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Censura e proibicionismo

Não gostou da piada? Corte a amizade. Não fale mais com o sujeito, não vá no seu show, cancele, reclame. Escreva um textão nas redes sociais denunciando a visão preconceituosa que ele dissemina. Temos nas mãos o poder de mostrar que esse humor não é engraçado, que não é construtivo e que se baseia em estereótipos inadequados. Porém, o desejo de calar e censurar os “humoristas do mal” deixa claro que as pessoas que apoiam tal censura não acham que podemos fazer boas escolhas. Na verdade, acreditam que a proibição pode ter efeitos positivos, e pensam ser mais efetivo combater a mentira com a censura, ao invés de oferecer a verdade como contraponto. Não ensinamos a chapeuzinho vermelho a fazer boas escolhas, pois achamos mais certo perseguir todos os lobos. Lembrem que, da mesma forma, o samba já foi proibido, pois havia a ideia de que sua prática incentivava a vagabundagem. Alguém acha ainda que o samba produz preguiçosos?

Vejo que as pessoas têm dificuldade de entender é que o humor de um comediante não produz nada, ele apenas reflete os valores e crenças de uma determinada sociedade. As pessoas que vão no show do comediante Leo Lins não se tornam racistas ou preconceituosas devido às palavras e piadas que escutam no show; o Leo Lins não tem esse talento, não tem esse poder de conversão e muito menos essa capacidade. Todavia, não há dúvida que ele atrai os racistas e reacionários para o seu show, provavelmente os mesmos que se exaltam nas motociatas de líderes fascistas, pois as pessoas sabem com precisão o conteúdo que será oferecido. Da mesma forma, uma missa não converte ninguém a Jesus, mas oferece um local de encontro para os aqueles crentes que há muito desejam exercitar a fé num Salvador.

A prisão ou a penalização desses comediantes, políticos, partidos, programas, religiosos não acabará com a audiência, não vai sequer diminuir o número de pessoas interessadas em suas ideias, apenas vai impedir que estas ideias sejam reconhecidas na sociedade. O mais triste é ver que a lógica usada aqui é a seguinte: se prendemos todos os gays e proibirmos que eles falem desse pecado mortal, os homossexuais vão desaparecer; se ninguém falar desses assuntos acaba tudo, eliminamos o problema. Acrescente a essa ideia punitivista as tentativas de perseguição ao comunismo, ao islamismo, ao álcool, e a ideia de acabar com o crime exterminando os criminosos.

Tudo isso já foi tentado, até mesmo hoje. Spoiler: não funcionou.

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Leo Lins

O comediante Leo Lins foi condenado a 8 anos de prisão e 300 mil reais em multas por fazer piadas consideradas desrespeitosas com minorias, debochando de velhos, gays, crianças com deformidades físicas, etc. An questão não é se as piadas que ele conta são adequadas, boas, edificantes ou até respeitosas, mas se o Estado tem o direito de determinar que tipo de piadas podem ser contadas. A meu ver, e para muitas pessoas que não se deixaram seduzir pelo discurso identitário, ser preso por contar piadas é o fundo do poço da justiça autoritária brasileira. Parece certo que Juca Chaves tinha mais liberdade criativa durante a ditadura militar dos anos 60 do que um comediante atualmente.

Eu já assisti vídeos curtos das apresentações desse comediante e nunca gostei, e apenas por isso não assistirei a um show seu. Não gosto das piadas, acho apelativas e, acima de tudo, sem graça. Ou seja: não faço sobre elas uma análise moral, acho que lhes falta graça, humor. Entretanto, é óbvio que ninguém é obrigado assistir, muito menos gostar deste tipo de espetáculo, porém prender e multar alguém por contar piadas é absurdo, inaceitável, imoral e inconstitucional!! Conte a piada que quiser, só vai rir quem achar graça. Se acham inadequado, façam como eu: ignorem. Mais ainda: a ideia de tratar as minorias atingidas pelos chistes como “coitadinhos” que precisam ser protegidos de piadas não os ajuda. Esse é um modelo “maternal” que protege às custas da infantilização, e isso impede a conquista da maturidade. Quem deseja ser maduro deve renunciar às proteções excepcionais e fortalecer seu ego, ao invés de tentar impedir os gracejos alheios. Repito: essas proibições e criminalizações fazem mal aos grupos minoritários. Aqueles sujeitos ou grupos que desejam ascender à posição de protagonista necessitam abandonar a posição de vítimas (mesmo quando o são).

Creio ter deixado claro que a minha defesa é em tese. Eu já assisti vídeos desse humorista e percebi que no seu show ele força a barra. Tipo: vou contar uma piada de negro, gay, velho, mulher, deformidades físicas ou sobre lésbicas só para causar, para dizer que faço o que eu quiser, que brinco com qualquer coisa. Para mim soa falso e forçado; portanto, sem graça. Apesar disso, jamais aceitaria que esse tipo de piada fosse proibida, exatamente porque essa perspectiva proibicionista é comprovadamente inútil. As piadas do Juca Chaves (“comi muito a senhora sua mãe”) eram “proibidas” na minha juventude, mas na escola todos sabíamos de cor e salteado todas as “proibidonas”.

Tenho como uma regra de vida que nada pode criminalizar o humor. Nada mesmo. Pode fazer piada com qualquer coisa. Aliás, sobre assuntos delicados, o Ricky Gervais faz várias piadas em seu show; tudo depende do contexto. Estabelecer sacralidade sobre determinados assuntos é péssimo para ideias, propostas, a necessária transformação do mundo, as religiões, as personalidades, os grupos oprimidos e para as minorias. Proponho um exercício: imagine que seu filho Betinho chega no primeiro dia de escola, lugar onde as crianças exercitam tudo, inclusive a maldade. Todavia, seu filho nasceu com um problema: ele tem alopecia, é carequinha e não tem cabelo algum. Agora imagine a professora apresentando Betinho para a turma e dizendo “crianças, escutem: é proibido fazer piadas com o Betinho por ser careca”. Isso seria um desastre para o Betinho, pois seria excluído dos grupos e estaria sempre sendo visto como o protegido do sistema, infantilizado, sem desenvolver sistemas e estratégias de adaptação e proteção. O que a professora deveria fazer é não dar importância alguma para isso, reforçar sua autoestima, exaltar suas virtudes e ensiná-lo a se defender. Protegê-lo, como fazemos com as minorias por meio da lei, não ajuda esses grupos, muito menos o Betinho. Para muitos é difícil entender a perspectiva de quem diz que os grupos e os sujeitos – por si só – precisam desenvolver sistemas de proteção e defesa. Quem traduz o mundo pela visão materna terá sempre dificuldade para entender o mundo pela perspectiva da paternidade.

A proibição de gracejos sobre temas escolhidos (quem escolhe sobre o que se pode fazer piada?) seria a “lei seca” das piadas, que apenas as faz acontecer entre sussurros ou em locais fechados e seguros – e por esta razão mesmo elas se espalham. A sociedade não se move por decretos ou por proibições; só o que nos faz avançar é a lenta sedimentação de novos valores, que insidiosamente se espalham pela cultura. Proibir é mais do que inútil; isso amplifica a ação que se tenta combater. Por trás desse tipo de estratégia está a crença der que o judiciário pode modificar a cultura, quando a verdade é que ele apenas reflete os valores de determinadas culturas. A luta contra discriminações ou preconceitos não pode ser feita pelas leis, mas pela lenta sedimentação de valores na cultura. Compare este tipo de censura aplicada aos humoristas brasileiros com a liberdade dos comediantes de “stand up” como Ricky Gervais ou Dave Chappelle que fazem piada com tudo, literalmente qualquer coisa. Fazem até piada com abuso sexual(!!), mas sempre alertam para o cuidado especial com o contexto, o campo simbólico que envolve de significados qualquer anedota. Não gostar do tipo de piada é legítimo; proibir é abuso.

Minha discordância é que criar estas proibições, legislações e aumentar penas não defende as minorias, pois este tipo de ação jamais protegeu ninguém na história da humanidade. Repito: o que as proibições e as leis fizeram contra o nazismo, o álcool ou o comunismo? O que fará com o racismo? O que fará com o debate sobre o machismo? A resposta é clara: nada, pois o proibicionismo nunca produziu efeitos positivos na cultura. O que muitos pretendem é cercear a possibilidade de pensar, de expressar, de dizer piadas, mas é claro, só de alguns grupos. Não pode chamar de símio um grupo, mas pode chamar outro de gado.

E sobre as leis, acho que devem ser cumpridas. Quem desrespeitar as leis deve pagar sua dívida à sociedade. De toda maneira, sou contrário a qualquer lei que ataque a livre expressão de ideias e opiniões, por mais ofensivas que estas sejam, pela mesma razão que sou a favor de que qualquer partido tenha o direito de mostrar a cara e não se esconder em partidos de fachada.

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Clubismo insano

A página de um influencer gremista fez uma postagem com essa foto conclamando torcedores a se unir a Israel e condenar os grupos de resistência Palestina que sequestraram estes soldados. Apela para o amor clubista para que nos associemos no clamor pela soltura dos soldados presos pelo Hamas.

É inacreditável essa postagem pró sionista. Parece que Israel não matou mais de 50 mil pessoas, 70% delas crianças e mulheres, além de destruir todas as casas e impor fome para uma população inteira, submetida a crimes de guerra continuados. É uma vergonha ver o nome do Grêmio envolvido com a exaltação de canalhas racistas que estão cometendo os crimes mais atrozes do século XXI.

Pois eu respondo que os sionistas devem parar de matar crianças palestinas antes de pedir pela libertação de seus soldados. A vida desses dois não é mais valiosa do que as 20 mil crianças mortas pelos terroristas de Israel. Nossas preces pela paz e pela liberdade devem ser para todos, e não somente para dois sionistas que estavam fazendo uma festa ao lado de um campo de concentração ao ar livre, não se importando com a vida miserável imposta aos prisioneiros de Gaza. Sim, espero que eles sejam libertos, mesmo que representem o sionismo, a ideologia mais racista e supremacista já criada pela humanidade, mas só depois de Israel cumprir os acordos de libertação dos prisioneiros palestinos, torturados cotidianamente nas masmorras de Israel.

O fato de usar a camisa do Grêmio não transforma um soldado israelense – ensinado desde o berço a desumanizar e matar palestinos – em uma boa pessoa. Não esqueçam que muitos assassinos confessos são presos usando camisetas de clube, e nem por isso seus crimes se tornam aceitáveis. O Grêmio não apoia Israel, o Grêmio não é um clube racista e o tricolor não se associa ao terror de Estado imposto pelo sionismo racista de Israel.

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Inquisição

Acho triste e decepcionante ver gente da esquerda contrariada com o fim da censura explícita do Facebook. Para estas pessoas a mentira desapareceria como mágica ao silenciarmos os mentirosos, sem perceber que isso apenas garante a eles ainda mais força. Para um verdadeiro democrata, a liberdade de expressão não pode ter freios nem limites, pois sabe que a mentira só pode ser exterminada com o contraponto da verdade. Por que haveria de ser a censura solução para os enganos e a falsidade? Silenciar vozes que atrapalhavam seu projeto político é exatamente o que os militares faziam após o golpe de 64. Eu mesmo já fui banido dezenas de vezes, e sou repreendido todos os dias por denunciar os crimes sionistas na Palestina. Ou seja: a censura atinge preferencialmente aqueles que se contrapõem às normas sociais burguesas e os interesses do capitalismo global. A solução aventada há alguns anos foi a criação de agências de “checagem”, mas restava a pergunta: quem controla os controladores? O que se viu é que estas agências se tornaram braços do poder burguês, órgãos do Estado Americano e instituições financiadas por bilionários como Soros e Gates, e o resultado só poderia ser o travamento do discurso público. Neste campo, os identitários – adoradores da censura e do silenciamento – são os que estão mais furiosos, porque não conseguem verdades suficientes para contrapor as mentiras que julgam encontrar nas redes sociais. Porém, inobstante as boas intenções que algumas pessoas possam ter, a política do cancelamento e o silêncio imposto a quem expõe divergências é uma prática fascista, de quem tem medo de enfrentar a falsidade apresentando o contraditório da verdade.

Vocês não eram nascidos, mas nos anos 70 e 80 eu saí às ruas contra a censura e levei borracha no lombo por agir assim. Por esta razão dói minha alma ver a esquerda aplaudindo essa aberração. Entendam: não existe censura do bem!! Não existem silenciamentos e cancelamentos bem intencionados; o que estas ações escondem é o medo do debate, o pavor de ver ideias que não gostamos sendo espalhadas e conquistando mentes e corações.

“Ahhh, mas isso vai espalhar ideias fascistas; eles vão tomar conta das redes sociais”. Provavelmente, mas e daí? Precisamos criar um sistema de combate a este discurso através da apresentação de uma perspectiva justa da realidade, e não calando a boca dos opositores. Também é obvio que Mark Zuckerberg não tomou essa atitude por amor à verdade, mas por razões claramente econômicas. As redes sociais estavam se tornando insuportáveis. As milícias identitárias, que querem calar e processar a todos, tomaram conta das esquerdas, impedindo um debate aberto e franco. A patrulha do “politicamente correto” produziu uma geração de hipócritas que falam “é o que acho, mas você sabe que não posso dizer isso publicamente”. O Facebook estava perdendo clientes pelo nível absurdo de censura, e pela checagem fraudulenta que fazia.

A resposta só pode ser pela liberdade irrestrita para pensar e dizer, e não pela perspectiva fascista de censurar, calar e amordaçar os inconvenientes. Por acaso acham mesmo que censurar comentários estúpidos sobre sujeitos trans produz(iu) algum tipo de efeito positivo? Acham que censurar e prender os comunistas produziu o extermínio do ideário comunista? Por acaso testemunhamos o fim do comunismo ou, pelo contrário, ele saiu o fortalecido? Acreditam que censurar os fascistas vai gerar algum benefício? Os nazistas são proibidos na Alemanha e são o grupo que mais cresce!! Nazismo é proibido no Brasil e existem mais de 500 células nazistas à luz do dia. Impedir que as fascistas digam tolices sobre pessoas trans não faz – e nunca fez – nenhuma diferença. E se as razões do Zuckerberg e do Elon Musk são oportunistas e fascistas, nisso não há nenhuma novidade, mas – repito – a solução só poderá ser através do combate sistemático à perspectiva de mundo que eles defendem, e não apoiando a censura. Além disso, a censura no Facebook ataca naturalmente a esquerda, e apenas pontualmente a direita, até porque as agências de checagem são totalmente controladas pela burguesia.

Esse tipo de ingenuidade não tem mais sentido, e lamento que a esquerda embarque nesse erro de forma tão fácil. Aqueles que apoiam soluções de censura, cancelamento e silenciamento sobre opiniões a respeito de temas delicados estão sentados ao lado dos acusadores de Galileu Galilei em seu famoso julgamento em 1633. Aqueles que pagam o preço de escutar o que não querem por um debate franco e aberto em nome do progresso das ideias estarão ao lado do nobre cientista polonês, mesmo sabendo que isso poderá lhes custar prestígio e quiçá a própria vida.

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Nu com a mão no bolso

Em Barcelona a nudez não é criminalizada. Esta é uma postura da cidade muito antiga, conhecida por todos que a visitam. Se você quiser pode andar pelado na rua sem que isso seja tratado como delito. Existe um barcelonês (foto) peladão que ficou famoso por tatuar suas nádegas como se fosse um calção e que circula pela Rambla todos os dias. Ou seja: a nudez é um direito dos cidadãos e ninguém pode ser admoestado, criticado ou processado por andar nu. Também no norte da Europa, em especial na Suécia, é comum ver estudantes adolescentes (meninos e meninas) correndo nus pela rua festejando a chegada da primavera, como uma diversão juvenil, sem que isso seja visto como atentado ao pudor.

Enquanto isso, no Brasil, uma mulher foi presa por transitar pelo congresso em Brasília vestindo apenas a sua própria pele. Aqui, na minha cidade, o mesmo aconteceu há alguns anos com uma moça que adentrou um shopping usando sobre o corpo apenas batom e o esmalte das unhas. Ambas foram cercadas imediatamente, cobertas, levadas à delegacia e tratadas como criminosas. Afinal, como ousam desafiar os costumes mostrando suas vergonhas em público? Por certo que, fossem homens, e ainda levariam pipocos e um sonífero mata-leão. Caso alguma dessas cenas viesse a passar na televisão de Barcelona por certo que seus habitantes se espantariam com a ação policial em um caso de nudez. Alguns teriam mesmo se horrorizado com a atitude bárbara de agentes do Estado prendendo cidadãs apenas por terem passeado nuas pela cidade. “Por acaso o corpo é indecente, imoral ou agressivo aos olhos?”, perguntariam. “Não nascemos todos nus? Não andam nus os indígenas e os pequenos?”

No outro lado do mundo mulheres são criticadas e algumas até presas por não usarem o véu. Quando acontece no Irã muito se noticia cada vez que uma mulher sofre algum tipo de violência, física ou moral, por se contrapor aos costumes vigentes e à etiqueta islâmica ao vestir. Os jornais ocidentais escrevem infinitas colunas e imprimem manchetes escandalosas descrevendo a sociedade iraniana como machista, desrespeitosa com as mulheres e cerceadora de suas liberdades. Aqui no ocidente acreditamos ser esta uma violação inaceitável ao direito das mulheres – ou das pessoas em geral – de se vestirem como desejam. Criticamos, atacamos e acusamos os iranianos de serem machistas, atrasados e misóginos, porque não aceitamos que a sociedade determine o que uma mulher pode usar para se cobrir – ou não.

Para um sujeito de Barcelona deve ser confuso nos ver apontando os dedos acusatórios para a cultura iraniana por fazer – em essência – exatamente o mesmo que nós. O que os peitos e as nádegas têm de proibitivo aqui, as madeixas tem por lá. No fim, será sempre a tentativa de cercear a liberdade do outro de se expressar como bem entender. Somos diferentes na superfície e naquilo que censuramos, mas na essência somos por demais semelhantes.

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Isonomia

Se a esquerda reclamava – e hoje sabemos, com razão – do ativismo jurídico da Lava Jato e seus métodos medievais de tortura, precisamos lutar para que isso jamais se repita, inobstante a vítima que esteja sendo submetida a este processo desumano e cruel. Exigir que as delações citassem Lula para que a delação fosse aceita e o preso fosse liberado foi uma praxe entre os procuradores em conluio com o juiz de Curitiba. Todavia, este tipo de prática abusiva e imoral é literalmente o mesmo que exigir dos atuais prisioneiros da operação da Polícia Federal que investiga os atos ocorridos em 8 de janeiro que citem a participação direta de Bolsonaro. Condicionar estas delações seletivas à liberação da prisão é o que se condicionou chamar de “tortura” quando o perseguido era Lula. Deveria ser diferente com nossos adversários?

E vejam; isso não significa que Bolsonaro seja inocente, que não tenha participação nos atos de 8 de janeiro. Não significa também que ele não tenha sido a mente por trás dos atos golpistas e da manifestação tosca e histérica (desculpem o termo aparentemente machista) de uma turba de celerados gritando palavras de ordem, misturando exortação ao “espírito santo”, com o “juízo final”, “Jesus”, Olavo de Carvalho e o coronel Ustra. Entretanto, não podemos incorrer no mesmo erro que causou a debacle da Lava Jato. Qualquer ato que demonstre um interesse em penalizar Bolsonaro e sua turma para além dos crimes deveras cometidos corre o risco de produzir nulidades e oferecer ao ex-presidente o destaque que 20 milhões de brasileiros ainda acham que tem.

Quem luta pelo Estado Democrático de Direito não pode ser oportunista – a lei deve ser igual para todos. Acreditar que os problemas da democracia brasileira estão atrelados à figura burlesca de um Bolsonaro com as calças sujas de farinha atirando perdigotos para sua claque ainda não entendeu os reais dramas da democracia liberal brasileira. Se acreditamos que a exaltação de um juiz parcial e desonesto por parte da mídia corporativa era inadmissível, pois que sua conduta era arbitrária e autoritária, porque não temos o mesmo sentimento ao ver os arroubos de estrelismo do ministro calvo disparando sentenças claramente punitivistas? Por que devemos acreditar que os abusos de Moro são muito piores do que o de ministros do STF, que há poucos meses pisavam na Constituição para manter preso e alijado das eleições o presidente Lula? Se não houver um cuidado muito preciso com cada passo na direção da adequada punição a Bolsonaro a militância fascista e de extrema direita vai afirmar (talvez com razão) que se trata de uma perseguição política contra Bolsonaro. Não temos o direito de fazer contra os bolsonaristas o que os acusamos de fazer contra nós.

Não vejo necessidade de pressa para punir Bolsonaro; prefiro que seu julgamento seja justo e estritamente legal, mesmo que tenhamos que esperar até que todas as condições legais sejam cumpridas. Isonomia é um direito de todos nós, e abrir exceções apenas para dar vazão ao nosso desejo de vingança pode ser motivo de arrependimento logo adiante.

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Imperdoável

Muito melhor do que “Não olhe para cima” é o último filme da Sandra Bullock, “Imperdoável”. Relata a história de uma mulher que sai da prisão após duas décadas de encarceramento e sua busca para resgatar o que resta da sua vida. Muitos momentos do filme foram preciosos, mas em uma de suas fala ela responde a alguém “As pessoas da prisão são iguais às daqui“, e isso sempre me pareceu uma verdade que tentamos esconder.

Para aceitar as ações selvagens e indignas impostas aos prisioneiros é necessário desumanizá-los, enxergá-los como animais ou como se fossem de outra espécie, diferente da nossa. Esta é a mesma estratégia que usamos ao tratar os inimigos em uma guerra ou os escravos que nos servem. Apenas quando criamos uma barreira entre a nossa essência e a deles é que se torna possível aceitar a violência que lhes impomos, seja produzindo ou testemunhando

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Julgamentos

Em quase todas as vezes que se conta um fato a alguém a reação deste será determinada pelo tipo de identificação que se seguirá. Se você conta uma história de violência doméstica, a imensa maioria das mulheres se identifica com a agressão sofrida e se enxerga na pele de quem sofreu na história relatada. Se você conta uma história de um homem enganado – apenas para falar de um sofrimento tipicamente masculino – os homens se identificam com o “pobre rapaz” cujos sentimentos foram pisoteados por aquela ingrata e blá, blá, blá…

Digo isso apenas porque não confio em opiniões isentas. Todas as manifestações, com raríssimas exceções, são marcadas pela perspectiva PESSOAL de cada um que as escuta. Eu também sou assim: sempre que alguém me conta uma história eu me sinto com as roupas e a espada do personagem, sinto na pele o que ele sofreu e tento me situar diante dos dilemas que ele teve de suportar. E sempre imagino a dor de quem não tem voz, não tem força suficiente e nem pode enfrentar, com paridade de armas, o exército que se coloca contra si.

A única diferença é que eu sei da minha parcialidade e tento – dentro das minhas limitadas condições – criticar em mim mesmo esta tendência. Exercitar a paralaxe – deslocamento aparente de um objeto quando se muda o ponto de observação – tentando observar o mesmo fato por outra perspectiva é uma capacidade de poucos. Uma rara virtude muito difícil de encontrar. Fico sempre imaginando a opinião de um magistrado condenando ou inocentando um sujeito, tendo nas mãos seu destino, e sem autocrítica suficiente para perceber o quanto de sua sentença está moldada pelos seus preconceitos e por sua visão parcial do que realmente ocorreu.

Quando visitei a prisão de Lula em Curitiba com minha amiga Andréia, tive uma crise compulsiva de choro ao me aproximar do Prédio da Polícia Federal, que mais parecia um castelo medieval, com suas torres, grades, portões, e muros inexpugnáveis. Quando vi a estrutura monstruosa do outro lado da rua eu me desestruturei ao imaginar o ex presidente preso por um arranjo político, falso, cruel e desumano. Senti na pele o que Lula estava passando e desabei. Fui ajudado pelos companheiros da Vigília, gente simples e humilde, que se colocaram ao meu lado naquele momento de angústia. Todavia, para quem não tem dentro de si essa vazio, este tipo de dor não é capaz de produzir eco. Eu entendo e respeito o silêncio de muitos para quem eu contei essa história.

Sim, julgar é a coisa mais fácil do mundo; ser justo uma das tarefas mais árduas. Olhar o mundo com os olhos alheios é obra de uma vida inteira.

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Vladimirski Central

Nikolai havia acordado mais cedo do que todos nós. Senti entrando por debaixo do lençol puído o cheiro de sopa de pacote que ele havia esquentado. Graças às mãos delicadas e ágeis de Petrov foi possível puxar dois fios da tomada acima da pequena mesa encostada na parede descascada e adaptar uma resistência, que usávamos para esquentar o chá, mas também uma sopa. Coloquei os pés para fora da cama e toquei o chão gelado da cela com as meias que Zoya havia me trazido na visita do mês anterior. O chão feria a sola dos meus pés como lanças de gelo a penetrar o espaço entre os dedos. E ainda não era o pior do inverno em Vladimirsky, onde não era incomum que os prisioneiros perdessem os dedos pelo frio. Olho para o lado e encontro Petrov dormindo envolvido em um edredom cinza, enquanto Aleksei mantinha-se sentado em sua cama olhando para um ponto perdido na parede à frente. Ninguém falava, e aos poucos a luz externa aparecia pelas aberturas superiores da parede de nossa cela.

O silêncio matutino foi quebrado pelo som metálico da porta de ferro sendo aberta. Um carcereiro apenas falou em voz alta o nome de Nikolai e colocou no chão um envelope de papel amarelo-escuro. Logo depois a porta se fechou mais uma vez, deixando o breve eco do metal chocando-se com o batente em nossos ouvidos. Nikolai deixou a sopa sobre a mesa e curvou o corpo para apanhar o envelope. Abriu-o lentamente e passeou os olhos sobre o documento. Poucos segundos depois fechou o envelope e voltou a sentar-se no banquinho tosco que puxou debaixo da mesa. Segurou a xícara com ambas as mãos e continuou captar seu calor sem dizer palavra.

– Negado?, disse eu

Ele se limitou a balançar a cabeça afirmativamente, como a dizer que nada do que se encontrava naquele papel era surpresa. Fiquei em silêncio alguns minutos e me limitei a dizer em voz baixa “bastardos” e “canalhas“.

Nikolai sorveu mais um gole de sua sopa e, sem olhar para mim, me disse:

– Sabe o que eu queria, Sergey? Nenhuma utopia política, e muito menos bens materiais. Estou velho para desejar o que sabemos ser inútil ou fugaz, como um carro, uma casa ou que o mundo seja controlado por um sistema político mais justo. Em verdade, meus sonhos são todos tolos, inocentes e de uma ingenuidade dolorida e triste.

Sorveu um gole a mais, mordiscou um pedaço de pão e continuou.

– Nós tivemos uma infância dourada, Sergey. Fomos a última geração a ter uma mãe em casa cuidando de nós. Eu era capaz de dizer o que minha mãe preparava para o almoço antes mesmo de chegar, já a meia quadra de distância, só de sentir o cheiro da comida. Éramos recebidos como heróis, recém-chegados da batalha diária da escola. Cansados, famintos e eletrizados, nossa mãe nos tratava como reis; éramos o centro de sua vida. Isso é amor Sergey.

Baixei os olhos e sacudi a cabeça afirmativamente. Ele seguiu.

– Elas se sacrificaram por nós, camarada. Hoje as mulheres têm vida própria, para além de sua família. São empresárias, médicas, engenheiras, advogadas e – apontando para o documento – juízas. Não há nada que seja interdito a elas, e bem sei não há como retroceder, resgatando nossa infância idílica. A nós resta apenas a saudade de um mundo construído para sermos felizes. Suspirou olhando para a fumaça que saía de sua caneca de metal e continuou com seu desabafo.

– Pois eu queria apenas cinco minutos daquela vida, camarada. Sentir o cheiro da comida de minha mãe e encontrar seu sorriso na porta de casa. Nada mais. Eu respondi, mas com cuidado, pois sabia que seu mundo havia desmoronado há apenas alguns poucos segundos.

– Sua vida foi digna, Nikolai. Nossas mães nos prepararam para a felicidade, mas nós escolhemos uma vida de luta e valor. Mais importante do que ser feliz é dar sentido a esta breve existência na terra.

– Não tentem descobrir sentido algum para a vida, camaradas. Se há um sentido, ele nunca se mostrou para nós. Somos os que perderam, os derrotados, os desvalidos. Não haverá história a contar.

Era Petrov a falar, ainda de olhos fechados e envolto em seu cobertor cinza. Aleksei, por sua vez, se mantinha observando o ponto fixo no meio da parede descascada. Talvez ali estivesse escondido algum sentido para a vida, que a nós todos escapava.

Genny Sidorov, “Vladimirsky Central”, Ed. Belaya skala, pág 135

Genny Sidorov, batizado Gennady Sidorov, nasceu na cidade russa de Leningrado (atual São Petersburgo) e fez seus estudos na tradicional Universidade Estatal de São Petersburgo, onde cursou engenharia de minas. Após trabalhar durante 15 anos como engenheiro abandonou a profissão depois do acidente na mina de Osinniki, em 2004 na Sibéria. Escreveu um livro contando os detalhes da tragédia, onde morreram 28 mineiros – entre eles seu amigo e protagonista no livro, Rodion. “O último suspiro”, seu livro de estreia, lhe rendeu o prêmio de jovem escritor e o impulsionou a abandonar a engenharia para se dedicar à literatura. Ainda nessa década escreveu 2 livros de ficção (“No fundo do Neva” e “Sob o olhar de Yekaterina”) e um de ensaios (“Galina e outras histórias frias”). Hoje tem mais de 20 livros publicados e escreve em colunas de jornais por todo o país. É casado com Yelena Pavlova e tem dois filhos, Natalya e Mikhail. É filiado ao Partido Comunista da Federação Russa.

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Cadeia nele

E, por favor, entendam….

Minha manifestação de desconforto – mais uma vez – com a facilidade com que desejamos colocar gente na cadeia é porque o punitivismo parece ser um vírus que circula livremente na população brasileira, o qual produz como sintoma a ideia, profundamente entranhada na classe média brasileira, que seremos capazes de resolver nossos problemas colocando pessoas em masmorras. Como se nossas prisões pudessem ser purgatórios onde é oferecido um sacrifício em nome do bem e da virtude.

Nada está mais longe da verdade do que isso.

Cada vez que gritamos “cadeia nele” COM ou SEM razão, um punhado de negros e pobres são trancafiados em masmorras, levados e mantidos lá por essa lógica de encarceramento, que é inútil, brutal, absurda e desumana.

Para cada Queiroz que porventura vá preso (sempre por pouco tempo) haverá CENTENAS de Rafaéis Bragas sendo amontoados em presídios, torturados e tratados como lixo por este tipo de mentalidade medieval.

Nosso sentimento rasteiro de vingança coletiva deveria nortear estas decisões?

Pensem nisso…

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