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Uma ilha de democracia

Nas últimas semanas comecei a ver de novos nas redes sociais um movimento que me chamou a atenção. Voltaram a aparecer as críticas à República Islâmica do Irã e a comparação com a fulgurante democracia israelense. Diante da guerra aberta, com o céu das grandes cidades de Israel iluminadas pelos mísseis balísticos iranianos e com o zumbido mortífero dos drones que sobrevoam a suntuosidade de Tel Aviv e Haifa, o ocidente voltou a ser inundado com propaganda imperialista, que coloca o Irã como um país “do mal” enquanto o enclave branco ocidental chamado Israel passa a ser descrito como um oásis de civilização no meio de um deserto de valores morais.

Primeiramente, é importante levar em conta que Israel não é uma democracia – longe disso. O projeto sionista deixou claro, desde os primórdios de sua implantação, que não seria possível manter Israel sem uma maioria consistente de judeus, e que esse a quantidade de árabes na sociedade israelense jamais poderia ultrapassar 30%. Entretanto, Armon Soffer, proeminente demógrafo israelense, os judeus já são minoria quando se analisa a Palestina: Israel e os Territórios ocupados. Desta forma, incorporar as populações palestinas em um único país destruiria a hegemonia étnica artificial estabelecida após o Nakba em 1948. Ou seja: Israel é uma etnocracia institucional; está em sua constituição de que aquela é a “pátria dos judeus”. Fica evidente para quem estuda as questões da Palestina as razões pelas quais Israel não trata como cidadãos – com plenos direitos, inclusive o voto – os 7 milhões de palestinos dos territórios ocupados. Essa democracia destruiria a “maioria judaica”, artificialmente produzida pela expulsão de 750.000 palestinos em 1948 e pela limpeza étnica efetuada nos últimos 77 anos.

Já essa história de Israel como “defensor da democracia”, uma “barreira de valores ocidentais a impedir a invasão da barbárie muçulmana”, é uma mentira; uma farsa imperialista. O que existe como valor primordial se resume nos interesses econômicos e geopolíticos da região. Entretanto, vi surgir de novo a mesma retórica identitária, que agora parte de segmentos da própria direita mais oportunista: “Estariam membros da comunidade LGBT mais bem hospedados e mais seguros na Palestina ou no Irã?” Esta é um dos argumentos mais usados para atacar o Irã ou qualquer país de maioria islâmica, da Palestina à Indonésia. Primeiramente, isso mostra uma ignorância inaceitável sobre as disparidades existentes dentro do mundo muçulmano. Essa afirmação tem o mesmo nível de absurdo de questionar a “vestimenta típica da Europa”, ou a “comida do Brasil”, ou mesmo os “costumes morais dos cristãos”, como se o ocidente fosse um bloco hegemônico no qual a comida, a religião e os costumes fossem encontrados de forma idêntica em todas as latitudes. Ora, para uma população de mais de 1 bilhão de crentes, o Islã terá tantas diferenças quanto podem ser encontradas entre um umbandista e um mórmon no âmbito das suas práticas cristãs, sua comida, seus valores, seus costumes e até sua vestimenta.

O Irã fez uma revolução popular para defender seus valores e suas riquezas. Alguém acredita mesmo que americanizar um país, trazendo prostituição, drogas, casinos, metanfetamina, corrupção desenfreada, submissão, etc. significa melhorar a democracia e os direitos individuais dos seus cidadãos? Até a revolução islâmica, o Irã era capacho dos Estados Unidos, e seu líder – o Xá Reza Pahlevi – foi colocado no poder por um golpe de estado patrocinado pelos americanos. Este servia como mero despachante dos interesses ocidentais para o petróleo persa, um agente bem pago da CIA. Assim, antes de debater as questões de grupos específicos, como mulheres e gays, é fundamental entender a importância de defender os valores de um país e perceber o quanto o sul global serve de quintal para os americanos, que vendem sua música ruim, sua comida de baixa qualidade e seus valores capitalistas para nós de forma livre e acrítica. “Sim, mas vejam a liberdade de gays e trans em Israel. Há notícia de alguma parada gay na Palestina ou no Irã?”

Pois eu pergunto: desde quando a existência de paradas gays significa respeito aos homossexuais? Inclusive, muitos gays criticam esse tipo de exposição, basta olhar o que dizem muitas das lideranças dos movimentos LGBT sobre o estereótipo de gay usado nessas paradas. Parada gay em Israel é propaganda imperialista, o famoso “pinkwashing“, e serve para fingir uma pretensa liberalidade ocidental. Só tolos embarcam nessa canoa. Por trás disso está o controle do petróleo, o domínio geopolítico, as ogivas nucleares de Israel e a penetração cultural. E como são tratadas as mulheres em Israel? Bem, depende da cor. Em Israel respira-se arbítrio e racismo. Cerca de 130.000 etíopes, a maioria de judeus, moram em Israel. Conforme o Haaretz, médicos que injetaram anticonceptivos injetáveis em negras etíopes que migraram para Israel alegaram que “pessoas que dão à luz com frequência sofrem”. Mesmo que fosse possível que os médicos tivessem boas intenções (o que é altamente improvável) ao injetarem contraceptivos à força, não há justificativa alguma para privar as mulheres da soberania sobre suas próprias escolhas reprodutivas. Ou seja: o respeito às mulheres vai depender da sua cor, da sua origem e vai sempre estar atrelado aos interesses do etnoestado sionista. O mesmo tipo de tratamento ocorre desde 1948 com a discriminação dos judeus “mizrahim”, vindos do mundo árabe.

É evidente que o Irã não é um exemplo de democracia vibrante. É mais do que claro que uma revolução nacionalista como a que aconteceu em 1979 no Irã deixaria muitas feridas no tecido social e muitas questões sobre os valores e direitos individuais sem resposta, em especial no que diz respeito às mulheres, gays, etc. Entretanto, esse é o preço da liberdade e da autonomia. O Irã não passava de um entreposto comercial dos interesses do ocidente até meados do século passado, da mesma forma como a China sempre o foi durante todo o século XIX até a revolução de Mao em 1949. Depois de um processo revolucionário, com a nacionalização das empresas petrolíferas e um mergulho nos valores da Pérsia, haveria muitas arestas a serem aparadas. Entretanto, essas dificuldades – em especial no que tange as minorias e os costumes – são usados até hoje como instrumento de contra-revolução, querendo nos fazer crer que a vida antes da revolução era muito melhor para as mulheres, os gays, etc. Pergunte aos gays, às mulheres e às crianças palestinas como é viver sob o jugo sionista e esta será a melhor resposta.

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Tensão e guerra

Escrevo estas notas enquanto o céu de Talabib se ilumina com as bombas que chegam do Irã. Era de se esperar que a República Islâmica do Irã, mais cedo ou mais tarde, iria fazer a sua necessária retaliação aos ataques sionistas. Entretanto, sabemos bem que a agressividade de Israel é a maior demonstração de sua fragilidade. Tanto no plano internacional quanto interno, o país está em frangalhos. É impossível esconder hoje, como foi feito durante quase oito décadas, as atrocidades e os crimes cometidos contra a população da Palestina.

A operação de 7 de outubro destruiu o projeto sionista de uma forma irrecuperável. Não há mais como sustentar a ideia racista e supremacista que se constitui na estrutura central de Israel, sua espinha dorsal. O genocídio, as matanças de crianças, a diretiva Hannibal, o bloqueio de ajuda, a destruição dos hospitais, a mortandade de 10% da população, em sua maioria mulheres e crianças, as torturas denunciadas nos calabouços israelenses, a morte de jornalistas, médicos, enfermeiras e toda a podridão do apartheid foram jogadas nas telas de TVs e celulares do mundo todo. Ao contrário dos massacres cotidianos dos últimos 77 anos, agora a Internet expõe de forma crua o sofrimento do povo palestino e a perversão homicida da sociedade israelense. Não há mais como desver o que testemunhamos, e não há mais como Israel se tornar uma nação entre as nações. Israel é um cadáver que apodrece à vista de todos, mas enquanto o corpo não é enterrado, somos obrigados a ver o horror de sua decomposição, enquanto o mundo inteiro testemunha o horror e o racismo que imperam na sociedade israelense. Ficou claro que esse ataque israelense ao Irã foi puro desespero do Império em decadência. Fica evidente que Israel está morrendo, se desfazendo, e esse ataque revela um corpo em decomposição. Não há mais como sustentar Israel, uma aberração supremacista e genocida, um enclave europeu fascista encravado no Oriente Médio.

A meu ver, esse país não tem mais muitos anos de vida. É sintomático que 10% da população já tenha abandonado o país, voltando para seus lugares de origem, e por certo muitos mais vão trilhar esse caminho. Essa guerra provocada – com a desculpa do enriquecimento de urânio – é o sintoma do fim de Israel. Fica claro que está se comportando como a Argentina dos anos 80, entrando em colapso e nos estertores da ditadura militar, provocando uma guerra contra a Inglaterra para unificar o país em torno de uma ameaça externa. De nada adiantou; o regime caiu de podre.

Este é um sintoma inquestionável do fim de um projeto racista e colonial. É evidente que por trás das decisões agressivas de Israel existe a conivência ou a explícita cooperação americana, basta ver que os mísseis que atingiram Teerã partiram do Iraque, enclave imperialista no Crescente Fértil. A esperança de Israel é que os Estados Unidos mantenham a decisão de bancar o conflito, entrem na “guerra santa” e ajudem seu protegido.

Entretanto, isso não é certo, porque a situação interna dos americanos é caótica, com tropas nas ruas, motins, manifestações populares e um presidente fragilizado. Será difícil convencer a opinião pública americana a fazer sacrifícios e enviar tropas em nome de Israel. Principalmente agora, no momento em que o apoio a este país atingiu seus níveis mais baixos na história americana – sem falar do rechaço internacional. Alguém crê que mais uma vez veremos jovens americanos morrendo em uma guerra estúpida? Colocar os Estados Unidos em guerra contra um país distante, que não ameaçou diretamente os Estados Unidos, e com o risco de colocar o comércio de petróleo do mundo em colapso? Serão eles tolos o suficiente para produzir um novo Vietnã?

A situação é desesperadora para a velha ordem. Enquanto o mundo multipolar não se configura como a força hegemônica no planeta, viveremos a tensão, o medo e as guerras.

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Censura e proibicionismo

Não gostou da piada? Corte a amizade. Não fale mais com o sujeito, não vá no seu show, cancele, reclame. Escreva um textão nas redes sociais denunciando a visão preconceituosa que ele dissemina. Temos nas mãos o poder de mostrar que esse humor não é engraçado, que não é construtivo e que se baseia em estereótipos inadequados. Porém, o desejo de calar e censurar os “humoristas do mal” deixa claro que as pessoas que apoiam tal censura não acham que podemos fazer boas escolhas. Na verdade, acreditam que a proibição pode ter efeitos positivos, e pensam ser mais efetivo combater a mentira com a censura, ao invés de oferecer a verdade como contraponto. Não ensinamos a chapeuzinho vermelho a fazer boas escolhas, pois achamos mais certo perseguir todos os lobos. Lembrem que, da mesma forma, o samba já foi proibido, pois havia a ideia de que sua prática incentivava a vagabundagem. Alguém acha ainda que o samba produz preguiçosos?

Vejo que as pessoas têm dificuldade de entender é que o humor de um comediante não produz nada, ele apenas reflete os valores e crenças de uma determinada sociedade. As pessoas que vão no show do comediante Leo Lins não se tornam racistas ou preconceituosas devido às palavras e piadas que escutam no show; o Leo Lins não tem esse talento, não tem esse poder de conversão e muito menos essa capacidade. Todavia, não há dúvida que ele atrai os racistas e reacionários para o seu show, provavelmente os mesmos que se exaltam nas motociatas de líderes fascistas, pois as pessoas sabem com precisão o conteúdo que será oferecido. Da mesma forma, uma missa não converte ninguém a Jesus, mas oferece um local de encontro para os aqueles crentes que há muito desejam exercitar a fé num Salvador.

A prisão ou a penalização desses comediantes, políticos, partidos, programas, religiosos não acabará com a audiência, não vai sequer diminuir o número de pessoas interessadas em suas ideias, apenas vai impedir que estas ideias sejam reconhecidas na sociedade. O mais triste é ver que a lógica usada aqui é a seguinte: se prendemos todos os gays e proibirmos que eles falem desse pecado mortal, os homossexuais vão desaparecer; se ninguém falar desses assuntos acaba tudo, eliminamos o problema. Acrescente a essa ideia punitivista as tentativas de perseguição ao comunismo, ao islamismo, ao álcool, e a ideia de acabar com o crime exterminando os criminosos.

Tudo isso já foi tentado, até mesmo hoje. Spoiler: não funcionou.

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Repreensões

A propósito, lembrei de uma história que me foi contada por um emérito psicanalista a respeito de como podemos abordar algumas questões, inclusive o direito de contar piadas politicamente incorretas.

Havia uma jovem senhora que era mãe de quatro filhos, sendo o último uma criança autista. Veio à consulta com o psicanalista – que era especializado no assunto – para tratar de questões relativas ao seu desenvolvimento. Em determinado momento ela comentou que a criança tinha o “péssimo hábito” de pegar a comida com a mão, amassar entre os dedos e jogar longe. Aquilo produzia enorme irritação nos pais, em especial na mãe, que tinha muito mais contato com a criança e que ainda era sobrecarregada com o cuidado dos outros três filhos maiores. Narrou a rotina diária da hora do almoço, seu cansaço, a repetição dessa cena e a sensação de raiva que tinha por não saber como agir nesse caso. Pediu ao analista sua opinião.

Ele imediatamente perguntou: “Como a senhora tratou este tipo de ocorrência com seus outros filhos?”

Ela respondeu: “Ora, eu dava um ‘pito’ neles. Dizia que não era ‘empregada’, que não podia limpar 20 vezes o chão, que não tinha saúde para isso, que tinha marido e outros filhos para cuidar, etc.”

O psicanalista ponderou por uns instantes e disse algo que até hoje me espanta: “Funcionou com eles?”, e ela respondeu afirmativamente. Ele então arrematou: “Pois faça o mesmo com o menorzinho. Vai funcionar também”.

Ao escutar a história, e diante do sorriso um pouco debochado do analista, resolvi apresentar minha inconformidade. “Mestre, não lhe parece óbvio que este bebê estava passando por uma fase absolutamente natural do seu desenvolvimento, aprendendo a consistência dos alimentos, entendendo as noções de falta e presença ao jogar longe o brócolis que tinha na mão, ao se sujar, ao sentir o cheiro da comida nas suas mãos, etc? Não lhe parece evidente que repreender a criança em sua experiência lúdica com a comida seria um erro, um equívoco e um entrave ao seu aprendizado?”

Ele sorriu da minha observação e respondeu assim: “Você tem toda a razão. Tudo o que você pondera é correto. Realmente a mãe estava diante de um processo natural de aprendizado e repreender não é o mais ajustado. Entretanto, você omite dois pontos fundamentais: o primeiro é que a criança fazia isso na hora do almoço, ao lado dos seus irmãos, que testemunhavam as atitudes da mãe. O segundo ponto é de que se trata de uma criança autista. Neste cenário, eu acho mais adequado que a criança seja atendida da mesma forma que os irmãos foram, para não ficar sedimentada na cabeça deles que o caçula é diferente, que tem privilégios’, que pode fazer o que os outros não podiam. Eu acredito que a ideia de acolhimento e de identidade com os irmãos é muito mais importante do que observar essa regra – repito, correta – sobre a etiqueta ao almoçar com a família. Com crianças autistas, é essencial mostrar que são iguais aos outros, que não serão superprotegidos, que também receberão reprimendas e que não terão tratamento especial.

Durante muito tempo fiquei confuso com esta resposta, mas finalmente entendi que tratar de forma igual é difícil e impõe desafios, mas que continua sendo o melhor e mais seguro caminho para a integração. O que o analista queria enfatizar era: não crie seu filho numa bolha de proteção e não crie para ele um espaço de discriminação. Da mesma forma, eu digo: não trate nenhum grupo de pessoas maduras como se fossem inerentemente incompetentes. A mensagem para os irmãos era: é evidente que o irmão de vocês é especial, mas isso não dará a ele qualquer tipo de privilégio. Entretanto, isso significa abandonar as estratégias de proteção que, durante um tempo, ajudam e garantem a sobrevivência, mas cuja continuidade determina estagnação e isolamento, deletérios para o crescimento. Proibir piadas e punir os piadistas jamais impediu que elas circulassem. Ou seja: não adianta nada proibir, é inútil e essas penas funcionam apenas como vingança social, estimulando sentimentos de revanchismo, mas são incapazes de mudar o padrão social, que só é modificada por meio da lenta sedimentação de novos valores, e não por imposições judiciais..

Assim, mesmo reconhecendo que algumas piadas podem ferir suscetibilidades, magoar e até ofender, ainda acho mais valioso permitir que elas circulem livremente – por pior que sejam os gracejos – do que aplicar proibições, vetos e censuras. O malefício a uma pessoa ou grupo pode ser revertido pelo incentivo à autoestima, exaltando as qualidades ao invés de enfurecer-se com os ataques. Entretanto, a censura, mesmo quando feita por caridade e com as melhores intenções, abre um precedente terrível, que fará mal às próprias comunidades que se pretende proteger.

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Escândalos

Muita gente está sendo perseguida e chantageada devido a vazamentos de vídeos íntimos. Qualquer um munido de um celular e uma deficiência de caráter pode transformar momentos privados em formas de chantagem e/ou promoção. Agora é a vez de Glenn Greenwald, advogado e jornalista politico americano, judeu anti-sionista e autor da peça acusatória jornalística que veio a se chamar “Vaza Jato”. Esta semana noticiou-se que ele teve sua privacidade exposta por meio de um vídeo que circula no submundo da Internet. No meu entender, nada pode haver de muito chocante sobre a expressão sexual desses personagens; afinal, são todos são maiores de idade, portanto, adultos. Bem sabemos o quanto carregamos de fantasias, as quais guardamos num cantinho escondido da nossa gaveta de desejos; publicá-las, apenas mostra que somos inexoravelmente humanos. Entretanto, não me agrada ver estes personagens expostos a constrangimentos, e ainda me revolta saber que possam ser calados ou pressionados por isso.

Minha esperança é que chegará um tempo em que haverá uma total saturação com esse tipo de “escândalo de intimidade”. A partir de então, esse tipo de ameaça não poderá gerar mais nenhum tipo de pressão e nenhum constrangimento. O público, farto desse sensacionalismo tosco e vazio, vai simplesmente ignorar fotos, vídeos e circunstâncias pessoais de artistas, políticos, ativistas e jornalistas. O respeito à privacidade surgirá pela ineficiência das artimanhas para devassá-la. Glenn, a propósito desse fato, deixou bem claro que “não se envergonha” do que fez, o que me parece justo e maduro.

Por fim, mostrar a vida sexual das pessoas prova o quê? Que se divertem? Que fazem sexo? Que suas fantasias são múltiplas, variadas, pessoais e por vezes estranhas? Muitas dessas exposições – e as críticas sobre elas – parecem, acima de tudo, pura projeção: “vejam, não sou eu o pervertido; são eles”. Ora, faz parte da alma humana mergulhar nesses comportamentos; nada mais infantil do que a sexualidade humana, nada mais poderoso do que perder-se em fantasias. Como bem dizia o mestre Nelson Rodrigues: “Se cada um soubesse o que o outro faz entre quatro paredes, ninguém se cumprimentava”, e como quero saudar a todos que ajudam na construção de um novo mundo, prefiro não saber das intimidades de ninguém. Aliás, também é dele a frase “Por trás de todo paladino da moral vive um canalha”, o que deve descrever perfeitamente aqueles que agora apontam o dedo para Glenn.

De resto, espero que Glenn não se deixe abater por este tipo de violência. Sim, porque mesmo que não haja nada de vexatório nas imagens, esta exposição nada mais é do que uma violação de seu sagrado direito à privacidade de seus atos. Glenn Greenwald tem demonstrado uma coragem inquebrantável ao atacar não apenas a direita mais histérica, mas também os setores da esquerda liberal que ainda acreditam na “censura do bem”, guiados pela crença ingênua de que as sociedades podem progredir sem que haja liberdade irrestrita de opinião e manifestação.

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Vozes

É possível falar de humanização do nascimento sem ser político? Seria a humanização da atenção ao parto um tema técnico, científico, positivo, que nada tem a ver com as questões sociais ou com temas mais abrangentes como direitos humanos, reprodução e sexualidade e mesmo o direito à vivência sexual plena?

Lembro de um encontro traumático com um membro do Conselho de Medicina quando este, do alto de sua imperial arrogância, disparou: “Não existe ideologia em Medicina, apenas boa ou má prática médica“. Ou seja: para este conselheiro, a medicina é uma expressão positiva da atividade humana; aplicá-la pressupõe que a verdade precisa ser comprovada a partir de técnicas científicas válidas. Além disso, traz a ideia de ciência cumulativa, ou seja, transcultural, atingindo toda a humanidade, inobstante qual cultura surgiu ou se desenvolveu. Parte da ideia de corpos sem alma, sem história, sem subjetividade, onde um muro se ergue entre os aspectos físicos e as questões anímicas. Por certo, o que este profissional pretende se contrapõe a experiência cotidiana de milhões de médicos que se deparam com as características subjetivas de cada sujeito que os procura. Além disso, é evidente que na manifestação de doenças concorrem aspectos emocionais, psicológicos, afetivos e sociais. Desta forma, na análise das doenças como manifestações de transtornos sociais, a política é uma das ferramentas mais importantes para compreender e tratar o adoecimento.

Partindo deste pressuposto – a influência da cultura e da política na saúde e na doença – eu não acredito ser possível defender a humanização do nascimento sem assumir uma posição ideológica, o que não significa necessariamente adotar uma posição partidária. Mais ainda: eu considero o abandono do debate político um dos grandes erros cometidos pelo movimento da humanização do nascimento nos últimos 25 anos. Sem o saber, adotamos uma posição claramente revisionista, almejando uma ilusória “conciliação de classes” com os detentores do poder, sem nos darmos conta de que, assim como em qualquer luta social, aqueles que tem nas mãos o poder jamais o entregam de forma pacífica. Além disso, a revolução do parto só vai acontecer quando abandonarmos as ilusões juvenis e assumirmos a necessidade de um enfrentamento firme. Sem entendermos que o “direito de parir direito” é uma luta social e que “revolução” significa câmbio de poder, não vamos atingir os fins últimos a que nos propomos.

O mesmo descaso que observo como regra para as vozes femininas na política também observei durante décadas no silêncio das mesmas vozes no que diz respeito ao parto. Portanto, não se trata de silenciar uma mulher em especial, mas reconhecer o temor inconfesso da sociedade patriarcal em escutar vozes dissonantes que possam questionar os “poderes naturais”. Quem teria mais autoridade para questionar como as mulheres são tratadas em seus partos do que elas próprias? Quando gestantes são desprezadas e diminuídas, eu escuto o eco silencioso de centenas de vozes suprimidas, brotando do peito de mulheres assustadas com seus partos, caladas e impedidas de decidir sobre seus corpos. E aqui não ser trata de questionar a fala de Janja sobre o TikTok – sobre a qual discordo – mas de analisar a repercussão violenta contra essa personagem.

Ou seja: os ataques às mulheres que alcançaram, de alguma forma, o poder nada mais são do que reflexos de uma cultura que ainda receia escutar o que elas têm a dizer. Muito do sofrimento que escutamos das mulheres mais velhas está relacionado às palavras não ditas em sua juventude, guardadas no peito, trancafiadas em silêncios dorosos que se transformam em sintomas e lágrimas. Permitir que as energias do parto tenham vazão é cuidar da saúde de todos, tanto quando reconhecer o direito às mulheres de expressarem suas ideias e sentimentos.

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Espanhola

Às vezes eu me perco pensando nas apostas altas que alguns personagens da política fazem. Muitas vezes em suas mentes passa um letreiro onde se lê: “é tudo ou nada”. Por esta razão estou convencido de que, tivesse Bolsonaro vencido as eleições – que perdeu por meia duzia de votos – e hoje Carla Zambelli seria uma das estrelas do seu governo. As manchetes do Estadão falariam da “mulher destemida” que enfrentou bandidos esquerdistas com arma na mão. Haveria elogios ao seu comportamento, provável que tivesse conquistado um ministério no Bolsonaro II e talvez já houvesse um documentário da Globo sobre sua vida, trazendo como fato central seu ato de coragem perseguindo um criminoso pelas ruas de São Paulo.

Como o Mito foi derrotado, o projeto bolsonarista veio abaixo, muitos crimes foram desnudados e ela ruiu com seu ídolo. A narrativa mudou, o próprio Bolsonaro a abandonou, culpando-a por sua derrota e a justiça a perseguiu impiedosamente por associação com o golpe frustrado. Depois de alguns anos, seus casos estão sendo julgados e tudo indica que pegará uma pena pesada que, por certo, não será cumprida, mas talvez sepulte sua carreira política.

Para mim fica claro que os fatos – a perseguição ridícula de arma em punho, a ligação com o Hacker para violação de documentos e a participação na elaboração do golpe – são irrelevantes no seu julgamento. O que comanda seu inferno astral de agora são os interesses dominantes, os mesmos que cuspiram Bolsonaro como uma casca de uva, e que agora a enxergam como uma desvairada inconsequente. Tenho convicção que aquilo que consideramos vergonha e crime agora seria visto como virtude e coragem caso Bolsonaro tivesse vencido e fossem outras as forças políticas e midiáticas a controlar a narrativa nacional.

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A concubina e a madrasta

Vamos deixar algo bem claro: é nítido o desconforto de muitos com a figura de Janja no cenário da política nacional. Vários são os fatores, e o mais importante é que Janja é uma mulher querendo exercer protagonismo sem ter recebido votos para isso. Ou seja: ela estaria agindo na sombra do Lula. Mesmo entre os analistas identificados com a esquerda, existem pessoas que a criticam por falar quando não devia e se intrometer em assuntos de “gente grande”. Além disso, suas posições são francamente liberais, à direita do espectro político e identitárias. Para a esquerda raiz, uma pedra no sapato apertado do governo Lula. 

Ainda assim, creio mesmo que os narizes torcidos para Janja que surgem na esquerda são devidos à ligação que muitos carregam na memória com dona Marisa, o que eu acho compreensível pela importância da ex-esposa de Lula na criação deste personagem político e para o próprio surgimento do PT. É possível entender esse sentimento, mas é certo que não se pode justificá-lo. Janja, para estes, seria a madrasta a tomar o lugar de nossa mãe. Entretanto, é inegável que a essência de muitas das críticas revela um evidente pendor misógino, algo que conhecemos muito bem. Quem poderia esquecer os adesivos de Dilma nos automóveis, o massacre midiático sobre qualquer deslize em seu discurso, as perguntas invasivas e indiscretas e as acusações falsas que acabaram por retirá-la do governo? Nada disso teria acontecido se, dos porões do inconsciente social, não brotasse uma frase, que continuamente era sussurrada: “este não é o seu lugar”. Mesmo entre aqueles que se diziam a favor da equidade, da diversidade e reconheciam os méritos de Dilma se incomodavam com ela, em especial com o seu sucesso.

Agora, mais uma vez, a esquerda caiu com extrema facilidade no discurso orquestrado pela mídia burguesa. A “víbora” da vez é Janja, que teria saído do seu lugar de “sombra” e tomado a palavra em um jantar durante a visita de Lula à China. Sem pedir licença ao marido, acabou por constranger o presidente Xi Jinping com perguntas indevidas sobre o TikTok. A direita se deleitou com o relato, apresentou a cena como um acidente diplomático e descreveu Janja como uma personagem falastrona, indiscreta, boquirrota e deselegante. Parte da esquerda uniu-se aos ataques dizendo que ela prejudica os esforços de Lula em construir pontes com a China, e que faria melhor caso se mantivesse calada. “Janja calada é uma poetisa”, diriam alguns.

A verdade veio no dia seguinte por intermédio do presidente Lula em entrevista coletiva: não foi Janja quem questionou o presidente Xi; a pergunta partiu do próprio Lula. Além disso, não foi sobre TikTok especificamente, mas o incluiu. Janja apenas pediu a palavra para endossar a posição expressa de Lula sobre o entendimento de boa parcela da esquerda de regulamentar as redes sociais e deu sua opinião sobre o domínio do TikTok pela extrema-direita. Ou seja: não houve “quebra de protocolo”, ela não foi indelicada, não causou constrangimento e o presidente Xi concordou com a ideia de mandar um representante ao Brasil para debater o tema das redes sociais sequestradas pelo fascismo.

Sobra uma verdade nesse caso: é preciso mudar a forma de pensar sobre a manifestação das mulheres e o seu direito de expressar livremente suas opiniões e suas perspectivas de mundo. Mesmo quando discordamos – e deixo claro que rejeito a ideia de cercear a livre expressão de ideias – é forçoso reconhecer que o fato de ser uma mulher a falar incomoda, irrita e nos faz desvalorizar seu ponto de vista. Isso precisa mudar, pois é injusto com as mulheres que chegam ao poder. Não é mais admissível tratar metade da população do mundo como se fossem cidadãs de segunda categoria. E deixo claro: não é blindagem aos erros que Janja possa porventura cometer; eu mesmo sou crítico contumaz de suas posições. Entretanto, é necessário aceitar que, entre os seus possíveis equívocos, não podemos incluir a “falha imperdoável” de ser mulher.

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Ditadores

A imprensa burguesa nacional insiste em chamar em seus telejornais o presidente Putin de ditador. Eu pergunto: baseada em quê? Putin foi eleito com mais de 80% de aprovação. Democraticamente, nas urnas, seguindo as regras da decadente democracia liberal representativa. Hoje deve ter mais de 90% de apoio popular, conquistado pela sua excelente condução da economia bloqueada da Rússia e suas vitórias na guerra com o vizinho. É sempre bom lembrar que ele invadiu a Ucrânia depois de 8 anos de agressões incessantes contra a população russa étnica do Dombas, impiedosamente atacada e massacrada. A invasão ocorreu logo após trabalhadores serem queimados vivos na Ucrânia por sua conexão com a Rússia. Os ataques da Ucrânia já haviam causado mais de 14 mil mortes. Há consenso nas esquerdas de que Putin foi paciente até demais com as ameaças nazistas de Kiev.

Hitler invadiu a Polônia e a França sem ser agredido. Suas intenções eram outras. Putin invadiu Donetsk e Lugansk para salvar os russos de serem chacinados pelas milícias nazistas da Ucrânia. A diferença é gritante. O projeto russo é – de novo!!! – a desnazificação do seu vizinho, que planejava ser um entreposto da OTAN apontando canhões para Moscou – aqui, sim, na cara dura. Por favor, mostre onde estão as evidências de que na China Popular, na Venezuela e na Rússia não existe a distinção entre os poderes. Eu posso, entretanto, provar que No Brasil o STF trabalha em sintonia com os interesses da burguesia e mesmo aqueles interesses mais obscuros do imperialismo. As provas estão em toda a parte, em especial no apoio do STF para todos os golpes contra a democracia brasileira. Seremos, por isso, uma ditadura? Na Rússia matam opositores? Quem? Na Venezuela? Qual? Na Rússia? Qual a evidência disso? Já no Brasil um candidato à presidência foi morto num acidente de avião, isso sem falar de Getúlio, de Jango e de Juscelino, assassinados (Getúlio foi levado a se matar) por serem ameaças ao poder das ditaduras. Podemos ser considerados, por estas mortes, uma ditadura?

Um exemplo de separação dos sistemas judiciário e executivo é o da China. “O sistema judicial da China compreende não apenas os Tribunais Populares, mas também a Procuradoria Popular (Ministério Público) e a Segurança Pública. O Governo Central respeita a tradição dos sistemas judiciários das regiões autônomas especiais, Hong Kong e Macau, colonizadas pelos ingleses e portugueses. Os Tribunais Populares são criados pelo Congresso e a ele prestam contas. O sistema chinês possui um Tribunal Popular Supremo, Tribunais Populares locais e especiais. O Tribunal Popular Supremo, órgão máximo na hierarquia judiciária, tem três seções: civil, econômica e penal. Seu presidente é nomeado pela Assembleia Nacional para um mandato de cinco anos, que pode ser renovado duas vezes. O Tribunal Popular Supremo pode reexaminar sentenças das instâncias inferiores quando houver um recurso admitido. Como ele é o intérprete máximo da legislação, acaba sendo um guia de orientação aos demais tribunais, sua jurisprudência acaba sendo, na prática, vinculante. Os Tribunais Populares podem dividir-se em tribunais locais, intermediários ou superiores. Os primeiros, Tribunais Populares Básicos, localizam-se em distritos e municípios. Tribunais Populares Intermediários, uma instância acima, situam-se nas capitais das províncias ou regiões autônomas. Já os Tribunais Populares Superiores, que estão abaixo do Supremo, são 31 e estão em províncias ou municípios dependentes diretamente do governo central.” Como pode ser dito que a China é uma ditadura, afirmando que o “judiciário está na mão do presidente”? O sistema russo é ainda mais ocidentalizado, assim como o de Cuba, mas isso não impede a nossa imprensa burguesa de chamar de ditaduras tudo aquilo que não é espelho.

Por que todos os políticos democraticamente eleitos e que se posicionam contrários ao imperialismo são chamados de ditadores? Maduro foi eleito democraticamente, Putin da mesma forma. O presidente de Cuba e da China através dos sistemas sociocráticos de suas democracias, mas todos são chamados de “ditadores” apenas porque se opõem aos interesses do poder Imperial. Não é interessante? Fosse isso adequado, não poderíamos esquecer do Ditador Bush, cuja reeleição foi uma fraude, mas por que a Globo e o Estadão jamais usaram esse epíteto para designar o presidente americano?

Seria Lula subserviente à China e à Rússia apenas por perceber a necessidade de estreitar laços com estas potências? Putin e Xi são os líderes da “nova ordem”, que já controla o maior PIB do planeta e quase 80% da população mundial. Por que haveria Lula de se omitir dessa aliança que só tem a nos ajudar? Quem perdoaria Lula caso perdesse essa oportunidade histórica de se unir aos líderes do mundo multipolar? Putin e Xi são mesmo admiráveis em suas posições contra-hegemônicas e de enfrentamento ao imperialismo. Na verdade, estamos testemunhando os últimos anos da presença de 3 grandes lideres mundiais no nosso convívio: Putin, que tirou a Rússia do buraco causado pela derrocada criminosa do socialismo por Yeltsin e Gorbachev, de Xi Jinping, que alçou a China a primeira nação desenvolvida do mundo e Lula, líder popular que se contrapõe (ainda que de forma limitada e atabalhoada) ao poderio massacrante do imperialismo fascista e assassino.

Repito, a pergunta mais justa seria: por que deveria Lula desprezar essa chance histórica de oferecer protagonismo ao Brasil e de estar ao lado da corrente mais importante da política e da economia do século XXI?

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Impactos

“The Doctor”,1891; Samuel Luke Fields (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate (Londres)

Vejo com frequência pessoas exaltando os progressos da medicina e se espantando ao pensar como a humanidade foi capaz de sobreviver sem eles. Citam os antibióticos, as ultrassonografias, as cirurgias e a vacinação em massa, dando a entender que só sobrevivemos por causa desses tantos avanços tecnológicos. Entretanto, a própria ciência reconhece que o impacto (não confundir com a eficiência) dessas novidades (todas elas surgidas a pouco mais de um século) na atenção à saúde foi diminuto. O aparecimento dos antibióticos, das vacinas e dos diagnósticos por imagem não produziu resultados significativos para a saúde global. Em verdade, o impacto real nunca ocorre por meio da ciência médica, mas da engenharia e da política: muito mais significativos para a saúde foram o saneamento básico, o transporte público, as janelas nas paredes, ventilação nas casas, roupa limpa, trabalho digno, limpeza urbana, higiene pessoal, serviço social, ar respirável, comida saudável e água limpa. A medicina, sem dúvida alguma, salva muitas vidas, e controla doenças que, antigamente, seriam inexoravelmente fatais. Todavia, seu impacto na saúde global humana é tímido.

A tuberculose e a Revolução Industrial tiveram uma relação complexa e profunda. A industrialização, que trouxe em seu bojo a urbanização e aglomeração de trabalhadores em ambientes insalubres e superlotados, contribuiu para a proliferação da doença, que se tornou um dos maiores problemas de saúde pública da época, conhecida como “peste branca”. Esta doença é um exemplo clássico: grande flagelo europeu dos séculos XVIII e XIX, ela teve uma queda brusca na sua mortalidade a partir da aplicação das leis trabalhistas que limitavam as horas trabalhadas, em especial nos porões de navios e no porto de Londres. Quando a estreptomicina começou a ser implementada, o número de pacientes graves já havia diminuído em mais de 90%. Segundo o pesquisador Frost, “nada teve mais influência sobre o declínio da tuberculose que a progressiva melhoria na ordem social” e que “um dos aspectos mais essenciais no efetivo controle da doença é a melhoria do padrão de vida dos estratos econômicos mais baixos”. Ou seja: o real impacto veio por meio da regulamentação rígida das relações de trabalho, a alimentação adequada e sobre a insalubridade da vida dos operários. Os antibióticos vieram muito depois, mas ganharam fama porque, com isso, seria possível vender remédios e fazer girar a roda da fortuna do capitalismo. E, percebam: não afirmo que os antibióticos sejam “inúteis” (apesar de serem perigosos); pelo contrário, salvam vidas e são indispensáveis no tratamento de pacientes gravemente enfermos. Entretanto, sua ação é multiplicada pela propaganda; o real efeito positivo para a saúde das populações vem das transformações sociais que ocorrem em função das lutas sociais.

Outra constatação: de todas as descobertas da área médica do século XX, a mais impactante foi a descoberta do aumento de absorção de água pelo túbulo distal do intestino quando, em uma solução salina, se acrescenta uma pequena quantidade de glicose. Para quem é atento, estou apenas descrevendo algo banal: o soro caseiro. Entretanto, essa descoberta foi brutalmente impactante, capaz de salvar milhões de crianças em África, vítimas de disenteria e outras doenças causadas pela água contaminada ou não tratada. Ou seja, o uso deste tratamento causou até um resultado demográfico, aumentando a expectativa de vida, e foi superior a qualquer novidade da medicina surgida na mesma época.

Em resumo, a tecnologia de medicamentos e equipamentos aplicada à medicina tem valor e preserva vidas, mas sua ação é muito menor do que as medidas sociais, políticas e estruturais que, neste caso, podem fazer revoluções significativas na sobrevida, no bem-estar, na longevidade e na saúde das populações. É essencial ter boas noções de epidemiologia ao tentar avaliar o real impacto da Medicina na saúde. Talvez um bom começo seja lendo Ivan Illich e “A Expropriação da Saúde – Nêmesis da Medicina”. Como pode ser visto na “Encyclopaedia Britannica“, “As visões de Illich sobre a classe médica, expostas em Medical Nemesis: The Expropriation of Health (1975), eram igualmente radicais. Ele contestava a noção de que a medicina moderna havia levado a uma redução geral do sofrimento humano e afirmava que a humanidade era, de fato, afligida por um número cada vez maior de doenças causadas por intervenções médicas. Além disso, argumentava que a medicina moderna, ao parecer oferecer curas para quase todas as condições — incluindo muitas que não haviam sido consideradas patológicas pelas gerações anteriores —, criava uma falsa esperança de que todo sofrimento pudesse ser evitado. O efeito, concluiu ele, era minar os recursos individuais e comunitários dos humanos para lidar com as inevitáveis ​​dificuldades da vida, transformando-os, assim, em consumidores passivos de serviços médicos.”

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