto disso se reflete nas próprias doenças que tentamos tratar. Meus contemporâneos do tempo de escola médica, com raríssimas exceções – acreditem, ser de esquerda na Medicina é uma posição muito solitária – se tornaram conservadores em sua grande maioria, sendo alguns deles despudoradamente reacionários e fascistas, cuja paixão pela humanidade – a arte de curar e o questionamento das razões últimas que produzem as doenças – foi esquecida no banco de uma sala de aula da faculdade, durante uma classe de fisiologia, há muitas décadas.

Só me cabe agora lamentar…

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Embriões

No dia seguinte ao ataque das Torres Gêmeas, há exatos 22 anos, eu estava auxiliando uma cirurgia num hospital da cidade. Comentei com a minha colega cirurgiã que de tanto ver os Estados Unidos lançando bombas em outros países chegava a dar um certo prazer mórbido de vê-los sofrendo do mesmo mal que aplicavam no mundo inteiro. Por acaso houve consternação em solo americano quando um terço da população da Coreia Popular morreu nos escombros dos bombardeios americanos? Alguém teria se chocado nos Estados Unidos quando soube das ordens dadas aos combatentes para que destruíssem toda a infraestrutura – escolas, hospitais, rede elétrica, saneamento – coreana nos anos 50? E os vilarejos inteiros varridos pelas bombas de Napalm no Vietnã? E o que dizer sobre as 250 mil mortes instantâneas causadas pelas bombas nucleares lançadas sobre as populações civis em Hiroshima e Nagasaki? Quem lamentou por eles? Havia à época jornalistas chorando em frente às câmeras, tendo a fumaça das bombas como fundo de tela?

Imediatamente surgiu por detrás da cortina que separa os campos cirúrgicos a cabeça do anestesista. Intrometendo-se em nossa conversa, estava absolutamente irado. Em suas palavras me acusava de estimular o terrorismo, quando em verdade eu apenas denunciava o terrorismo de Estado praticado pelo imperialismo há décadas, desde o final da segunda guerra mundial – e até antes disso. Mas o anestesista não se conformou com minhas explicações. Passou a atacar o comunismo, a Coreia, depois a China e terminou (que surpresa!) em Cuba. Em poucos segundos completou o circuito dos reacionários, vociferando lugares-comuns, clichês anticomunistas e a favor da “liberdade”. Não faltou o famoso “quantos americanos se atiram ao mar em direção à Cuba” e nem a tradicional “socialismo nunca deu certo“.

Sim, apenas 12 anos nos separavam da queda do Muro de Berlim e muitos no ocidente nutriam a convicção do fim da história. O socialismo havia sido derrotado, o neoliberalismo de Reagan e Thatcher haveria de se espalhar pelo planeta, os Estados seriam encolhidos ao limite do desaparecimento e o capitalismo era a força vitoriosa no embate das ideias. Mas foi o ódio incontido – e até o desrespeito – do anestesista para com a minha particular perspectiva geopolítica que me fez perceber que havia ocorrido apenas um “round” na luta entre estas propostas, e não o fim do combate. Aquela agressividade grosseira era a emergência de um sentimento que eu ainda não havia presenciado com tanta intensidade, mas que ficou evidente quando, apenas dois anos depois, Lula venceu as eleições, levando um partido de trabalhadores ao poder pela primeira vez neste país. O sucesso de Lula, em especial em seu segundo mandato, fez esse sentimento crescer ainda mais, produzindo, a partir da derrota de Aécio para Dilma, o surgimento dessa força de extrema direita pró imperialista, conservadora, de caráter fascista e – como depois constatamos – até golpista.

Há 22 anos eu conheci o bolsonarismo embrionário, o protofascismo que tão facilmente se alastrou entre a pequena burguesia e em especial na classe médica, a mesma que organizou um “corredor polonês” para constranger os médicos cubanos que chegavam ao país e que fez coro ao “Fora Dilma” apoiando seu impeachment fraudulento. Ali era possível ver o que estava se gestando nas estranhas da classe média ressentida, um rancor silente produzido pelos avanços civilizatórios da esquerda, que culminariam nos golpes, na prisão arbitrária de Lula e na eleição de um sociopata para a presidência da República. Gostaria de ter percebido, já naquele instante, o que estava por vir. Pensei se tratar tão somente da compreensível indignação pelo ataque contra civis no coração dos Estados Unidos, mas em verdade sua ira descontrolada estava expondo a extrema direita fascista que se preparava para renascer depois da sua derrota na segunda guerra mundial. Ao meu lado, naquela cirurgia, estava o embrião de extremismo de direita que produziu a direita do ódio. Hoje eu lamento não ter decifrado essa charada quando a vi por primeira vez.

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Utopias e Zumbis

Muitos se assombram que Geraldo Vandré tenha se tornado um reacionário na maturidade depois de ter embalado nossos sonhos de justiça e equidade com a trilha sonora da nossa adolescência ao compor “Prá não dizer que não falei das flores”. Essa música era cantada em onze de cada dez acampamentos onde houvesse um violão e a luz flamejante das utopias. Sim, e também garotas…

Eu não me assombro. Vandré tinha 30 anos quando sobreveio a ditadura e 33 anos quando sua música ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção em 1968. Era, na minha perspectiva de terceira idade, um garoto. Quando penso nele lembro muito bem dos amigos de juventude que hoje são reacionários – e muitos deles fanáticos bolsonaristas – mas que na juventude compartilhavam comigo sonhos à esquerda. As idéias dessas pessoas mudaram, ou sua postura revolucionária era tão somente uma máscara a esconder seus medos e angústias?

Fico com a segunda opção; jamais foram de esquerda ou socialistas. Eram inconformados, amedrontados, queriam derrubar “isso tudo que está aí” (como repetiram à exaustão os bolsonaristas também), mas não se conectavam com as bases que estruturam o socialismo. Eram rebeldes, mas não tinham a dureza da luta pela sobrevivência no seu horizonte próximo.

Há uma velha piada da direita que diz que “quem não foi comunista na juventude não tem coração; quem continua da maturidade não tem cérebro”. A piada serve para tentar explicar esse fenômeno: por que tantos abandonam seus sonhos, deixam a esquerda, atiram-se nos braços do conservadorismo e assumem uma posição cínica, utilitarista e desprovida de paixão?

Eu tenho uma perspectiva freudiana sobre o tema. Primeiro, a piada do “coração e o cérebro” é apenas isso: um chiste, uma troça, um gracejo que tenta explicar um fato através do humor – e o humor, ao meu ver, é sagrado. Todavia, essa piada não tem nenhum fundamento na realidade, e expressa o oposto do que se pode constatar cotidianamente. Quanto mais se estuda o capitalismo e suas contradições mais percebemos que a solução é “socialismo ou barbárie“, já que as promessas da Revolução Burguesa jamais foram cumpridas, liberando a classe proletária da exploração e oferecendo dignidade aos trabalhadores. Portanto, a presença do cérebro pode ser mais facilmente constatada naqueles que abraçam posições à esquerda do espectro político, e nunca o contrário.

Aliás, é daí que vem o mito de que as universidades são uma ameaça ao sistema, por serem “antros de esquerdistas”, exatamente porque onde se dissemina a luz do conhecimento, em especial das ciências sociais, mais se descortinam as realidades perversas do liberalismo e do Imperialismo, produzindo naturalmente um contraponto ao modelo social e econômico corrente. Ou seja: o cérebro nos leva à esquerda, não à direita.

Entretanto, o que cede insidiosamente durante a vida é o furor sexual da adolescência e da juventude. Assim como nossas juntas, também nossas paixões enferrujam, tornam-se rígidas, perdem movimento e amplitude. Somos, com o tempo, cooptados pelo sistema e pela necessidade de sobreviver – ou pela garantia de ilusórios privilégios – o que nos dificulta sonhar pelo bem comum. Acabamos nos tornando velhos ranzinzas, que jogam a culpa das mazelas do mundo nos políticos, na corrupção, no “comunismo”, nos vagabundos, etc, esquecendo a importância que o sistema injusto e opressivo ocupa na produção da realidade cotidiana.

Vandré e muitos dos meus amigos de infância, ex-esquerdistas, sofrem da fadiga dos metais, do abandono das utopias, do cansaço do desejo, da fraqueza das convicções e da senilidade de seus ideais juvenis. Mesmo entendendo a maturação de nossas propostas, vejo na desistência dessas motivações uma espécie de “morte ainda em vida”, algo que deve ter inspirado os cineastas a fazer tantos filmes sobre zumbis. Todavia, as utopias jamais morrem; como ervas daninhas elas se recolhem e retornam em solos mais jovens, cujo viço da paixão aduba as propostas de mudança.

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Representatividade?

A bancada feminina do Congresso Nacional de 2018 conta com 77 mulheres, das quais 55 são bolsonaristas.

Faz alguns poucos dias um articulista de esquerda liberal reclamava da baixa representatividade feminina na Câmara de Deputados. Exaltava a importância das mulheres nos espaços públicos e afirmava de forma categórica que “se houvesse mais mulheres no poder legislativo a legalização do aborto já teria sido aprovada”.

Será mesmo?

Vejamos: temos 77 parlamentares mulheres em um universo de 513 representantes, onde 15% das vagas são ocupadas por quem representa mais de 52% da população brasileira. Por certo que é pouco, mas já houve avanços: em 1982 eram apenas 8 mulheres no congresso, e em 1998 somente 28. Hoje já se pode dizer que existe uma real “bancada feminina” no Congresso Nacional. Não há dúvida que as mulheres são uma categoria sub-representada e que isso certamente tem consequência nas políticas que são defendidas pela casa legislativa. Entretanto, seria possível dizer que se elas fossem 52% da casa (a real representatividade do gênero) seria muito diferente? Haveria uma facilidade para aprovar pautas que as feministas desejam ver aprovadas? Haveria progresso na equidade de gênero, distribuindo de forma igualitárias ganhos, deveres e direitos?

Creio que esta suposição não passa de uma fantasia, um desejo sem lastro na realidade, e apresento alguns dados que podem confirmar minha perspectiva. Não acredito ser possível desenhar uma linha reta ligando a representatividade de gênero com as políticas em favor da mulher. O mesmo em relação aos não-brancos, igualmente pouco representados. O que vemos hoje é que a maioria das parlamentares da bancada federal é conservadora e aliada de Bolsonaro. Surpresos? Pois não deveríamos estar, pois as mulheres no Brasil não tem uma postura muito diferente daquelas dos homens no que se refere à posição no espectro político. Das 77 deputadas eleitas em 2018 para a atual legislatura 55 votam com Bolsonaro. Ou seja, 71% das mulheres representantes no Congresso Nacional são conservadoras e não seria difícil perceber que sua posição frente ao aborto seria absolutamente contrária à legalização. Segundo a reportagem, a pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política (Gepô) da Universidade de São Paulo (USP), Hannah Maruci frisa que “mais da metade das mulheres eleitas estão à direita no espectro político -– ou seja, mais próximas à posição política do presidente”.

Podemos reclamar de Damares Alves, pela sua postura reacionária e dogmática no que diz respeito aos direitos femininos, mas é injusto dizer que ela não representa a média das mulheres brasileiras.

Contrariamente a outros países do mundo, a participação das mulheres na política representativa é extremamente baixa no Brasil. O país com a maior representatividade é Ruanda com surpreendentes 63% de parlamentares mulheres, país da África que foi devastado por uma guerra civil que matou mais de um milhão de habitantes nos anos 90 do século passado. Cuba em segundo lugar, tem uma representatividade que se aproxima do percentual de mulheres no país, e a maior presença de mulheres na esfera política é um dos claros e inquestionáveis resultados do processo revolucionário cubano. O Brasil ocupa a vergonhosa posição 145, entre a Índia e Gana.

Em um estudo realizado na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, com quase 1500 mulheres entre 15 e 49 anos de idade, apenas 30% delas se posicionaram positivamente à legalização irrestrita do aborto – como é o desejo de muitas feministas – o que está em sintonia com a representação de mulheres progressistas na atual composição das mulheres do poder legislativo.

É evidente que não se pode dizer que a representatividade é inútil e/ou supérflua. Muito pelo contrário: ter pessoas que sentem na pele a “dor e a delícia” de serem mulheres, negros, gays, trans, indígenas e outras minorias, representando os interesses de sua identidade, é um fato que devemos perseguir para uma sociedade mais plural e mais diversa. Todavia, o erro está em acreditar que a simples mudança no gênero, cor da pele ou orientação poderá fazer este trabalho. Não, ele só ocorre quando se acresce à representatividade um elemento essencial para as lutas populares: a consciência de classe.

“Representatividade sem consciência de classe é ciranda”. Pouco efeito teve para as lutas históricas da comunidade negra o acesso de Fernando Holiday à câmara de vereadores da maior cidade do país, muito menos a eleição de “Hélio (Bolsonaro) Lopes” pelo Rio de Janeiro. Igualmente não ocorreu nenhum progresso significativo com a entrada de Thammy Miranda na vereança de São Paulo – representando a comunidade trans – ou uma melhoria para a mulher trabalhadora e seus filhos com a eleição da “Comandante” Nádia em Porto Alegre, ambos filiados aos grupos políticos mais reacionários do atual cenário político-partidário brasileiro. As mulheres pouco ou nenhum avanço vão alcançar tendo Joyce Hasselmann, Carla Zambelli, Simone Tebet, Bia Kicis ou Major Fabiana a representá-las, pois que estas mulheres estão alinhadas aos setores financeiros, ao empresariado, ao agronegócio, aos rentistas e algumas (senão todas) aos mais abjetos interesses do imperialismo. Portanto, as conquistas para a franja mais desassistida da população só serão atendidas quando os representantes – de qualquer identidade – estiverem empoderados para encampar as lutas da população mais oprimida, o que inclui negros, mulheres, gays, trans, etc…

A representatividade vazia é como um corpo sem alma. Pode impressionar por pouco tempo e dar a impressão de que os cidadãos vão se reconhecer no parlamentar, mas a falta de sintonia e conteúdo com o tempo fará crescer a decepção pois os valores conservadores que estes parlamentares carregam ultrapassam as graves questões sociais pelas quais deveriam lutar.

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É possível mudar?

Eu não levo muita fé na pretensa mudança da essência profunda do sujeito. Estas são características basilares e formativas que não podem ser mudadas pelo simples confronto com a realidade. Acho difícil – quiçá impossível – as pessoas mudarem os princípios e o caráter; elas mudam tão somente os detalhes da forma, o embrulho que envolve sua estrutura de afetos. O caráter reacionário de Vargas Llhosa estará presente em sua obra, mas ele não precisa aparecer de forma explícita e sim camuflado, como os preconceitos de tanta gente que conhecemos. O racismo de Monteiro Lobato aparece em sua obra, apesar de ser um racismo diferente daquele que vemos hoje, há que contextualizar. Mas estava lá, desde sempre.

As vezes, na juventude, podemos deixar o brilho de algumas ideias mascararem nossa índole, mas na maturidade elas voltam. Reinaldo Azevedo foi trostskista na juventude, e muito reacionário que conheço costuma dizer “até já votei no PT” querendo nos fazer crer que “a maturidade os fez mudar”. Reinaldo nunca foi de esquerda e o voto no Lula de alguns conhecidos meus – se realmente ocorreu – foi por outras razões, e não por uma adesão ao ideário da esquerda.Essas experiências da juventude foram apenas arroubos para produzir outros efeitos até inconscientes (tipo contrariar um pai conservador ou impressionar uma garota de esquerda) mas jamais uma escolha definitiva e plenamente consciente. Confio mais na estabilidade dos valores do sujeito, algo que se forma do nascimento até o fim dos primeiros mil dias.

Deixo aqui uma pergunta: alguém acredita que o Lobão algum dia foi genuinamente de esquerda (para além das aparências e do discurso), maturou sua compreensão da realidade e hoje é esse reacionário icônico? Pois, pela minha tese, a fase “esquerdista” do Lobão era apenas um sintoma, uma forma de dar conta de elementos inconscientes que circunstancialmente o atormentavam.

Isso me lembra uma velha piada.

Um sujeito entra numa mecânica e pergunta ao sujeito deitado de costas embaixo de um fusca.

– O senhor tem leite?

O mecânico olha pro sujeito e diz secamente: “Sr, isso aqui é uma oficina. Vá incomodar outro!!!”

Ele dá de ombros e sai da oficina. Anda alguns metros e para na frente de uma borracharia. Chama o borracheiro e repete a pergunta:

– Por favor, o senhor tem leite?

O borracheiro olha o sujeito de cima a baixo e responde ainda confuso, de forma ríspida: “Isso aqui é uma borracharia. Temos pneus e câmaras. Só isso. Caia fora”.

O nosso herói segue seu caminho mais adiante até parar em uma loja de brinquedos. Abre a porta e faz mais uma vez a pergunta que resume sua busca:

– Por favor, a senhora por acaso teria leite?

A velha senhora, atendente da loja, educadamente explica que na loja não se vende leite e que ali só havia brinquedos, caso desejasse comprar algum ela teria prazer em lhe mostrar.

O senhor então dá de ombros, não diz uma palavra e sai da loja. Anda alguns metros e senta-se no meio fio da calçada. Coloca a mão no bolso do casaco e tira uma pequena garrafa de cachaça. Olha para o céu, suspira e exclama:

– Deus é testemunha do quanto eu tentei.

Para muitos de nós estas são buscas falsas. É o caso do cara que desiste da analise porque o analista é separado, ou chegou atrasado, ou não sorriu da sua piada. Na verdade, a confrontação com sua alienação era o real motivo da desistência. Somos pródigos em dar desculpas e produzir autoenganos, para satisfazer um superego cobrador.

Lobão bem que se esforçou para ser de esquerda, mas diante da primeira dificuldade da práxis política ele voltou para onde sempre esteve mais confortável.”

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Médicos

Não vejo possibilidade em curto prazo de uma modificação substancial no perfil dos médicos e da própria Medicina no Brasil. Minha descrença é fácil de entender, basta ver de onde vem os alunos da medicina. Eles são egressos das melhores escolas, dos melhores cursinhos preparatórios, são filhos das famílias que podem bancar esses anos de estudo, tem sobre o corpo a “melhor” cor de pele e as famílias possuem o melhor saldo bancário. É possível dizer o mesmo do judiciário e do Ministério Público, onde verdadeiros feudos dominam o cenário da justiça. A esquerda é francamente minoritária nesses cursos superiores e certamente nas corporações. E essa minoria é muito pequena MESMO.

Sou capaz de contar nos dedos da mão os colegas claramente de esquerda que conviveram comigo durante anos de percurso pela medicina. A imensa maioria tem discurso e atitude meritocrática, acreditam piamente que estão cursando estes cursos apenas pelo seu esforço pessoal, deploram o socialismo e suas vertentes, apoiam o fim do SUS, aplaudem PPP (parcerias público-privadas) na saúde, acreditam no paradigma tecnocrático da medicina de forma quase religiosa, acham que a iniciativa privada é superior (mesmo alguns tendo sido empregados do Estado a vida inteira), acreditam que os médicos são “especiais” e merecem privilégios e enxergam a saúde pública e a medicina de família como espaços menores da atuação médica – quando comparadas com especialidades tecnológicas como neurocirurgia, medicina por imagem ou algumas novidades mercantilistas.

Não acredito que o pequeno número de médicos com consciência de classe e com uma visão progressista e popular farão diferença em curto prazo. O que precisamos é de uma reformulação no ingresso e a abertura de “faculdades populares de medicina” para produzir novos médicos educados dentro do paradigma social e com ênfase na saúde pública e na prevenção. Questionar e aprofundar a crítica à visão capitalista e elitista da medicina deve ser uma grande tarefa para o século XXI.

No nosso atual contexto a corporação médica é reacionária, elitista e alienada em sua grande maioria, e alguns setores são francamente fascistas – bastam 5 minutos na comunidade “dignidade médica” para confirmar isso.

O Brasil precisa de uma medicina para seu povo, ligada às comunidades, e não uma profissão adjuvante das empresas de saúde e da fabricação de drogas.

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As desculpas dos reaças

Entrei no Facebook de alguns amigos ultra reaças e a tônica das manifestações é essa:

Sim, o Moro desrespeitou a lei, foi pego pelos ‘arapongas’, mas queriam o quê? Que ele fosse santinho? Que agisse dento do ‘livrinho’? Que deixasse a quadrilha do PT se livrar dessa?

No fundo sempre tiveram desprezo pela democracia, pelas leis e pelo Estado Democrático e Direito. Eles assumem publicamente que a postura de juiz não é adequada pra tigrada do Brasil. Aqui tem que meter o pé na porta e mandar o código de processo penal às favas. Eles admiram um Zorro, um Batman, um justiceiro acima das leis; ou um Torquemada. Alguém que não precise do devido processo, do contraditório e – acima de tudo – de provas que ameacem suas convicções e sua visão particular de moral.

A condenação de Lula é exatamente isso: “Que se lixem as provas. Não aceitamos esse nordestino nos governando. Não queremos equidade, justiça social e pretinhos no aeroporto – que mais parecem rodoviárias. Queremos nosso país de volta!!!

Moro é o espelho de uma classe média imoral e corrupta, ignorante e autoitária. Aliás, nada distante do presidente bestial que temos.

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Mitos espíritas

Não passem pano para seus mitos espíritas…

Acho curioso quando surge esse tipo de argumento: “sim, Moro é um juiz corrupto e Dalanhol cometeu crimes como promotor, mas, mas, …. quem pode falar qualquer coisa contra esses combatentes corajosos contra a chaga da corrupção no Brasil???

Ora… o trabalho de Chico e Divaldo deve ser reconhecido pelo seu valor, mas o fato de serem dois notórios reacionários deve ser dito e exposto, até para retirar a aura de divindade que carregam.

Querem mais? Passei a infância lendo Monteiro Lobato, um racista e eugenista asqueroso. Valorizo seus livros infantis e deploro seus preconceitos. Humberto de Campos era um racista nojento e grande cronista. Fernando Pessoa, ele mesmo, nutria profundo desprezo pelos negros e foi o maior poeta da língua portuguesa. John Lennon era um perverso e sádico. David Bowie pedófilo, assim como Simone Beauvoir nos anos 60. Todos humanos e falíveis, alguns com máculas morais terríveis. Não passo pano para nenhum deles, e ainda assim separo o autor da obra.

Chico e Divaldo apoiaram regimes de força. Foram coniventes com as ditaduras de outrora e com o golpe juridico-midiático de agora. São golpistas com um pezinho no autoritarismo e na ditadura. Divaldo exaltou publicamente um juiz criminoso que combinava sentenças secretamente com a promotoria.

Ambos poderiam ter ficado quietos, mas deixaram claro seu apoio à brutalidade da direita nesse país.

Ahhhh, mas e os livros, a Mansão do Caminho, as palestras?” É curioso quando trazem esse argumento pois é o mesmo argumento usado pelos milicianos. Eles esperam ser desculpados pelas assistência oferecida aos pobres e pelas benfeitorias que realizam nas favelas que comandam (a ferro e fogo). Pablo Escobar, os donos de Escolas de Samba e os barões do jogo do bicho sempre agiram assim. Sei que a comparação é dura, mas não comparo as figuras e sim a lógica usada para passar pano em seus erros. Não tem como usar a obra de Chico e Divaldo como blindagem para sua vinculação clara com o ditadura de 64 ou os crimes terríveis desse magistrado corrupto que envenenou a democracia no Brasil.

Blindagem de espíritas? O mesmo que faziam com os crimes de papas, suas orgias e lambanças da Igreja.

Para finalizar, eu não reduzo essa dupla de mitos espíritas às suas opções políticas autoritárias ou a exaltação de corruptos como heróis nacionais. O trabalho deles, para os que creem, ultrapassa esse limite. Entretanto, exatamente pela importância que eles tem, não há como perdoar e desviar o olhar de sua vinculação com a barbárie e o atraso do nosso país.

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