Arquivo do mês: junho 2025

O Império do Acaso

O “império do acaso” é uma das verdades mais difíceis de admitir. Nossa mente é condicionada a colocar os eventos em uma linha de causalidade, a qual nos dá o alívio de olhar para fatos, aprender com eles e repeti-los (ou evitá-los) no futuro. É dessa expectativa que surge a nossa impressionante adaptabilidade ao meio ambiente. Por isso, quando perguntamos a um sujeito de sucesso qual o caminho que ele seguiu para alcançá-lo, a resposta quase sempre será tentar colocar o objetivo alcançado antecedido de uma série de etapas cumpridas, que o levaram, por fim, ao topo. Invariavelmente, sua resposta será um amontoado de clichês e lugares-comuns como “acordei cedo”, “estudei quando todos dormiam”, “tive foco e persistência”, “nunca esmoreci” ou “sempre segui meus sonhos”. Sim, é verdade; ele não sabe a real razão pela qual venceu e atingiu seus objetivos, mas há algo ainda pior nessa equação: muitas vezes seu sucesso é uma brutal casualidade, um produto da sorte, alguém que sentiu o suave bafejar da fortuna, soprado pela deusa Álea – a divindade dos fatos fortuitos.

Entre as coisas ditas com frequência pelas pessoas vitoriosas é o indefectível: “trabalhei e me dediquei muito para chegar onde cheguei”, o que pode explicar alguns detalhes, tipo, “estar pilchado quando o cavalo passar encilhado”, no linguajar gauchesco, que significa estar pronto quando chegar a oportunidade. Todavia, isso não explica a imensa quantidade de pessoas que, com as mesmas capacidades e igual esforço, fracassaram de forma retumbante em seus projetos. O contrário também é verdadeiro: lembro bem de uma declaração do músico Zeca Pagodinho quando afirmou peremptoriamente que “fiz de tudo para implodir minha carreira, mas não consegui”. Chegou atrasado em gravações, faltou em shows, exagerou na bebida, faltou com a palavra, etc. Nada surtiu efeito: apesar do seu enorme esforço, ainda hoje ele é um grande sucesso.

Outro é exemplo curioso aconteceu no futebol. No ano de 2005 o Grêmio estava jogando a série B, e vários treinadores se sucediam, pois nenhum conseguia fazer aquele time jogar. Foi então contratado um jovem técnico que jamais havia treinado um time grande. Inexperiente, mas com muita vontade de vencer (como todo mundo), ele teve um desempenho irregular, até que foi jogar contra um time de Anápolis, em Goiás. Apesar da distância imensa entre a história desses clubes, o Grêmio perdeu por uma sonora goleada de 4 x 0. A diretoria se reuniu para decidir o futuro do treinador. Como já haviam ocorrido muitas trocas no comando técnico, e como o técnico estava há pouco no clube, resolveram lhe dar mais uma chance. Aqui foi seu primeiro golpe de sorte: bastaria um pouco de mau-humor em um membro da direção e ele teria sido demitido.

O Grêmio chegou à final do campeonato cambaleante, jogando mal e não convencendo a torcida e a crítica. Para voltar a série A no ano seguinte teria que, ao menos, empatar sua última partida, que ocorreria no estádio do adversário, clube que também subiria para a elite do futebol brasileiro caso vencesse. A partida foi da mais pura emoção; tensa, disputada, ríspida, com futebol de baixíssima qualidade, mas pura adrenalina. No primeiro tempo, pênalti contra o Grêmio, e a bola se choca contra o poste. O empate continuava a favorecer o time gaúcho. Faltando apenas 10 minutos para o fim da partida, o juiz marca outro pênalti, esse inexistente, contra o Grêmio. O caos se estabelece. Três jogadores gremistas são expulsos na confusão e, somados a um que já havia saído, restaram apenas 7 em campo, contra os 11 adversários. Faltavam 10 minutos, 7 jogadores contra 11 e um pênalti contra: nunca houve um momento no futebol tão desfavorável em uma final.

Um garoto, lateral da equipe da casa, corre para bater o pênalti depois de mais de 10 minutos de brigas, polícia em campo, dirigentes com o dedo na cara do juiz, etc. Bate…. e o goleiro defende. Euforia se mistura com incredulidade, mas é forçoso lembrar que ainda havia dez minutos para jogar e que restavam 11 jogadores adversários contra apenas 7 do time do Grêmio. Passados alguns poucos segundos e o zagueiro adversário bate no jogador do Grêmio e é expulso, e após a rápida cobrança, o jogador Anderson do tricolor gaúcho vence a defesa adversária e faz o gol da vitória. Nada mais poderia acontecer. Apesar de ser um jogo da série B, foi uma comemoração apoteótica, que demonstrou a imortalidade da equipe azul. Sim, para quem conhece, estou falando da “Batalha dos Aflitos”

No ano seguinte o Grêmio faz um excelente campeonato Brasileiro e se classifica na Libertadores. Quando a jogou no ano seguinte fez a final com o time do Boca Júnior, mas perdeu as partidas decisivas. Depois dessa final o técnico transferiu-se para o Corinthians em 2008, e teve uma carreira de 20 anos de sucesso, atuando em vários clubes brasileiros e vencendo muitos campeonatos.

Se fosse perguntado a ele a razão do seu sucesso, ele certamente diria “muito trabalho, dedicação e estudo”, mas eu sei que isso é apenas uma parte quase insignificante da verdade. As razões desse sucesso estão nas mãos invisíveis do acaso. Se o goleiro do Grêmio não tivesse defendido aquele pênalti, a derrota seria certa, a sua carreira como técnico de grandes times estaria liquidada e ele jamais chegaria à seleção brasileira – como efetivamente chegou. Nos pés do goleiro esteve a sua chance de alcançar o sucesso, e não no trabalho árduo e nas suas capacidades como estrategista, que por certo não seriam muito diferentes daquelas dos técnicos que o antecederam – e fracassaram.

Sim, eu sei o quanto de angústia existe em aceitar que somos governados pelo acaso. Sei também o quanto isso pode nos fazer perder as esperanças no esforço e na dedicação. Entretanto, não é disso que se trata, mas apenas reconhecer que o mérito que procuramos enxergar nas pessoas é muitas vezes enganoso: a posição que ele ocupa em nosso imaginário é muitas vezes fruto de uma confluência de fatores aleatórios dos quais ele não possui nenhum controle, e que as suas qualidades – quando existirem – não são suficientes para explicar a diferença entre o que ele alcançou e a multidão atrás de si que, com as mesmas habilidades, fracassou.

Por isso gosto tanto dessa manifestação de Christoph Waltz ao receber este prêmio. Poderia ter sido piegas, ter falado do seu enorme esforço, ter enumerado suas qualidades e mostrado como seu esforço o fez ser um ator premiado. Entretanto, teve a honestidade de dizer que o lugar que ocupava e o prêmio recebido eram obra 100% do acaso. Só por isso, por ser tão diferente da expectativa, acho sua manifestação uma obra de arte.

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Ataque americano

Muitos ainda insistem na defesa dos Estados Unidos como se este país fosse um “bastião em defesa da democracia”, mas bem o sabemos que esta postura é fruto de mais de um século de massiva propaganda que, ao mesmo tempo que exalta a democracia burguesa, tenta desumanizar e vilificar seus oponentes. Os árabes – como pode ser visto em “Reel Bad Arabs” – são, de longe, as principais vítimas dessas campanhas de descrédito, em função da importância geopolítica de Israel. Ora, nada poderia estar mais longe da verdade do que colocar os Estados Unidos como defensor dos valores democráticos, mas aqueles que ainda defendem o imperialismo o fazem como que dominados por uma religião irracional, carregando suas palavras de chavões desbotados pelo tempo, relíquias cafonas e empoeiradas da guerra fria. Usam até a retórica do Milei – um Bolsonaro ainda mais aloprado – que não passa de um maluco fracassado que empurrou a Argentina para o fundo do poço, piorando o que Macri já havia feito. Outro detalhe chamativo é a tentativa de atacar o Irã defendendo o “direito das mulheres”, como se houvesse qualquer interesse na defesa de mulheres muçulmanas, mortas de forma genocidária em Gaza há vários meses. Não, nunca foi esse o interesse, mas ele é usado como “peça de propaganda” para aglutinar identitários na causa imperialista.

O paradoxo que vemos agora é testemunhar a direita mais retrógrada cair “como um patinho” na retórica “woke”, o que demonstra que na falta de argumentos a direita aceita apoiar até mesmo o discurso dos identitários. A meu ver, apesar de críticas necessárias às questões de gênero em países do Oriente Médio, quando examinamos a realidade da situação das mulheres do Irã, é evidente que elas têm muito mais liberdade do que as ocidentais, basta ver o acesso delas às faculdades como engenharia e física, que no ocidente são majoritariamente masculinas. Ao lado disso, vemos o quanto as mulheres no ocidente são expostas e objetualizadas ao extremo, mas matar crianças e mulheres usando a desculpa de que, terminada a matança, as mulheres poderão mostrar os cabelos, é o extremo da perversidade, o cúmulo do pensamento assassino que a direita tanto dissemina. Criticar as vestimentas de uma cultura – e mesmo a prática perniciosa de alguns radicais – como forma de analisar a liberdade faz parte da retórica oportunista de quem se nega a olhar para qualquer assunto com a devida profundidade.

Escrevo este texto imediatamente depois do ataque americano às instalações nucleares do Irã, e antes da óbvia retaliação que virá. É importante deixar claro que os próprios especialistas americanos (vide abaixo), passada a fumaça e a poeira das bombas jogadas no deserto, deixaram claro que nada de grave aconteceu, nenhuma estrutura foi destruída e nenhum artefato nuclear danificado (havia sido removido há muito tempo). Enquanto isso, 1/3 de Tel Aviv está severamente danificada, e a tendência é se tornar muito pior. Somente os cegos e fanáticos não conseguem enxergar que o fundamentalismo sionista, racista, supremacista está desaparecendo, derretendo, sendo transformado em pó. O regime extremista e terroristas dos sionistas dará espaço a uma democracia próspera e vibrante depois de um belo espetáculo de destruição do regime racista em Israel. Agora estamos escutando os primeiros vagidos de uma nação palestina plural, democrática, sem muros, sem mortes, sem apartheid, sem racismo, sem supremacismo, sem “povo escolhido” e sem a tirania dos capitalistas e abusadores sexuais de Israel. Em breve veremos palestinos – judeus, cristãos e muçulmanos – livres das amarras totalitárias do sionismo.

Enquanto isso, Trump está correndo risco de vida, e querem nos fazer crer que ele será morto pelos iranianos. Netanyahu, em verdade, disse que isso iria acontecer; ele avisou explicitamente sobre a morte de Trump, e disse que o Irã desejava matá-lo. A verdade é que quem vai tentar isso será o Mossad, pois assim fazendo ganhará duplamente: eliminando um presidente rebelde e conseguindo uma ótima desculpa para a guerra total.

Neste ataque parece mesmo que Trump só bateu o ponto para justificar aos seus patrões sionistas de que algo foi feito contra o Irã. Na verdade, essas ações teatrais deixam cada vez mais claro que Trump está com medo de morrer.

“Um ato teatral. A grande boca de Trump o colocou em uma encruzilhada. O Irã não jogaria seu jogo. Então ele foi obrigado a bombardear o Irã para salvar a própria imagem. Para isso, bombardeou duas instalações vazias que já tinham sido atacadas por Israel e lançou seis bombas contra uma instalação indestrutível (Firdos), alegando destruição, apesar do contrário ser verdade. É isso; um ataque “controlado”, um fiasco. E este é o homem cujos apoiadores chamam de o maior líder do mundo. Ele é uma vergonha nacional”. (Scott Ritter)

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Determinismo

Creio ser importante ressaltar que o debate é mais profundo do que parece. A questão que se coloca nesse quadrinho é estabelecer a contraposição de duas propostas espíritas. De um lado, a ideia do ACASO: uma mulher atacada por acaso por um estuprador, sem nada ter feito para isso; uma ocorrência de puro azar. Esta visão se contrapõe à proposta DETERMINISTA, que afirma que todos os fatos de hoje – das punições aos benefícios – são decorrência de algo do passado, de uma vida anterior onde houve falhas a serem purgadas na vida atual ou créditos a serem resgatados. Aliás, é daí que vem uma conhecida expressão brasileira “Eu devo ter atirado muita pedra na cruz para ter que passar por isso”.

Para quem aceita a hipótese determinista, todo o sofrimento presente estaria relacionado a um fato do passado, seja uma dívida ou um talento. O problema para aqueles que creem no determinismo – não cai uma folha da árvore sem que Deus tenha conhecimento – é que essa perspectiva os levaria a aceitar uma vida absolutamente controlada pelo destino, pelos “espíritos superiores”, pelas rígidas leis de causa e efeito (sucedânea da Lei de Talião) ou por Deus, sem que haja qualquer protagonismo de sua parte. Se tudo já estava previamente escrito, de que adiantaria mudar suas condutas? Já para aqueles que acreditam no acaso – ou na ocorrência de fatos dramáticos sem uma causalidade moral anterior – é necessário aceitar que o aprendizado não precisa necessariamente ocorrer pelas punições. Em verdade, a concepção determinista do mundo espiritual é um espelho de nossas próprias convicções punitivistas, que acreditam no poder transformador das penas, das punições, das cadeias e dos castigos. Essa é a visão mais direitista, que acredita que as prisões e penas poderiam produzir algum benefício nas sociedades, algo que se contrapõe à materialidade dos fatos.

Alguns poderiam dizer que não é preciso vasculhar outras existências para explicar as dores desta; muitas vezes colhemos aqui mesmo o que foi plantado nesta vida.  Entretanto, essa proposta apenas traz o limite do debate mais para perto (nesta vida, não necessariamente em outras), mas mantém o dilema principal: é preciso ter feito algo de mal para ser vítima de uma tragédia? Não podemos ser vítimas do acaso? Se você é determinista, dirá que todo efeito necessariamente tem uma causa; as dores serão sempre a decorrência de malfeitos e culpas. Já se você acreditar na possibilidade do aleatório, aceitará que muitas vezes o sofrimento não foi produzido por nenhum fato anterior, mas que ainda assim pode ser fonte de aprendizado.

Além disso, creio que o quadrinho carrega uma falácia lógica, chamada de “non sequitur”, na qual a conclusão, que encerra as ponderações, não decorre das premissas apresentadas. Quando um espírita “determinista” fala de “pecados do passado”, ele não está justificando o crime, mas tentando entendê-lo numa perspectiva maior, mais abrangente, que englobe as vidas passadas e a lei de causa e efeito – também chamada de “lei do carma”. Portanto, é possível a ele dizer que o abuso é “horrível, injustificável, monstruoso e que merece punição, como forma de proteger a sociedade”, enquanto, ao mesmo tempo, tenta entender porque aquela específica mulher passou por tamanha provação e dor. Como eu disse anteriormente, não concordo com a visão determinista admitida pela maioria dos espíritas que procuram causalidades morais em cada tragédia, mas, por uma questão de justiça, creio que esta visão não transfere a culpa para a vítima, apenas tenta entender, dentro desta específica lógica, o que estes sofrimentos poderiam ter como causa.

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Uma ilha de democracia

Nas últimas semanas comecei a ver de novos nas redes sociais um movimento que me chamou a atenção. Voltaram a aparecer as críticas à República Islâmica do Irã e a comparação com a fulgurante democracia israelense. Diante da guerra aberta, com o céu das grandes cidades de Israel iluminadas pelos mísseis balísticos iranianos e com o zumbido mortífero dos drones que sobrevoam a suntuosidade de Tel Aviv e Haifa, o ocidente voltou a ser inundado com propaganda imperialista, que coloca o Irã como um país “do mal” enquanto o enclave branco ocidental chamado Israel passa a ser descrito como um oásis de civilização no meio de um deserto de valores morais.

Primeiramente, é importante levar em conta que Israel não é uma democracia – longe disso. O projeto sionista deixou claro, desde os primórdios de sua implantação, que não seria possível manter Israel sem uma maioria consistente de judeus, e que esse a quantidade de árabes na sociedade israelense jamais poderia ultrapassar 30%. Entretanto, Armon Soffer, proeminente demógrafo israelense, os judeus já são minoria quando se analisa a Palestina: Israel e os Territórios ocupados. Desta forma, incorporar as populações palestinas em um único país destruiria a hegemonia étnica artificial estabelecida após o Nakba em 1948. Ou seja: Israel é uma etnocracia institucional; está em sua constituição de que aquela é a “pátria dos judeus”. Fica evidente para quem estuda as questões da Palestina as razões pelas quais Israel não trata como cidadãos – com plenos direitos, inclusive o voto – os 7 milhões de palestinos dos territórios ocupados. Essa democracia destruiria a “maioria judaica”, artificialmente produzida pela expulsão de 750.000 palestinos em 1948 e pela limpeza étnica efetuada nos últimos 77 anos.

Já essa história de Israel como “defensor da democracia”, uma “barreira de valores ocidentais a impedir a invasão da barbárie muçulmana”, é uma mentira; uma farsa imperialista. O que existe como valor primordial se resume nos interesses econômicos e geopolíticos da região. Entretanto, vi surgir de novo a mesma retórica identitária, que agora parte de segmentos da própria direita mais oportunista: “Estariam membros da comunidade LGBT mais bem hospedados e mais seguros na Palestina ou no Irã?” Esta é um dos argumentos mais usados para atacar o Irã ou qualquer país de maioria islâmica, da Palestina à Indonésia. Primeiramente, isso mostra uma ignorância inaceitável sobre as disparidades existentes dentro do mundo muçulmano. Essa afirmação tem o mesmo nível de absurdo de questionar a “vestimenta típica da Europa”, ou a “comida do Brasil”, ou mesmo os “costumes morais dos cristãos”, como se o ocidente fosse um bloco hegemônico no qual a comida, a religião e os costumes fossem encontrados de forma idêntica em todas as latitudes. Ora, para uma população de mais de 1 bilhão de crentes, o Islã terá tantas diferenças quanto podem ser encontradas entre um umbandista e um mórmon no âmbito das suas práticas cristãs, sua comida, seus valores, seus costumes e até sua vestimenta.

O Irã fez uma revolução popular para defender seus valores e suas riquezas. Alguém acredita mesmo que americanizar um país, trazendo prostituição, drogas, casinos, metanfetamina, corrupção desenfreada, submissão, etc. significa melhorar a democracia e os direitos individuais dos seus cidadãos? Até a revolução islâmica, o Irã era capacho dos Estados Unidos, e seu líder – o Xá Reza Pahlevi – foi colocado no poder por um golpe de estado patrocinado pelos americanos. Este servia como mero despachante dos interesses ocidentais para o petróleo persa, um agente bem pago da CIA. Assim, antes de debater as questões de grupos específicos, como mulheres e gays, é fundamental entender a importância de defender os valores de um país e perceber o quanto o sul global serve de quintal para os americanos, que vendem sua música ruim, sua comida de baixa qualidade e seus valores capitalistas para nós de forma livre e acrítica. “Sim, mas vejam a liberdade de gays e trans em Israel. Há notícia de alguma parada gay na Palestina ou no Irã?”

Pois eu pergunto: desde quando a existência de paradas gays significa respeito aos homossexuais? Inclusive, muitos gays criticam esse tipo de exposição, basta olhar o que dizem muitas das lideranças dos movimentos LGBT sobre o estereótipo de gay usado nessas paradas. Parada gay em Israel é propaganda imperialista, o famoso “pinkwashing“, e serve para fingir uma pretensa liberalidade ocidental. Só tolos embarcam nessa canoa. Por trás disso está o controle do petróleo, o domínio geopolítico, as ogivas nucleares de Israel e a penetração cultural. E como são tratadas as mulheres em Israel? Bem, depende da cor. Em Israel respira-se arbítrio e racismo. Cerca de 130.000 etíopes, a maioria de judeus, moram em Israel. Conforme o Haaretz, médicos que injetaram anticonceptivos injetáveis em negras etíopes que migraram para Israel alegaram que “pessoas que dão à luz com frequência sofrem”. Mesmo que fosse possível que os médicos tivessem boas intenções (o que é altamente improvável) ao injetarem contraceptivos à força, não há justificativa alguma para privar as mulheres da soberania sobre suas próprias escolhas reprodutivas. Ou seja: o respeito às mulheres vai depender da sua cor, da sua origem e vai sempre estar atrelado aos interesses do etnoestado sionista. O mesmo tipo de tratamento ocorre desde 1948 com a discriminação dos judeus “mizrahim”, vindos do mundo árabe.

É evidente que o Irã não é um exemplo de democracia vibrante. É mais do que claro que uma revolução nacionalista como a que aconteceu em 1979 no Irã deixaria muitas feridas no tecido social e muitas questões sobre os valores e direitos individuais sem resposta, em especial no que diz respeito às mulheres, gays, etc. Entretanto, esse é o preço da liberdade e da autonomia. O Irã não passava de um entreposto comercial dos interesses do ocidente até meados do século passado, da mesma forma como a China sempre o foi durante todo o século XIX até a revolução de Mao em 1949. Depois de um processo revolucionário, com a nacionalização das empresas petrolíferas e um mergulho nos valores da Pérsia, haveria muitas arestas a serem aparadas. Entretanto, essas dificuldades – em especial no que tange as minorias e os costumes – são usados até hoje como instrumento de contra-revolução, querendo nos fazer crer que a vida antes da revolução era muito melhor para as mulheres, os gays, etc. Pergunte aos gays, às mulheres e às crianças palestinas como é viver sob o jugo sionista e esta será a melhor resposta.

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Tensão e guerra

Escrevo estas notas enquanto o céu de Talabib se ilumina com as bombas que chegam do Irã. Era de se esperar que a República Islâmica do Irã, mais cedo ou mais tarde, iria fazer a sua necessária retaliação aos ataques sionistas. Entretanto, sabemos bem que a agressividade de Israel é a maior demonstração de sua fragilidade. Tanto no plano internacional quanto interno, o país está em frangalhos. É impossível esconder hoje, como foi feito durante quase oito décadas, as atrocidades e os crimes cometidos contra a população da Palestina.

A operação de 7 de outubro destruiu o projeto sionista de uma forma irrecuperável. Não há mais como sustentar a ideia racista e supremacista que se constitui na estrutura central de Israel, sua espinha dorsal. O genocídio, as matanças de crianças, a diretiva Hannibal, o bloqueio de ajuda, a destruição dos hospitais, a mortandade de 10% da população, em sua maioria mulheres e crianças, as torturas denunciadas nos calabouços israelenses, a morte de jornalistas, médicos, enfermeiras e toda a podridão do apartheid foram jogadas nas telas de TVs e celulares do mundo todo. Ao contrário dos massacres cotidianos dos últimos 77 anos, agora a Internet expõe de forma crua o sofrimento do povo palestino e a perversão homicida da sociedade israelense. Não há mais como desver o que testemunhamos, e não há mais como Israel se tornar uma nação entre as nações. Israel é um cadáver que apodrece à vista de todos, mas enquanto o corpo não é enterrado, somos obrigados a ver o horror de sua decomposição, enquanto o mundo inteiro testemunha o horror e o racismo que imperam na sociedade israelense. Ficou claro que esse ataque israelense ao Irã foi puro desespero do Império em decadência. Fica evidente que Israel está morrendo, se desfazendo, e esse ataque revela um corpo em decomposição. Não há mais como sustentar Israel, uma aberração supremacista e genocida, um enclave europeu fascista encravado no Oriente Médio.

A meu ver, esse país não tem mais muitos anos de vida. É sintomático que 10% da população já tenha abandonado o país, voltando para seus lugares de origem, e por certo muitos mais vão trilhar esse caminho. Essa guerra provocada – com a desculpa do enriquecimento de urânio – é o sintoma do fim de Israel. Fica claro que está se comportando como a Argentina dos anos 80, entrando em colapso e nos estertores da ditadura militar, provocando uma guerra contra a Inglaterra para unificar o país em torno de uma ameaça externa. De nada adiantou; o regime caiu de podre.

Este é um sintoma inquestionável do fim de um projeto racista e colonial. É evidente que por trás das decisões agressivas de Israel existe a conivência ou a explícita cooperação americana, basta ver que os mísseis que atingiram Teerã partiram do Iraque, enclave imperialista no Crescente Fértil. A esperança de Israel é que os Estados Unidos mantenham a decisão de bancar o conflito, entrem na “guerra santa” e ajudem seu protegido.

Entretanto, isso não é certo, porque a situação interna dos americanos é caótica, com tropas nas ruas, motins, manifestações populares e um presidente fragilizado. Será difícil convencer a opinião pública americana a fazer sacrifícios e enviar tropas em nome de Israel. Principalmente agora, no momento em que o apoio a este país atingiu seus níveis mais baixos na história americana – sem falar do rechaço internacional. Alguém crê que mais uma vez veremos jovens americanos morrendo em uma guerra estúpida? Colocar os Estados Unidos em guerra contra um país distante, que não ameaçou diretamente os Estados Unidos, e com o risco de colocar o comércio de petróleo do mundo em colapso? Serão eles tolos o suficiente para produzir um novo Vietnã?

A situação é desesperadora para a velha ordem. Enquanto o mundo multipolar não se configura como a força hegemônica no planeta, viveremos a tensão, o medo e as guerras.

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Oportunismo

Caetano Veloso, em recente show, segurou a bandeira da Palestina, numa demonstração de adesão à luta dos palestinos por liberdade e autonomia. Todavia, é importante voltar no tempo um pouco e lembrar que, antes da sua visita a Israel em 2015, numa apresentação para latinos e brasileiros moradores de Israel, os cantores e compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil foram confrontados por Roger Waters para desistir da visita que fariam a Israel, cancelar seus shows e se unirem à causa pela Palestina. Caetano desconsiderou solenemente os pedidos de Roger e outros ativistas, debochou das palavras de Miko Peled, dançou e cantou com os sionistas de Tel Aviv e jamais se desculpou pela sua presença na Palestina ocupada, em concertos regiamente pagos pela nação invasora.

Gilberto Gil fez ainda pior: além de ganhar seu dinheirinho cheio do sangue das crianças palestinas, ainda assinou abaixo-assinado de apoio aos sionistas depois do 7 de outubro. Ambos são gênios da música, talentos indiscutíveis, mas ignorantes e reacionários, a ponto de se colocarem ao lado de uma ideologia nazista e genocida.

O mesmo se pode dizer de Jean Wyllys, figura que ruma celeremente para o mais absoluto esquecimento. Enquanto parlamentar, foi a Israel em um “trenzinho da alegria” e com boca livre, financiado pelas universidades israelenses – situadas em terras palestinas invadidas – com o claro intuito de fazer propaganda do regime de apartheid e reforçar a imagem de Israel como eterna vítima no cenário internacional. Foi escolhido a dedo por ser abertamente gay e ter uma postura francamente identitária, o que auxilia na conhecida estratégia de pinkwashing“, característica da “hasbara” (propaganda estatal de Israel). Esse também jamais pediu perdão por se postar ao lado do apartheid, do supremacismo, do abuso e do racismo mais asqueroso vigente em nossa época.

Sim, Caetano, Gil e Jean Wyllys não foram os únicos a se deixar encantar pelo dinheiro fácil que vem de Israel. No início desse ano ocorreu outro “trenzinho“, desta vez composto de profissionais da imprensa que visitaram Israel – com todas as despesas pagas (jabá) – para limpar a barra do sionismo. Entre eles estavam Pedro Doria, fundador e editor do Canal Meio; Tatiana Vasconcellos, âncora da Rádio CBN; Filipe Figueiredo, criador do podcast Xadrez Verbal; Leila Sterenberg, que atua semanalmente nos programas do canal do IBI; Janaina Figueiredo, repórter especial do jornal O Globo; e Marcos Guterman, diretor de Opinião no jornal O Estado de S. Paulo.

Entretanto, quando essa adesão ao sionismo vem de figuras públicas adoradas pela esquerda, eu acredito que a traição é mais dolorosa. Mesmo quando sabemos que não é justo confundir o autor com a obra, é inevitável a frustração. Caetano Veloso continua sendo um dos maiores gênios da cultura brasileira, um revolucionário da arte, criador do tropicalismo, músico e poeta da maior qualidade. Entretanto, como agente político, é um arrogante, um alienado e alguém que sempre se jogou para o lado que lhe pareceu pessoalmente mais favorável, mesmo que isso significasse apoiar os genocidas e canalhas mais abjetos. Todavia, sua genialidade não pode nos deixar cegos diante do seu oportunismo. Sua adesão tardia à luta pela libertação da Palestina não pode apagar de nossa memória sua posição de adesão franca ao sionismo.

Desculpe, Caetano… eu não sou cachorro, não.

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Paixões

Certa vez uma astronauta relativamente famosa dirigiu quase 1500 quilômetros para confrontar a nova namorada do seu amante. Na época, esta funcionária da NASA era casada e tinha 3 filhos pequenos. Seu nome era Lisa Nowak, e ela percorreu o trajeto usando fraldas geriátricas para não precisar parar e chegar ao seu destino em tempo muito curto. Usando uma peruca preta, encontrou sua vítima num estacionamento em Orlando, mas conseguiu apenas confrontá-la e jogar gás lacrimogêneo em seu rosto. Depois disso foi presa, mas foi solta pouco tempo depois, até porque suas acusações eram leves e não passaram de mera agressão. Entretanto, divorciou-se e encerrou sua carreira de engenheira da agência espacial americana. Hoje vive sozinha no Texas e se nega a dar entrevistas, mas seu advogado afirmou recentemente que ela vive uma vida modesta e “está em paz”.

Sempre lembro dessa história quando penso no quanto somos governados por nossas paixões. Vejam: ao contrário de crimes passionais quando um dos cônjuges (ou conges) perde a cabeça durante uma briga e produz uma agressão – que muitas vezes é fatal – no caso dela toda a ação foi premeditada e demorada. A travessia empreendida demorou 14 horas, e foi feita dirigindo seu próprio carro de Houston até Orlando. Fez isso sem parar, e teve muito tempo para ponderar sobre as repercussões de suas atitudes para si mesma, sua família e a vítima – que também era astronauta. Todavia, as 14 horas de viagem não foram o tempo suficiente para lhe devolver a plena visão, já que se encontrava cega de ciúme, ressentimento, rancor e orgulho ferido.

Apesar de tudo que estava em jogo e o quanto ela podia perder – carreira, família, amigos – ela não conseguiu se libertar da prisão de suas paixões. Seguiu em frente sem conseguir que uma réstia de luz pudesse iluminar seu entendimento. Entretanto, apesar da tristeza dos resultados e as perdas enormes que Linda teve em sua vida pessoal e profissional, eu ainda penso que essa explosão de afetos será a última barreira a ser rompida pelas máquinas. Quando os robôs forem capazes de copiar as mais brutais manifestações humanas, nada haverá que os impeça da supremacia completa sobre a condição humana. Enquanto formos caracterizados por esse tipo de comportamento caótico, movidos pela torrente de emoções explosivas, ainda estaremos em segurança, distantes da suprema extinção e consequente substituição pelos replicantes.

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Censura e proibicionismo

Não gostou da piada? Corte a amizade. Não fale mais com o sujeito, não vá no seu show, cancele, reclame. Escreva um textão nas redes sociais denunciando a visão preconceituosa que ele dissemina. Temos nas mãos o poder de mostrar que esse humor não é engraçado, que não é construtivo e que se baseia em estereótipos inadequados. Porém, o desejo de calar e censurar os “humoristas do mal” deixa claro que as pessoas que apoiam tal censura não acham que podemos fazer boas escolhas. Na verdade, acreditam que a proibição pode ter efeitos positivos, e pensam ser mais efetivo combater a mentira com a censura, ao invés de oferecer a verdade como contraponto. Não ensinamos a chapeuzinho vermelho a fazer boas escolhas, pois achamos mais certo perseguir todos os lobos. Lembrem que, da mesma forma, o samba já foi proibido, pois havia a ideia de que sua prática incentivava a vagabundagem. Alguém acha ainda que o samba produz preguiçosos?

Vejo que as pessoas têm dificuldade de entender é que o humor de um comediante não produz nada, ele apenas reflete os valores e crenças de uma determinada sociedade. As pessoas que vão no show do comediante Leo Lins não se tornam racistas ou preconceituosas devido às palavras e piadas que escutam no show; o Leo Lins não tem esse talento, não tem esse poder de conversão e muito menos essa capacidade. Todavia, não há dúvida que ele atrai os racistas e reacionários para o seu show, provavelmente os mesmos que se exaltam nas motociatas de líderes fascistas, pois as pessoas sabem com precisão o conteúdo que será oferecido. Da mesma forma, uma missa não converte ninguém a Jesus, mas oferece um local de encontro para os aqueles crentes que há muito desejam exercitar a fé num Salvador.

A prisão ou a penalização desses comediantes, políticos, partidos, programas, religiosos não acabará com a audiência, não vai sequer diminuir o número de pessoas interessadas em suas ideias, apenas vai impedir que estas ideias sejam reconhecidas na sociedade. O mais triste é ver que a lógica usada aqui é a seguinte: se prendemos todos os gays e proibirmos que eles falem desse pecado mortal, os homossexuais vão desaparecer; se ninguém falar desses assuntos acaba tudo, eliminamos o problema. Acrescente a essa ideia punitivista as tentativas de perseguição ao comunismo, ao islamismo, ao álcool, e a ideia de acabar com o crime exterminando os criminosos.

Tudo isso já foi tentado, até mesmo hoje. Spoiler: não funcionou.

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Leo Lins

O comediante Leo Lins foi condenado a 8 anos de prisão e 300 mil reais em multas por fazer piadas consideradas desrespeitosas com minorias, debochando de velhos, gays, crianças com deformidades físicas, etc. An questão não é se as piadas que ele conta são adequadas, boas, edificantes ou até respeitosas, mas se o Estado tem o direito de determinar que tipo de piadas podem ser contadas. A meu ver, e para muitas pessoas que não se deixaram seduzir pelo discurso identitário, ser preso por contar piadas é o fundo do poço da justiça autoritária brasileira. Parece certo que Juca Chaves tinha mais liberdade criativa durante a ditadura militar dos anos 60 do que um comediante atualmente.

Eu já assisti vídeos curtos das apresentações desse comediante e nunca gostei, e apenas por isso não assistirei a um show seu. Não gosto das piadas, acho apelativas e, acima de tudo, sem graça. Ou seja: não faço sobre elas uma análise moral, acho que lhes falta graça, humor. Entretanto, é óbvio que ninguém é obrigado assistir, muito menos gostar deste tipo de espetáculo, porém prender e multar alguém por contar piadas é absurdo, inaceitável, imoral e inconstitucional!! Conte a piada que quiser, só vai rir quem achar graça. Se acham inadequado, façam como eu: ignorem. Mais ainda: a ideia de tratar as minorias atingidas pelos chistes como “coitadinhos” que precisam ser protegidos de piadas não os ajuda. Esse é um modelo “maternal” que protege às custas da infantilização, e isso impede a conquista da maturidade. Quem deseja ser maduro deve renunciar às proteções excepcionais e fortalecer seu ego, ao invés de tentar impedir os gracejos alheios. Repito: essas proibições e criminalizações fazem mal aos grupos minoritários. Aqueles sujeitos ou grupos que desejam ascender à posição de protagonista necessitam abandonar a posição de vítimas (mesmo quando o são).

Creio ter deixado claro que a minha defesa é em tese. Eu já assisti vídeos desse humorista e percebi que no seu show ele força a barra. Tipo: vou contar uma piada de negro, gay, velho, mulher, deformidades físicas ou sobre lésbicas só para causar, para dizer que faço o que eu quiser, que brinco com qualquer coisa. Para mim soa falso e forçado; portanto, sem graça. Apesar disso, jamais aceitaria que esse tipo de piada fosse proibida, exatamente porque essa perspectiva proibicionista é comprovadamente inútil. As piadas do Juca Chaves (“comi muito a senhora sua mãe”) eram “proibidas” na minha juventude, mas na escola todos sabíamos de cor e salteado todas as “proibidonas”.

Tenho como uma regra de vida que nada pode criminalizar o humor. Nada mesmo. Pode fazer piada com qualquer coisa. Aliás, sobre assuntos delicados, o Ricky Gervais faz várias piadas em seu show; tudo depende do contexto. Estabelecer sacralidade sobre determinados assuntos é péssimo para ideias, propostas, a necessária transformação do mundo, as religiões, as personalidades, os grupos oprimidos e para as minorias. Proponho um exercício: imagine que seu filho Betinho chega no primeiro dia de escola, lugar onde as crianças exercitam tudo, inclusive a maldade. Todavia, seu filho nasceu com um problema: ele tem alopecia, é carequinha e não tem cabelo algum. Agora imagine a professora apresentando Betinho para a turma e dizendo “crianças, escutem: é proibido fazer piadas com o Betinho por ser careca”. Isso seria um desastre para o Betinho, pois seria excluído dos grupos e estaria sempre sendo visto como o protegido do sistema, infantilizado, sem desenvolver sistemas e estratégias de adaptação e proteção. O que a professora deveria fazer é não dar importância alguma para isso, reforçar sua autoestima, exaltar suas virtudes e ensiná-lo a se defender. Protegê-lo, como fazemos com as minorias por meio da lei, não ajuda esses grupos, muito menos o Betinho. Para muitos é difícil entender a perspectiva de quem diz que os grupos e os sujeitos – por si só – precisam desenvolver sistemas de proteção e defesa. Quem traduz o mundo pela visão materna terá sempre dificuldade para entender o mundo pela perspectiva da paternidade.

A proibição de gracejos sobre temas escolhidos (quem escolhe sobre o que se pode fazer piada?) seria a “lei seca” das piadas, que apenas as faz acontecer entre sussurros ou em locais fechados e seguros – e por esta razão mesmo elas se espalham. A sociedade não se move por decretos ou por proibições; só o que nos faz avançar é a lenta sedimentação de novos valores, que insidiosamente se espalham pela cultura. Proibir é mais do que inútil; isso amplifica a ação que se tenta combater. Por trás desse tipo de estratégia está a crença der que o judiciário pode modificar a cultura, quando a verdade é que ele apenas reflete os valores de determinadas culturas. A luta contra discriminações ou preconceitos não pode ser feita pelas leis, mas pela lenta sedimentação de valores na cultura. Compare este tipo de censura aplicada aos humoristas brasileiros com a liberdade dos comediantes de “stand up” como Ricky Gervais ou Dave Chappelle que fazem piada com tudo, literalmente qualquer coisa. Fazem até piada com abuso sexual(!!), mas sempre alertam para o cuidado especial com o contexto, o campo simbólico que envolve de significados qualquer anedota. Não gostar do tipo de piada é legítimo; proibir é abuso.

Minha discordância é que criar estas proibições, legislações e aumentar penas não defende as minorias, pois este tipo de ação jamais protegeu ninguém na história da humanidade. Repito: o que as proibições e as leis fizeram contra o nazismo, o álcool ou o comunismo? O que fará com o racismo? O que fará com o debate sobre o machismo? A resposta é clara: nada, pois o proibicionismo nunca produziu efeitos positivos na cultura. O que muitos pretendem é cercear a possibilidade de pensar, de expressar, de dizer piadas, mas é claro, só de alguns grupos. Não pode chamar de símio um grupo, mas pode chamar outro de gado.

E sobre as leis, acho que devem ser cumpridas. Quem desrespeitar as leis deve pagar sua dívida à sociedade. De toda maneira, sou contrário a qualquer lei que ataque a livre expressão de ideias e opiniões, por mais ofensivas que estas sejam, pela mesma razão que sou a favor de que qualquer partido tenha o direito de mostrar a cara e não se esconder em partidos de fachada.

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Repreensões

A propósito, lembrei de uma história que me foi contada por um emérito psicanalista a respeito de como podemos abordar algumas questões, inclusive o direito de contar piadas politicamente incorretas.

Havia uma jovem senhora que era mãe de quatro filhos, sendo o último uma criança autista. Veio à consulta com o psicanalista – que era especializado no assunto – para tratar de questões relativas ao seu desenvolvimento. Em determinado momento ela comentou que a criança tinha o “péssimo hábito” de pegar a comida com a mão, amassar entre os dedos e jogar longe. Aquilo produzia enorme irritação nos pais, em especial na mãe, que tinha muito mais contato com a criança e que ainda era sobrecarregada com o cuidado dos outros três filhos maiores. Narrou a rotina diária da hora do almoço, seu cansaço, a repetição dessa cena e a sensação de raiva que tinha por não saber como agir nesse caso. Pediu ao analista sua opinião.

Ele imediatamente perguntou: “Como a senhora tratou este tipo de ocorrência com seus outros filhos?”

Ela respondeu: “Ora, eu dava um ‘pito’ neles. Dizia que não era ‘empregada’, que não podia limpar 20 vezes o chão, que não tinha saúde para isso, que tinha marido e outros filhos para cuidar, etc.”

O psicanalista ponderou por uns instantes e disse algo que até hoje me espanta: “Funcionou com eles?”, e ela respondeu afirmativamente. Ele então arrematou: “Pois faça o mesmo com o menorzinho. Vai funcionar também”.

Ao escutar a história, e diante do sorriso um pouco debochado do analista, resolvi apresentar minha inconformidade. “Mestre, não lhe parece óbvio que este bebê estava passando por uma fase absolutamente natural do seu desenvolvimento, aprendendo a consistência dos alimentos, entendendo as noções de falta e presença ao jogar longe o brócolis que tinha na mão, ao se sujar, ao sentir o cheiro da comida nas suas mãos, etc? Não lhe parece evidente que repreender a criança em sua experiência lúdica com a comida seria um erro, um equívoco e um entrave ao seu aprendizado?”

Ele sorriu da minha observação e respondeu assim: “Você tem toda a razão. Tudo o que você pondera é correto. Realmente a mãe estava diante de um processo natural de aprendizado e repreender não é o mais ajustado. Entretanto, você omite dois pontos fundamentais: o primeiro é que a criança fazia isso na hora do almoço, ao lado dos seus irmãos, que testemunhavam as atitudes da mãe. O segundo ponto é de que se trata de uma criança autista. Neste cenário, eu acho mais adequado que a criança seja atendida da mesma forma que os irmãos foram, para não ficar sedimentada na cabeça deles que o caçula é diferente, que tem privilégios’, que pode fazer o que os outros não podiam. Eu acredito que a ideia de acolhimento e de identidade com os irmãos é muito mais importante do que observar essa regra – repito, correta – sobre a etiqueta ao almoçar com a família. Com crianças autistas, é essencial mostrar que são iguais aos outros, que não serão superprotegidos, que também receberão reprimendas e que não terão tratamento especial.

Durante muito tempo fiquei confuso com esta resposta, mas finalmente entendi que tratar de forma igual é difícil e impõe desafios, mas que continua sendo o melhor e mais seguro caminho para a integração. O que o analista queria enfatizar era: não crie seu filho numa bolha de proteção e não crie para ele um espaço de discriminação. Da mesma forma, eu digo: não trate nenhum grupo de pessoas maduras como se fossem inerentemente incompetentes. A mensagem para os irmãos era: é evidente que o irmão de vocês é especial, mas isso não dará a ele qualquer tipo de privilégio. Entretanto, isso significa abandonar as estratégias de proteção que, durante um tempo, ajudam e garantem a sobrevivência, mas cuja continuidade determina estagnação e isolamento, deletérios para o crescimento. Proibir piadas e punir os piadistas jamais impediu que elas circulassem. Ou seja: não adianta nada proibir, é inútil e essas penas funcionam apenas como vingança social, estimulando sentimentos de revanchismo, mas são incapazes de mudar o padrão social, que só é modificada por meio da lenta sedimentação de novos valores, e não por imposições judiciais..

Assim, mesmo reconhecendo que algumas piadas podem ferir suscetibilidades, magoar e até ofender, ainda acho mais valioso permitir que elas circulem livremente – por pior que sejam os gracejos – do que aplicar proibições, vetos e censuras. O malefício a uma pessoa ou grupo pode ser revertido pelo incentivo à autoestima, exaltando as qualidades ao invés de enfurecer-se com os ataques. Entretanto, a censura, mesmo quando feita por caridade e com as melhores intenções, abre um precedente terrível, que fará mal às próprias comunidades que se pretende proteger.

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