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Censura e silenciamento

Como a história cansa de nos dar lições, censurar para esconder as contradições da realidade jamais será solução para nada. Na questão dos algoritmos e do bloqueio de fake news todo mundo acerta no diagnóstico, mas quando é para apontar a solução, continuam apostando na velha alternativa do silenciamento, na supressão e na proposta de não permitir que os “fascistas” (no nosso caso) e os “comunistas” (no caso deles) tenham vez e voz. No fundo, essa proposta é o que classifico como o velho “modelo materno”, que se aplica quando a mantemos os protegidos (as crianças) num estrato onde não têm autonomia por não possuírem ainda condições para se defender. É o que as professoras fazem na escola primária: protegem os alunos do bullying e das brincadeiras maldosas, como uma mãe o faria, porque sabem que são crianças indefesas. O problema dessa proteção é que os protegidos se tornam o objeto do nosso controle. Em nome da sua segurança, impedimos que se tornem sujeitos independentes, evitando que o mal chegue a deles Fazemos isso porque acreditamos na sua incapacidade de lidar com as agressões e ofensas. De novo, como qualquer mãe amorosa faria.

Todavia, chega um momento em que as crianças pedem que as mães não cheguem à porta da escola. O cuidado e o controle que elas recebem das mães (e aqui “mãe” é a função, não a “pessoa”) torna-se um fardo. Não querem mais proteção; querem liberdade. Nesse momento é que entra o “modelo paterno” que, ao invés de impedir a chegada do mal, reforça as qualidades intrínsecas do sujeito para que ele possa, por si, se defender. Assim, ao invés de proibir as piadas com gays, pretos, gordos ou narigudos, o esforço será em reforçar o orgulho de pertencer a qualquer uma dessas identidades. Da mesma forma, ao invés de proibir conteúdo de extrema-direita, a solução seria estimular a perspectiva de mundo do sujeito socialista, internacionalista e fraterno, na construção de uma nova sociedade, assim como mostrar o ridículo das posições fascistas, racistas, sexistas e todas as expressões do fascismo. Entretanto, sem calar, sem cercear, sem proibir, pois nossa experiência com os preconceitos – todos – e mesmo o próprio nazismo deixam claro que as proibições são inúteis.

Isso não significa que não se pode proibir nada. É proibido violar a lei, e para isso as leis são criadas. Entretanto, opinião não é crime, mesmo aquelas perspectivas mais abjetas, como as racistas ou anti-LGBT. Se as proibições motivadas pela sensibilidade do ofendido forem tomadas como lei, chegaremos rapidamente a 1984 de Orwell, onde um Xandão qualquer pode dizer que ser a favor de parto normal (ou ser comunista) pode levar à morte de pessoas (ou ao “genocídio stalinista”). Para se configurar o crime não se exige mais um ato; basta pensar em voz alta e emitir opiniões. Se estas manifestações – repito, mesmo as bizarras – forem passíveis de silenciamento a delicada tessitura da democracia e do livre pensar desaba, pois que a expressão das ideias vai acabar dependendo do humor e dos valores de um títere qualquer que detenha o poder de discriminar o bom do mau, o certo do errado.

Boa parte das pessoas (a maioria?) ainda acredita que “calar os maus” faz sentido. São os mesmos que acham que linchar um criminoso na rua em flagrante é justo, pois, afinal, por que esperar por toda a burocracia da justiça se podemos fazer um “atalho”? Acreditam ser possível combater o crime com mais crime – como fizeram Moro e a Lava Jato. Estes acreditam que, quando calarmos à força quem de nós discorda, estamos corretos, pois o silêncio que se segue nos dá a ilusão do sucesso. “Veja como acabou o racismo, ninguém mais fala mal de negros!!”, quando em verdade este e outros preconceitos continuam na alma dos sujeitos, e seu preconceito se expressa apenas em sussurros, nos cantos, nas surdida, mas vivo e atuante. Repito: de que adiantou calar os comunistas? Que ocorreu com a proibição do nazismo? Olhem a Alemanha de hoje e o sucesso da AFD (Alternativa para a Alemanha)!! Vejam o bolsonarismo, vivo e forte. Analisem a vitória do Milei e de Trump!!

As proibições e o punitivismo são tão sedutores quanto inúteis. Os Estados Unidos – à mais bem sucedida ditadura burguesa do planeta – têm 2 milhões de encarcerados. Se o silenciamento social desses indivíduos tivesse algum sucesso, era de se esperar a diminuição dos níveis de criminalidade e violência, não? Pois o que se vê é o oposto; a tendência no mundo inteiro é o incremento da violência pelo fracasso das promessas do capitalismo. Da mesma forma, o silenciamento da livre expressão de teses contrárias ao nosso entendimento jamais teve sucesso. O proibicionismo sempre fracassou como instrumento pedagógico. Mas cabe lembrar que “Vamos matar o presidente!!não é uma opinião, mas um claro incitamento ao crime. Confundir isso é uma constante naqueles que não gostam da liberdade de expressão. Estes são os mesmo que dizem que gritar “fogo!!!” em um cinema lotado deveria ser proibido, pois colocaria todos em risco, mas sem compreender que “fogo” não é opinião e não expressa uma perspectiva subjetiva e particular do mundo. Essa metáfora é usada até hoje por juristas que desejam limitar a liberdade de expressão, dizendo que ela não pode ser “absoluta”, mas falhando em determinar a quem cabe a decisão final.

Estes que aceitam a “censura do bem” acreditam que ela é justa porque partem da crença que possuem a perspectiva correta do mundo e por isso não haveria problema em silenciar os “errados”. Isso muda de figura quando alguém, um poderoso, um ditador ou um ministro direitista consegue impedi-lo de expressar suas ideias “corretas”.

Aí talvez aí resolva voltar às ruas para exigir liberdade.

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Antigamente

Se é verdade o adágio de que “o parto é um evento social que ocorre no corpo das mulheres”, teriam as mulheres no passado, recente ou longínquo, experenciado partos mais rápidos e fáceis? Quanto existe de real nas dificuldades do processo de nascimento e quanto há de cultura nestas dores? Se a sociedade inteira conspira para o nascimento, quais são as responsabilidades do campo simbólico – a forma como simbolizados os eventos – na construção do parto como sinônimo de “dificuldade”, “dor” e “sacrifício”? Como seriam os partos no século XVI? Inobstante sabermos que a ciência obstétrica salva vidas – inclusive e principalmente pela cesariana – qual o seu papel na desvalorização crescente do parto normal, da fisiologia feminina e dos mecanismos adaptativos que formataram o parto humano nos últimos milênios?

Estas são perguntas para entender a situação da assistência ao parto no início do seculo XXI. Hoje, a chance de uma mulher brasileira de classe média ter um parto normal no nosso contexto cesarista não passa de 10%. A cesariana triunfa de forma inconteste, em especial nas camadas mais abastadas da sociedade. Essa evidência demostra a distância entre as ideologias e a materialidade da vida. Teoricamente as mulheres ocidentais teriam uma ampla possibilidade de escolha: podem determinar como serão seus partos, desde nascimentos cirúrgicos até partos na segurança das suas casas. Todavia, a realidade se apresenta diferente e ela é condicionada pelo sistema de poderes que controla esses processos. Por isso as cesarianas já ultrapassam 59% dos nascimentos; no Brasil de hoje um parto fisiológico é a opção minoritária e, nas classes mais altas, a exceção.

Existe uma distância entre a liberdade teórica e a liberdade real, da mesma forma como o capitalismo oferece o “céu como limite”, mas sua realidade mostra a estagnação das classes e a dominação dos “de cima”. Para estes as opções são reais, sendo apenas teóricas para quem é “de baixo”. Quando analisamos friamente, é nítido que as mulheres são condenadas às cesarianas pelo modelo obstétrico “iatrocentrico” (centrado na figura do médico) e controlado pelas necessidades dos médicos, e não pelas reais condições e exigências do binômio mãebebê. Mesmo que, aparentemente, exista uma gama enorme de opções para as mulheres, elas são direcionadas subliminarmente àquelas que beneficiam os donos do poder.

A chance de um parto normal aumenta exponencialmente quando ocorre a decisão de ficar em casa, por exemplo, até 7 cm de dilatação; a forma como uma mulher chega ao hospital é o mais valioso elemento para prever o que vai lhe acontecer. Não deveria surpreender a ninguém que esse é o grande segredo: ficar o mais tempo possível longe dos ambientes insípidos e adrenalínicos do hospital. Desta forma cabe a pergunta, que me parece relevante: como seriam os trabalhos de parto sem a cultura da medicalização, que leva inexoravelmente à alienação das mulheres nos temas do parto e a amamentação? Sem uma cultura de parto formatada pelo medo (e a solução deste drama oferecida à tecnocracia), pairando sobre o parto como um abutre agourento, seriam os partos mais livres, mais rápidos, mas tranquilos e “naturais”?

Estas são as questões fundamentais: qual a parcela de responsabilidade da “cultura do medo” sobre o parto para a criação de um modelo alienante e tecnológico? Por que (ou para quem) as sociedades ocidentais criaram a atual narrativa do parto, que o descreve como violento, agressivo, doloroso e indigno da condição humana? Quem se beneficia com essa perspectiva? Quem ganha com a expropriação do parto e a transformação das mulheres em contêineres frágeis e indignos de confiança? As respostas a estas perguntas serão a narrativa para o nascimento humano no século XXI.

PS: No início deste século havia listas de discussão como a “parto nosso” e a “parto humanizado”. Elas foram fundamentais para o debate sobre as transformações que trazíamos como proposta. Eu escrevia um “tijolão” como esse cada dois dias, apresentando minha perspectiva sobre a assistência e os rumos para o nascimento humano. Quase ninguém lia, assim como quase ninguém vai ler o que está escrito nesse “tratado” aí em cima. Sim, em tempos de Facebook “tratado” é qualquer texto acima de dois parágrafos. Mas… a gente escreve por compulsão, não porque alguém porventura vá se interessar.

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Senectude – ou Crepúsculo

Chega um tempo em que a fragilidade dos corpos nos obriga a abrir mão de um dos bens mais preciosos: a autonomia, valor que tanto exaltamos quando tratamos dos direitos humanos mais elementares. Todavia, em algum momento da existência precisaremos deixar a autonomia em nome da manutenção da própria vida. Esse é um tema que percorre a vida de quase todos, e eu mesmo passei isso com meus avós paternos e minha mãe. Em um determinado momento nossos familiares – em especial os avós e depois os pais – perdem sua independência e sua autonomia em função da fraqueza, de alguma doença, da idade avançada ou das perdas cognitivas. A forma de reagir a esta situação é variável, mas ela estará inscrita nos detalhes de toda a vida pregressa de quem envelhece, e por isso é muitas vezes possível prever como cada um lidará com este evento.

Muitos, como meu avô, lutaram contra a inexorabilidade da sua dependência; resistiu o quanto pode, mas foi literalmente carregado à força para fora de casa. Outros, como minhas avós, minha mãe e minha sogra, aceitaram de forma mais tranquila, como se esta passagem fosse uma parte natural da vida – alguém cuidaria delas como elas cuidaram de tantos durante suas vidas.

Talvez aqui seja possível estabelecer uma diferença essencial entre a vivência da senescência para os homens e para as mulheres, mesmo sabendo que esta vivência será sempre única e pessoal. Para os homens a perda da autonomia é muitas vezes vista como um golpe mortal em seu amor próprio. Retire-o de seu domínio e ele se tornará vulnerável, fraco e impotente. Por seu turno, muitas mulheres (todas da minha família) se comportam de forma dócil e aceitam o fato de que, em algum momento, é chegada a hora de serem cuidadas e amparadas, da mesma forma como o destino determinou que cuidassem de tantos filhos e netos. Já meu pai sempre disse que não aceitaria os cuidados de ninguém. Deixou isso claro quando ficou viúvo aos 90 anos e não aceitou se mudar para a casa de qualquer um dos filhos. Quando, por fim, adoeceu, morreu muito rápido, sem se submeter à “tortura” de viver sob os cuidados de alguém. Antes dele meu avô, por sua vez, xingou, sapateou e nunca perdoou meu pai por tê-lo retirado de sua casa, mesmo quando sequer conseguia se mover. Nunca aceitou “viver de favores”.

Para o homem sua casa é seu mundo, e de minha parte, já reconheço de que material sou feito. Portanto, não tenho dúvida alguma de que também vou resistir até onde tiver força. Viver sob o cuidado alheio é humilhante para quem sempre valorizou a liberdade e a autodeterminação.

Algum momento, entretanto, haverá em que alguém chegará ao meu ouvido e dirá: “Pai, não dá mais. Chega. Não vamos aceitar ver você sofrendo por este orgulho insano. Você terá que sair de onde está e ficar sob os nossos cuidados”. Nesse momento eu saberei que não tenho como me defender e, mesmo resistindo, serei obrigado a aceitar. Diante desse destino inescapável, eu já me preparo para perdoar meus filhos e netos pela palavras duras que sei que vou ouvir; é melhor fazer isso enquanto ainda existe lucidez suficiente. Aceitar o declínio da vida é preparar-se lentamente para a morte. Antes mesmo, quando percebemos nossa sutil e crescente desimportância na tessitura da vida, já é o momento de compreender que estas são as suas sábias regras, e que cabe tão somente aceitar o quinhão que a nós é determinado.

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A Serviço do Imperador

Sim, Haruki, eu escrevo sobre qualquer coisa, todos os dias. Tão logo um pensamento galopa pelas ondas escuras do meu cabelo, ele cai à minha frente vertido em tinta. Escrevo qualquer coisa que se possa acomodar entre as letras, qualquer lembrança que faça cócegas pretéritas, qualquer ideia, todas as percepções, todas as imagens vívidas do passado, de qualquer lugar, modo e circunstância. Faço isso de forma compulsiva, metódica e premente, mas não de uma maneira laboriosa e dolorida. Porém, reconheço seu caráter exonerativo; escrevo como quem aperta um abscesso cuja dor alivia quando se abre para o ar.

Escrevo ainda mais pela premência da morte, o desenlace definitivo, o fim que me aguarda num ponto adiante qualquer no traçado da vida. Escrever passou a ser meu contrato para driblar o esquecimento inexorável que me aguarda. Paradoxalmente, enquanto a vida se restringe às quatro paredes desta cela, parece que nunca me aventurei tão distante nas minhas lembranças; a constrição do corpo abriu um portal de memórias que a pletora de liberdade não me oferecia. Como um cego que agora saboreia com requinte os ruídos e cheiros – outrora subtraídos pela volúpia da luz – minha fantasia corre solta, minhas lembranças são vívidas e claras e minha saudade colore de dor cada reminiscência. Nunca fui tão longe sem precisar me mover.

Pela nossa minúscula janela gradeada vejo a neve vergar o galho da cerejeira no Kōkyo Higashi Gyoen, o parque Imperial, mas só o sei porque a enxergo todos os dias nas minhas memórias. Para mim o peso dos flocos dobrando os galhos finos é tão real quanto o som da sirene avisando a chegada da noite ou o barulho metálico das trancas nas portas de ferro.

Não me pergunte, Haruki, porque escrevo. Escrever é o que ainda me permite respirar.

Tatsuki Shinkai, “A Serviço do Imperador” (天皇陛下のお仕えに.) Ed. Orient Press, pag 135.

Tatsuki Shinkai é um escritor japonês nascido em 1925 em Osaka e que lutou na guerra contra os Estados Unidos. Formou-se em literatura mas logo depois alistou-se no exército Imperial japonês no esforço de guerra. Patriota e entusiasmado com o expansionismo japonês na Ásia, fazia parte da tripulação do porta-aviões Akagi que foi afundado pelos navios americanos na batalha de Midway. Conseguiu saltar do navio em chamas e foi resgatado pelos inimigos, enviado posteriormente como POW (prisioneiro de guerra) para Pearl Harbor, onde permaneceu em um campo de concentração até o final da guerra.

Tatsuki foi libertado em 1946 e voltou para sua cidade Osaka, encontrando-a parcialmente destruída. Durante os anos em que esteve prisioneiro escreveu um diário em formato de diálogos com seus parceiros de cela, onde aborda assuntos como o sentido da vida, a liberdade (e sua ausência), honra, guerra, pátria e fé. Negou-se a publicar seus diários durante os 20 anos que se seguiram à derrota japonesa, e só após a morte de seus pais em 1966 resolveu entregar seus manuscritos a uma editora japonesa.

Seu livro obteve um enorme sucesso no Japão, mas também nos Estados Unidos, em função das graves acusações ao governo americano a respeito dos campos de concentração para os americanos de ascendência nipônica. Depois do sucesso do livro, este foi vertido para o cinema, numa produção japonesa de 1973 do diretor Hayato Watanabe e com Fukuyo Hiroshi no papel do soldado Tatsuki. O famoso diretor Akira Kurosawa refere que o clima melancólico e intimista deste filme, que aborda o trauma e a vergonha da derrota na guerra, produziu enorme influência em sua obra cinematográfica.

Posteriormente, Tatsuki mudou-se para os Estados Unidos para dar aulas de literatura japonesa em Princeton e, a partir desta segunda fase em sua escrita, produziu vários outros ensaios, crônicas e romances, que fizeram grande sucesso entre o público americano. Perto de sua morte revelou que os personagens do seu livro “A Serviço do Imperador” (天皇陛下のお仕えに) pediram que seu nomes verdadeiros jamais fossem revelados, pois que suas histórias poderiam causar vergonha para suas famílias, promessa que Tatsuki cumpriu até sua morte em janeiro de 2010, em Portland, Oregon. Tatsuki nunca se casou e não deixou filhos.

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Liberdade, valor maior

Desculpe se isso soar antipático, eu concordo com a frase, mas não com seu contexto. Sim, eu acho a liberdade um valor superior à vida. Se a vida fosse superior à liberdade nenhuma revolução teria acontecido, pois todas as lutas humanas por liberdade ocorreram às custas das vidas de muitos mártires. Não fosse pelas lutas daqueles que lutaram pela liberdade e pelo fim da opressão e ainda estaríamos vivendo no feudalismo, divididos entre senhores e vassalos. Afinal, quem se arriscaria a morrer lutando contra esse sistema arriscando a própria existência?

Existem, sim, lutas que são superiores à nossa vida particular. São temas tão importantes para a humanidade que valem a pena o risco que se corre, até de perder a vida. A luta contra a opressão sempre ocorre no limite da nossa própria segurança.

E eu NÃO estou me referindo ao contexto da fala do ministro. Não quero debater o tema da obrigatoriedade ou dos passaportes aqui, mas estou falando em tese: existem lutas que são mais importantes que a nossa vida pessoal. Aceitar que viver é mais importante do que lutar contra a escravidão e a opressão é aceitar que nossa mera existência biológica é superior aquilo que nos torna humanos: a pulsão pela liberdade.

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Delete

Aprendi isso a duras penas quando há 10 anos comecei a criticar um certo grupo de direitistas infiltrados na esquerda. Tomei pedrada e fui queimado vivo pelos reacionários das mais variadas cores e gostos. Mas garanto que isso é libertador. Fazer o papel de agradar seu “eleitorado”, escravizando-se à sua visão de mundo e dançando a música que eles tocam é uma prisão insuportável.

Não reclamo dos meus múltiplos cancelamentos. Tenho a certeza que estas pessoas estão bem melhor sem a minha presença incômoda e eu me sinto muito mais livre sem seu catecismo e suas imposições.

Saravá!!

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Censura

Hoje o debate no Facebook sobre riscos, eficiência, vantagens e benefícios de vacinas está banido. Canais no YouTube estão sendo excluídos e todas as vozes dissidentes estão sendo silenciadas. Censurados, em nome do bem geral, da saúde pública, para o “greater good”, decidido por algumas poucas pessoas que pensaram por nós, decidiram por nós, falaram por nós e apertaram o botão “delete” para milhões no mundo todo.

Não, este post não é sobre vacinas, é sobre a liberdade de debater e conhecer todas as faces da verdade.

Peço paciência para uma analogia. Fiz todo o meu transcurso pela escola médica e na época da residência em ginecologia escutando a exaltação das mamografias, Elas eram exames de baixíssima periculosidade, boa acuidade e poderiam fazer diagnósticos de tumores ainda abaixo da possibilidade de palpação e a tempo de se fazer uma cirurgia curativa. Quem poderia ser contrário a este tipo de milagre da tecnologia? Quem poderia questionar os resultados positivos de mulheres que foram operadas e recuperaram a saúde após a descoberta de um minúsculo tumor na mama?

Pois houve gente que, mesmo diante deste aparente sucesso, teve desconfianças e resolveu investigar a fundo o difícil campo dos riscos e benefícios de irradiar uma mama de forma rotineira e periodicamente para descobrir tumores escondidos nos tecidos mamários. O trabalho iconoclástico do meu herói pessoal, Peter Gotzsche, vai exatamente nesse sentido.

Suas conclusões foram impactantes. Para alguns este exame deveria ser banido. Para outros ele não deveria ser usado de forma rotineira e, muito menos, com tamanha frequência.

Agora imagine que há alguns poucos anos o debate sobre mamografias tivesse sido banido, por diminuir a taxa de pacientes submetidas a este escrutínio e, portanto, teoricamente aumentado o número de pacientes não diagnosticadas precocemente. Jamais teríamos descoberto que as vantagens das mamografias rotineiras nem de longe produzem o resultado que imaginávamos produzirem.

O que é “desinformação” hoje pode não ser amanhã. Existe muita pesquisa sendo feita para mostrar problemas relativos às vacinas, de boa, excelente e até de péssima qualidade. Banir todas elas com a desculpa de “proteger as pessoas” é uma atitude totalitária. Eu lembro da unanimidade em relação às mamografias há 20 anos, e a fúria contra qualquer médico que resolvesse questionar sua validade. Cesarianas a mesma coisa. Enteroviofórmio idem. Se alguém quisesse questionar o uso de raios X nos primeiros anos do século XX, seria tratado como um retrógrado, inimigo da ciência.

Poucos lugares do conhecimento merecem e necessitam tanto de iconoclastia como a medicina. Poucos são mais necessários do que aqueles que se contrapõem às posturas hegemônicas. Esses sujeitos – como Peter Gotzsche – são essenciais.

Bem sei o que a direita tem feito com essa questão, adicionando misticismos, mentiras e fraudes sobre achados científicos. Entretanto não se retiram os dedos por infecções nas unhas. Não há como ressuscitar a censura com a desculpa de “proteger pessoas”. Lembre que o macartismo se guiava por este mesmo norte. A liberdade de pesquisar e divulgar dissidências dos conhecimentos hegemônicos deve ser sempre garantido. Existe boa ciência entre aqueles que questionam vacinas e, como eu disse, muita bobagem, mas em qualquer campo existe algo parecido. Que às pessoas seja garantido o direito de decidir. E veja… aqueles que se contrapõem à avalanche de informações favoráveis às vacinas são ratinhos lidando contra elefantes, mas também o era Galileu ao dizer “eppur si muove”.

Outras coisa perigosa é “entre os pares”. O debate científico tem pressupostos rígidos do debate e da pesquisa, mas não são os cientistas que devem pautar a vida cotidiana. A propósito… que horror seria uma vida coordenada por cientistas!!! Portanto, esse debate DEVE obrigatoriamente verter para a discussão pública, para que as pessoas, os governos, as sociedades e os grupos possam decidir com os argumentos que as ciências lhes oferecem, e não pela IMPOSIÇÃO do debate secreto e fechado entre pares. É por isso que os cientistas divulgam seus achados na imprensa, para provar ou negar achados para gente comum, como nós.

Agora pensem… apesar de ser doloroso ter que aguentar posições que agridem nossas convicções mais profundas a censura é uma tragédia para o conhecimento, a liberdade e o próprio avanço das ciências. A facilidade como as pessoas aceitam este tipo de proibições (em especial na esquerda festeira identitária) é uma tragédia social. Parece que vamos precisar reinventar os princípios básicos da civilização, baseados na liberdade de expressão, novamente, partindo do zero. Nunca as palavras de Evelyn Beatrice Hall, erroneamente atribuídas a Voltaire, fizeram tanto sentido: “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.

Ainda haverá no mundo paixão suficiente para a defesa destes princípios?

Veja AQUI o trabalho de Peter Gotzsche publicado no Lancet.

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A Paixão de Cristo

A sexta feira é da PAIXÃO!!!

Sim, da paixão, essa chama indócil que nos arremessa para destino incerto, mas sempre em direção à vida. A força motriz de toda realização humana, o motor de nossas ações, das mais nobres às mais brutais, mas que “desacata a gente, que é revelia“. A paixão que nos mostra o que, em verdade, é ser humano.

“Paixão” deriva de passus, particípio passado de patī “sofrer”, é um termo que designa um sentimento muito forte de atração por uma pessoa, objeto ou tema. A paixão é intensa, envolvente, um entusiasmo ou um desejo forte por qualquer coisa. Mas para entender a “sexta feira da paixão” é preciso aceitar que a paixão de Cristo ultrapassava os limites do mero objeto de desejo, e se espalhava por todo o seu povo, na sua busca por igualdade, justiça social e autonomia.

O Jesus que eu conheço é o Messias, o ungido, o escolhido para liderar seu povo para a liberdade. O Cristo que enfrentava os senhores da lei, o mesmo que chicoteou os vendilhões do templo e aquele que deixou claro que veio trazer a espada, não a paz. O Jesus ativista, líder dos explorados. O Mestre corajoso, que entregou-se com bravura aos seus algozes por amor aos seus ideais. Um Jesus de coragem, fibra, destemor e LUTA.

Esse Messias é agora esquecido, em nome de um líder cheio de amor e paz. Um Jesus domado, constrangido, bonzinho, que coloca criancinhas no colo. Um Messias para os opressores, loiro e de olhos azuis. Um Jesus que se mesclou com os poderosos para ser aceito, a ponto de perder sua face revolucionária. Um Cristo para o paladar dos conservadores. Vendido por Paulo aos romanos, virou a imagem da docilidade, da submissão, do amor incondicional e da bondade, mas sua origem miserável, rodeado por analfabetos, pescadores, prostitutas e ladrões nos mostra que ele era do povo, da luta, da navalha e do confronto. Sua paixão era pela liberdade.

Que a nossa paixão seja pela mudança, pelo enfrentamento e pela consciência de classe. Não podemos permitir que o legado de um marceneiro negro, oprimido pelo poder absoluto e despótico de Roma seja transformado na imagem do cordeirinho loiro e bonzinho que aceita a iniquidade, as injustiças, o racismo e a violência sem reclamar e sem esboçar reação

Não esqueçamos que não é hora de chorar.

“Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.”

(Ijuca pirama – Gonçalves Dias)

Era a poesia que minha mãe recitava quando eu era menino…

FELIZ SEXTA FEIRA DA PAIXÃO…

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Abolicionismo

*Bota na cadeia e joga fora a chave!!!*

Peço humildemente que pensem um pouco sobre o uso dessa retórica para se referir às personalidades das quais discordamos no cenário atual. Creio que é importante que troquemos esse discurso agressivo de exigir a prisão dos nossos adversários. Não importa quem sejam; ninguém precisa ir para a prisão e perder seu bem mais valioso: a liberdade. Nenhum criminoso se cura numa prisão e a sociedade não melhora quanto mais construímos cadeias e presídios. Presídios são como avenidas: abri-las não melhora o tráfego, pois convida mais motoristas a dirigir por elas. Presídios apenas produzem a reciclagem de criminosos, produtos inexoráveis de uma sociedade intrinsecamente injusta.

Vamos deixar de lado por um breve instante os assassinos cruéis e os perversos, que são muito menos do que 0.1% dos prisioneiros, e focar na grande massa de apenados que lá estão pelo apartheid social e racial do nosso planeta. Sobre estes sujeitos – cujo afeto foi destruído por vivências precoces catastróficas – precisamos descobrir alternativas que não se choquem com os direitos humanos, mas que protejam a sociedade. Mandar “prender, matar e arrebentar” é o discurso de personagens como Moro e Dalanhol e de boa parte da blogosfera nazifascista. É o discurso fascista travestido de “justiça depurativa”. Essa é a fala da direita punitivista – botar os maus na cadeia para sobrarem apenas os “cidadãos de bem” – invariavelmente brancos e de classe média. Nós da esquerda progressista precisamos oferecer uma alternativa humanista, solidária e compreensiva melhor do que esta.

E isso não tem NADA a ver com abdicar da necessária indignação com o estado de coisas contemporâneo!!! Se me permitem a audácia, peço que comecemos a nos expressar de uma forma mais justa e em sintonia com nossa visão de mundo. Precisamos exigir que as pessoas que destroem nosso país “sejam responsabilizadas“, que “paguem pelo seu erro“, ou que “ofereçam o devido ressarcimento à sociedade pelo mal que fizeram“, mas sem continuar incluindo em nosso discurso os métodos desumanos e medievais que não representam os ideais de solidariedade e fraternidade que trazemos ao debate com nossas propostas e ideias. Não se associar ao discurso malévolo da direita fascista e dos punitivistas racistas é uma ferramenta fundamental para mudar a narrativa de forma global e, assim, mostrar o quanto a violência gera apenas mais violência e não nos oferece nenhuma solução para os dilemas sociais. Uma sociedade sem prisões é uma utopia da esquerda – solidária, humana e justa. Cabe a nós devolvermos toda essa violência com uma postura superior e acolhedora.

Abolicionismo penal já!!
Por um mundo SEM prisões!!

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Liberdade

A fantástica história de Jack e Emmet, e o homem que lia livros para se tornar livre…

Jack sabia do amor que Emmet nutria pelos livros. Não era sequer necessário que ele houvesse descrito a pequena biblioteca que tinha em sua casa antes de chegar aqui. Sua forma por vezes rebuscada de descrever os cenários ou os episódios de sua vida mostravam o apreço que nutria pelas palavras. Ah, os conceitos, as nuances, as filigranas. Nenhum objeto existia na descrição de Emmet que não merecesse uma metáfora. Esse seu jeito sofisticado de descrever a vida só podia ter surgido pelo exercício continuado de apreender seus significados folheando incansavelmente as páginas com a avidez erótica da curiosidade.

Ele, entretanto, não possuía livros em seu poder. Os poucos que eu tinha Zora os entregava mensalmente durante as visitas, os quais ajeitava com carinho debaixo do meu catre simples, mas sempre limpo. Para meu olhar clínico era fácil entender esta ausência nele. Emmet ajeitava os óculos com cuidado diante de qualquer tarefa, mas este esmero mais se mantinha por um cacoete do que pela justeza dos focos. Pouca diferença fariam os ajustes das lentes por sobre o nariz vermelho e anguloso. Emmet praticamente nada enxergava, mas tentava disfarçar ao máximo sua dificuldade na frente dos outros prisioneiros.

Por ser o mais velho da cela lhe coube a única cama que recebia uma tímida nesga de sol nas manhãs de inverno. Seu rosto magro recebia a carícia do sol apenas por breves momentos, exatamente quando recebíamos o sinal de deixar as celas para o café matinal. Emmet esperava que todos saíssem do cubículo para só então tatear suas roupas e calçar as botinas velhas e escuras. Perguntava por mim, e quando lhe respondia o cumprimento sorria dizendo “ora, que tonto, nem vi que ainda estava aí”. Meus anos na medicina me permitiam saber que Emmet estava há muitos anos lutando contra o diabete. Suas injeções diárias de insulina eram feitas à noite, escondido em sua cama, quando a cortina de panos encardidos lhe oferecia uma benfazeja, porém curta, privacidade. Mas eu sabia. Apesar disso, nunca comentei com outros detentos e sequer lhe disse que tinha conhecimento de sua doença.

Uma certa noite, antes do “black out”, Emmet me perguntou o que estava lendo. Por certo que ouviu o folhear lânguido das páginas ao seu lado. Talvez esse tenha sido um daqueles momentos transformadores na vida de um sujeito, mas que, em geral, passam despercebidos quando ocorrem. A pergunta de Emmet tinha um som estranho, que carregava mais do que uma simples curiosidade; era também mais do que uma forma de preencher o vazio cheio de silêncios entre nós, ou para se livrar do desconforto que tais momentos representam. Sua dúvida tinha a triste melodia de uma súplica. Coloquei o dedo entre as páginas do livro como um marcador e o fechei. Olhei para Emmet que permanecia com o olhar fixo na parede suja à frente.

– A República…

“Plato!!!” disse ele sorrindo, antes que eu pudesse completar a informação. Havia uma emoção triste e genuína em sua face emagrecida. “Em que parte está?”, perguntou ele.

– Quer que eu leia? perguntei, sem me dar conta de que esse era o desejo inconfesso de Emmet fantasiado de frugal curiosidade. Abri o livro novamente e li a partir de onde meu dedo, ainda preso entre suas páginas, apontava.

“Sócrates? Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância…”

Depois de poucos minutos levantei os olhos da leitura daquele parágrafo apenas para comentar alguma banalidade sobre o gênio de Platão, ou sobre sua influência no pensamento ocidental, mesmo após milênios passados de sua morte. Entretanto, minha voz foi interrompida antes da primeira palavra. Com as mãos espalmadas sobre os joelhos pontiagudos Emmet jazia imóvel. Seus olhos marejados se fecharam num piscar reflexo, de onde brotaram duas lágrimas que percorreram com morosidade os sulcos de seu rosto. Sem abrir os olhos, ele segurou meu braço com delicadeza e de seus lábios uma voz quase apagada sussurrou:

– Obrigado, meu amigo Jack.

James G. Higgins, “Freedom”, Ed. Lasseter, pág 135

James Garret Higgins é um jornalista e escritor americano nascido em Tulare na Califórnia em 1939. Fez sua formação universitária na California State University em Sacramento, tendo cursado Jornalismo e posteriormente Ciências Sociais. Após trabalhar na Nigéria por 3 anos como correspondente da Guerra de Biafra, de 1967 a 1970, voltou para os Estados Unidos e escreveu vários romances nos quais descrevia as condições que testemunhou na guerra brutal e fratricida que ocorria em uma das regiões mais miseráveis do planeta. O bloqueio imposto pelo governo nigeriano aos grupos rebeldes que se isolaram na região de Biafra levou a uma crise humanitária especialmente causada pela fome, mas piorada por doenças endêmicas. Estima-se que durante a guerra civil, mais de 100 mil mortes entre as forças militares foram devidas diretamente à inanição. Entre 500.000 e 2 milhões de civis da região de Biafra morreram devido a falta de comida. Esses fatos descritos por James Higgins para os jornais americanos produziram marcas profundas em sua alma. Em seus livros posteriores, como “Freedom”, ela fala da busca de sentido para vidas completamente destruídas por tragédias pessoais e pela privação de liberdade. James Higgins mora em Sacramento com sua esposa Margareth e tem duas filhas, Abayomi e Fayola.

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